Somos todos epicuristas

por Bernardo Lins Brandão

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Somos todos epicuristas. É no universo de Epicuro e em seu Jardim que nós, contemporâneos, vivemos, nos movemos e somos. Não que para isso precisemos ser filósofos: nosso epicurismo nos mais visceral que nossas vãs filosofias.

Fernando Pessoa, escrevendo como Álvaro de Campos, em seu famoso poema Tabacaria, fala no Esteves-sem-metafísica, como se o homem comum, com suas angústias e preocupações imediatas, pudesse escapar do fardo de uma visão da totalidade, isto é, de uma metafísica. Mas, como apontava Ortega y Gasset (Unas Lecciones de Metafísica), não consigo me orientar a respeito de nada se não tenho uma orientação com respeito de todas as coisas, se não formei antes um plano do todo, isto é, se não tenho uma metafísica”. A metafísica, para Ortega, é essa nossa orientação mais radical no mundo: “não é algo fortuito, algo que alguns homens chamados filósofos às vezes fazem, mas que muito bem poderiam não fazer”, mas, ao contrário, é “um ingrediente inevitável da vida humana”. Em outras palavras, “ela é inescapável, mesmo para quem nunca se aventurou na filosofia”.

Isso parece estar em contradição com a nossa experiência de um mundo em que, prisioneiros de um metaverso digital, parecemos nos tornar cada vez mais rasos. É que não penso aqui em uma metafísica filosoficamente desenvolvida, mas em uma metafísica tácita, que não aprendemos pelo estudo de manuais, mas que absorvemos da cultura à qual pertencemos, a partir de seus ritos, narrativas e possibilidades de existência.

Poderíamos falar em cosmovisão, termo amplamente empregado desde Kant em uma pluralidade de significados, mas, para ser mais preciso, prefiro usar a expressão imaginário metafísico. Entendo-a em analogia com o imaginário social de Charles Taylor, que ele vê como algo substancialmente mais profundo que um sistema intelectual e que consiste em um mapa imaginativo, na maneira “como as pessoas imaginam sua existência social, como elas se relacionam com outras, como as coisas acontecem entre elas e seus semelhantes e quais são as expectativas que normalmente são atendidas e as noções e imagens normativas mais profundas subjacentes a essas expectativas”.

O imaginário metafísico é algo assim. Ele é o mapa, constituído imaginativamente e não argumentativamente, pelo qual concebemos não apenas a sociedade, mas a própria realidade, em seus aspectos mais abrangentes e fundamentais, e por consequência, formulamos nossas mais básicas expectativas existenciais. Trata-se do símbolo da totalidade que cada um de nós possui, ao menos de maneira implícita, por meio do qual julgamos a verossimilhança de toda construção teórica posterior. Quando estamos diante de uma metafísica que não se mostra compatível com nosso imaginário, em geral, não chegamos a compreendê-la e a tomamos como improvável. É o que acontece, por exemplo, com o neoplatonismo, que parece absurdo aos homens de hoje, mas que revela seu sentido quando o analisado a partir do imaginário dos antigos.

Ainda que um imaginário metafísico esteja sujeito a variações individuais, ele é, em geral, compartilhado por uma cultura e serve, em alguma medida, como seu fundamento, o que acredito ser válido também para a nossa contemporânea cultura liberal. Assim, embora entenda, com Charles Taylor, que nossa era secular abriga uma pluralidade de visões de mundo, acredito também que exista um mínimo denominador comum metafísico, uma koiné imaginativa, da qual a maioria de nós compartilha. Mas qual seria ela?

Não se trata, obviamente, do imaginário medieval, magistralmente explicitado por C.S. Lewis em seu A Imagem Descartada, que dava sustento à síntese aristotélica que se desenvolveu nas universidades a partir do séc. XIII: uma totalidade, que se divide em planos ontologicamente diferenciados e hierarquicamente dispostos (o mundo corpóreo, o ser humano, os anjos, Deus), no qual a ordem das esferas celestes se manifesta como uma harmonia cósmica capaz de ser ouvida pelo sábio, não com os ouvidos, mas com a inteligência. Nosso imaginário metafísico é muito diferente: é um mundo metafisicamente plano, composto por um único nível, o corpóreo, que se reduz a átomos e vazio em um espaço infinito; um universo em expansão, que surgiu com o Big Bang, governado pelo acaso e pelo contato fortuito entre essas partículas elementares, que formam, sempre impermanentes, os corpos mais complexos.

