Oblívio – por Matheus Bensabat

Poucos dias após a internação da filha, resolveu voltar ao sítio em que vivera com os pais da infância à juventude, quando se mudou para o Rio. Precisava livrar-se da angústia, extirpar de si o remorso e reaver-se com o passado. Ao entrar pela estrada de terra pôde enfim ver a casa. Enxergava-a tão distante daquilo que fora, que não reconheceu as paredes que a constituíam. A impressão de abandono tornava-a esmaecida, fazendo-o sentir uma tristeza branda, como se ele se lembrasse de alguém a quem amara e que o tempo afastou.

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As Flores do Mal de Gotham City

É nessa perspectiva que mais nos impressionam filmes como Coringa (“Joker”, 2019, dirigido por Todd Phillips) e Batman (“The Batman”, 2022, direção de Matt Reeves), o primeiro com seu lirismo sanguinário, o segundo com seu fascínio pelas trevas, ambos protagonizados por anjos decaídos e vingativos, como flores que desabrocham na escuridão e na sujeira, nutridos pelas enfermidades de Gotham City. É sobretudo por mérito da direção de arte, da cenografia e da trilha sonora que a obscura beleza do submundo de Gotham nos conquista,

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A transgressão como símbolo da ação divina

-por Matheus Bazzo Em uma cena brilhante de “Black Coal Thin Ice”, o diretor chinês Diao Yinan mostra uma passagem de tempo através de um recurso cinematográfico surpreendente. No momento em que o filme pula cinco anos em sua narrativa, o diretor opta por mostrar essa mudança de tempo apresentando os personagens atravessando um túnel em seu carro. Ao passar por ali, há uma alteração climática (antes, estavam no verão; e, agora, o chão está coberto de neve), e eles veem um acidente de moto do outro lado. O homem acidentado é o mesmo homem que está no carro. O espectador é impactado com um salto de tempo inesperado e apresentado de forma brilhante.

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Este inominado espetáculo: a arte de Nigel van Wieck

- por Pedro Rocha Souza Talvez o mais cativante na obra de Van Wieck seja o fato de que toda ela é feita da mesma matéria que nossa vida; que ele lance um olhar àquilo que já é por todos conhecido, àquilo que talvez nenhum de nós se atente em meio aos nossos afazeres diários, e que disto ele consiga tirar tanta beleza.

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Morte Térmica

- por Marcel Novaes “A imagem na moeda era o rosto de um homem, de perfil, com algumas palavras em volta. Com um movimento da mão, ele fez a moeda virar. Do outro lado, havia um número 5 e a imagem de uma águia, pousada sobre uma coisa redonda. Dentro da coisa redonda, uma suástica. Em volta disso, as letras pareciam ser Deutsches Reich 1938”

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A solidão da epifania: “Pudor e Dignidade”, de Dag Solstad

Sem alarde e com tímida divulgação, o mercado editorial brasileiro recebe pela segunda vez uma obra de Dag Solstad (nascido em 1941), considerado um dos mais notáveis ficcionistas noruegueses da atualidade: Pudor e Dignidade (“Genanse og verdighet”, editora Numa, tradução direto do norueguês por Grete Skevik), publicado originalmente em 1994. Suas cerca de 150 páginas podem ser lidas de uma só vez, graças à prosa fluida e percuciente, embora a assimilação pelo leitor não seja tão fácil e ligeira; é com a inquietação, o desconsolo e o amargor de uma crise do protagonista que veremos toda a sua vida ser revista e reavaliada a partir de um momento que parecia ser, a princípio, de iluminação e epifania, para logo se precipitar num abismo de ira, frustração e impotência.

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A Cura – por Matheus Araújo

No dia seguinte, chegaram na igreja discretamente. Jonas, de camisa social cinza, topete penteado para trás disfarçando a calvície, calça de linho e sapato bico fino; Eunice, com cabelos escorridos chegando nos ombros, vestido longo até abaixo dos joelhos e Bíblia na mão; Renato, o garoto, andava meio corcunda, torto, cabelo desgrenhado, olhando para baixo, tímido — os três entravam naquela pequena casa em que uma placa grande indicava: "Igreja dos Cavaleiros de Fogo de Jesus Cristo Nosso Senhor". 

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