Como falei, esse é um mínimo denominador comum. Não é difícil, em nossa cultura, encontrarmos pessoas que acreditam em Deus, espíritos ou uma indefinível energia cósmica. Mas tudo isso é objeto de crença pessoal, sem um lugar na razão pública e, portanto, nos debates que acontecem nas universidades, imprensa ou política. E acreditamos que seja justo assim proceder porque, é o que julgamos, nosso imaginário é superior ao de outras culturas e tempos, pois foi construído a partir da ciência.

Mas será mesmo assim? É que, se tirarmos a menção ao Big Bang e à expansão do universo, que, de fato, foram incorporados ao nosso imaginário após um intenso debate entre os físicos do séc. XX, a visão que apresentei – e que formulei propositalmente dessa maneira – já existia muito antes da ciência moderna: é a visão de Demócrito e Epicuro, mas, especialmente, de Lucrécio, cujo livro De Rerum Natura, deu vitalidade poética às especulações do atomismo antigo.

Se isso é verdade, no entanto, como fomos enfeitiçados pela filosofia de Epicuro a ponto de confundi-la com a própria revolução científica moderna? Com efeito, o epicurismo sempre foi um minority report na Antiguidade, a mais desprezada das filosofias da época, por seu suposto ateísmo (para Epicuro os deuses existiam, mas não se importavam conosco) e hedonismo (ainda que um hedonismo ascético). Na Idade Média, a situação era ainda mais desfavorável para um sistema de pensamento que buscava alcançar a tranquilidade da alma negando a influência do divino nos assuntos humanos. Apesar disso, o poema de Lucrécio foi preservado em dois manuscritos, que chamamos, nos dias de hoje, de O e Q. Recentemente, Stephen Greenblatt, contou-nos a curiosa história de sua redescoberta em seu bestseller A Virada: foi Poggio Bracciolini, secretário do antipapa João XXIII que voltou a colocá-lo em circulação. Após o antipapa ser condenado pelo Concílio de Constança, Bracciolini perdeu o emprego e, com tempo livre, passou a buscar manuscritos perdidos. Em 1417, na abadia beneditina de Fulda, na Alemanha, encontrou várias obras raras, entre elas, o De Rerum Natura (mais precisamente, o manuscrito O), que ele copiou e divulgou. Aos poucos, o poema começou a ser lido. 

Sua qualidade literária e conteúdo subversivo ajudaram-no a conquistar a simpatia de um grupo de leitores notáveis. No século XVI, o De Rerum Natura exerceu uma influência significativa no pensamento científico e filosófico, especialmente no que se refere ao atomismo. Girolamo Fracastoro, por exemplo, utilizou o poema para refletir sobre questões de medicina em sua obra Sobre o Contágio e as Doenças Contagiosas (1545). Giordano Bruno também foi influenciado por ele, em sua ideia de um espaço infinito e de infinitos mundos, ainda que seu vitalismo atomista não fosse exatamente um epicurismo. 

No século XVII, Daniel Sennert, professor de medicina em Wittenberg e seguidor de Bruno, desenvolveu, nos seus trezes Livros de Filosofia Natural (1618), uma defesa do atomismo. Mas o grande atomista da época foi Pierre Gassendi, que não apenas citava Lucrécio em seus textos, mas que também editou o livro X das Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio, dedicado a Epicuro. Gassendi não era apenas um filólogo, mas buscava reviver o atomismo como teoria física, tentando conciliá-lo, até certo ponto, com o cristianismo. Exerceu uma influência no materialismo de Thomas Hobbes, no atomismo de Robert Boyle e em Isaac Newton, que era um leitor do De Rerum Natura e que, como mostraram os estudos recentes sobre sua alquimia, estava formulando uma teoria atômica da matéria.

Foram muitos os momentos, no início da Modernidade, em que o epicurismo, por causa de seu materialismo hedonista, foi visto com desconfiança. Alguns epicuristas chegaram mesmo a ser perseguidos, de modo que ser um leitor de Lucrécio acabou por se tornar uma forma de resistência. É por isso que, durante o Iluminismo, quando os dissidentes se tornaram ilustres, a fama do De Rerum Natura cresceu e o poema se tornou uma alternativa à visão religiosa anterior. Voltaire escreveu um diálogo em 1756 intitulado Entre Lucrécio e Possidônio e, em sua obra Cândido, ao lado das críticas a Leibniz por meio do personagem do Dr. Pangloss, há a figura sábia de Martin, baseada em Pierre Bayle, outro seguidor do atomismo. Diderot, cosiderado o mais lucreciano dos iluministas, tinha como motto “E tenebris autem quae sunt in luce tuemur” (e das trevas, contemplamos o que está na luz), um verso do De Rerum Natura. Hume, por sua vez, parece não apenas ter sido influenciado pelo epicurismo em sua História da Natural da Religião e nos Diálogos Sobre a Religião Natural, mas também em sua teoria dos sentimentos morais.

Segundo Johnson e Wilson (Lucretius and the History of Science), quando, em 1808, John Dalton forneceu a primeira evidência experimental convincente para o atomismo, ele já era universalmente adotado. Dalton, ao que tudo indica, conhecia Lucrécio, ao menos indiretamente, por meio da obra de Boyle e de Newton. James Clerk Maxwell, que avançou o atomismo através da teoria cinética dos gases, falava, em 1873, em seu artigo Molecules, publicado na Nature em 1873, na “teoria atômica de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, e, posso acrescentar, deste professor”.

No entanto, mesmo no final do século XIX, o atomismo ainda não era uma unanimidade absoluta, recebendo críticas de cientistas como Ernst Mach e enfrentando oposição devido à falta de evidências diretas dos átomos, já que estes não podiam ser vistos, ainda que a teoria cinética dos gases manifestasse seu poder explicativo. Foi apenas no início do século XX que, segundo a narrativa convencional, ele se consagrou definitivamente nos meios científicos, sobretudo a partir do trabalho de Einstein de 1905 sobre o movimento browniano, que diz respeito ao movimento de corpúsculos suspensos em um líquido em repouso, que ele explicava como sendo o resultado de colisões entre partículas. Em 1909, os experimentos de Jean Perrin corroboraram a explicação de Einstein. Foi sobretudo a partir desse momento, é o que dizem, que as reservas em relação à teoria atomista foram amplamente superadas. 

Em suma, com a derrota do aristotelismo entre as classes letradas, a Idade Moderna se tornou um grande campo de batalha metafísico, que presenciou a tentativa de renovação do neoplatonismo na Florença renascentista, a volta do epicurismo e do estoicismo, e o surgimento de novas possibilidades com os sistemas de Descartes e Espinoza. Por fim, o epicurismo, ou melhor, o atomismo que se baseava nele, saiu vitorioso, crescendo em importância de maneira gradual até alcançar a vitória completa no início do séc. XX. 

Não acredito, entretanto, que isso tenha acontecido por causa de evidências científicas. O epicurismo venceu porque contava o poder da síntese imaginativa de Lucrécio. Foi um poeta, não o cientista, que fez com que Epicuro prevalecesse. É que imaginação precede a intelecção, e do nosso imaginário metafísico dependem, em alguma medida, nossas teorias científicas e filosóficas. 

Não é difícil perceber que não foi a evidência científica que consagrou o epicurismo na modernidade. Primeiro, porque o atomismo já existia, desde a Antiguidade, muito antes das evidências para ele. Segundo, porque os primeiros cientistas modernos que o abraçaram o fizeram antes que elas tivessem sido encontradas. Entre eles, podemos nos lembrar de Robert Boyle. Segundo Johnson e Wilson (op. cit.), ”metodologicamente, Boyle parece ter interpretado seus resultados, incluindo seus experimentos com a bomba de ar, em termos corpusculares, em vez de ter efetivamente derivado a teoria de uma base experimental”. E o seu não foi um caso isolado. Ainda segundo Johnson e Wilson, muitos cientistas da época buscaram associar seus experimentos à antiga doutrina de Epicuro, de modo a elevar sua pesquisa à dignidade da filosofia. Os argumentos para o atomismo no século XVII, eles continuam, ainda eram inconclusivos e sua persistência tem mais relação com “o charme da apresentação de Lucrécio e seu apelo à imaginação” do que com os resultados da investigação dos cientistas.

Além disso, no início do séc. XX, mesma época que o imaginário epicurista triunfava como visão de mundo, tomando para si o prestígio da ciência, experimentos científicos manifestavam os seus limites. O artigo de Einstein de 1905 sobre o movimento browniano e sua comprovação em 1909 foram pontos de inflexão para a aceitação do atomismo. No entanto, em 1911, Rutherford propôs seu modelo no qual o átomo é composto por elétrons, prótons e nêutrons. O átomo deixou de ser considerado indivisível e os corpúsculos elementares passaram a ser as partículas subatômicas. A partir daí, nada mais garantia a existência de um nível último da matéria que, de fato, não pode ser empiricamente demonstrado: nos anos 60, afinal, foram descobertos os quarks, que formam os prótons e nêutrons; e só não conseguimos avançar a níveis mais elementares, talvez, por uma limitação de nossos aceleradores de partículas.

Por sua vez, desde a experiência das duas fendas de Thomas Young em 1801, que manifestava o caráter ondulatório da luz, ao trabalho de Einstein, também de 1905 (que o fez ganhar o prêmio Nobel em 1921), que defendia sua natureza corpuscular, às contribuições de Louis de Broglie à física quântica, cada vez mais se tornou evidente que o que entendemos por corpúsculos a partir de nosso imaginário epicurista são entes que se comportam tanto como ondas quanto como partículas, sendo, portanto, uma outra coisa, para a qual não temos um imaginário adequado e que, assim, aparece para nós como um enigma.

É por isso que, em seu Physics and Philosophy, Werner Heisenberg, um dos pioneiros da mecânica quântica, afirmava que o atomismo antigo (ele fala em Demócrito, não em Epicuro) estaria mais distante das teorias contemporâneas que Heráclito, que, com sua noção do fogo como o princípio de todas as coisas, teria formulado um símbolo mais adequado para a equivalência, proposta por Einstein, entre matéria e energia; Platão, que, ao contrário de Demócrito, não pensava nos constituintes últimos da matéria como eternos e indestrutíveis, já que podiam se transformar uns nos outros, tal como as partículas subatômicas nos experimentos com os aceleradores; e Pitágoras, para quem os princípios últimos eram formas matemáticas.

Além disso, a noção epicurista de vazio, o não ser no qual os átomos se moveriam, é bem diferente do vazio quântico, que é regido pelas leis da física e que pode dar origem a partículas, justamente por ser uma forma elementar de materialidade. E o espaço infinito, por princípio, não pode ser provado cientificamente, já que só poderíamos constatar empiricamente o limite do espaço, nunca a ausência de um fim.

A própria noção de leis da natureza não consegue ser inteligível em nosso paradigma epicurista. Por que uma partícula subatômica, um elétron ou um próton, obedece às leis da física? Com efeito, a noção de leis da natureza vem de um momento da revolução científica na qual Deus não havia ainda se tornado, como após o iluminismo, uma “hipótese desnecessária”, para usar a expressão de Laplace. Para os primeiros cientistas, os entes materiais seguiriam as leis ditadas por Deus tal como os súditos de um monarca seguem as leis ditadas por ele. Falar como Hume que as leis da natureza são simplesmente regularidades que observamos não resolve o problema, pois nunca observamos essas regularidades serem violadas. E, se fossem, os cientistas estariam empenhados na busca por uma explicação, provavelmente baseada em leis mais amplas, justamente como aconteceu, na revolução científica do séc. XX, na transição entre a física newtoniana e a relatividade de Einstein.

Por fim, o próprio fato de sermos capazes de compreender o mundo se torna um mistério se estamos imersos no imaginário epicurista. Pois não é estranho que o conjunto de átomos que forma o cérebro humano seja capaz de descobrir a constituição última do universo, isto é, ser formado por átomos e vazio? Não é inverossímil que átomos, em uma certa disposição, possam descobrir a verdade última de que eles não passam de átomos? Para falar como David Bentley Hart, visto por um certo ângulo, o materialismo parece ser uma das maiores superstições já cultivadas pelo homem. 

Em suma, nosso imaginário metafísico epicurista, no qual confiamos por acreditarmos estar baseado na ciência, não resiste à evidência científica nem explica aquilo que é pressuposto para que a ciência seja possível. Um outro imaginário metafísico – alguma forma de vitalismo, o estoicismo, o espinozismo ou o neoplatonismo, seria mais bem sucedido. 

Por que então o epicurismo triunfou? Como falei anteriormente, pelo poder da síntese imaginativa de Lucrécio, que trouxe uma visão de mundo alternativa aos modernos dissidentes que acabaram por ascender ao poder após o Iluminismo e a Revolução Francesa. No entanto, essa não é toda história. Afinal, se apenas o poder da poesia fosse o que estivesse em jogo, talvez fossemos neoplatônico, como eram os primeiros cientistas da Idade Moderna, por influência de Dante e da Divina Comédia.

Bruno Latour, em seu Nós Nunca Fomos Modernos, nos dá uma pista, em sua interpretação do debate entre Boyle e Hobbes, dois pensadores influenciados por Gassendi, a respeito da existência do vácuo. Boyle acreditava que a questão deveria ser resolvida por experimentos; ele defendia a sua existência e a autonomia da ciência, que entendia como a investigação da realidade inanimada por meio de instrumentos de laboratório. Hobbes, por sua vez, um materialista que defendia a existência do éter, negava o vácuo, nas palavras de Latour, “por motivos ontológicos e políticos” e se recusava “a discutir o fenômeno em uma escala que não seja a da República inteira”. Duas posturas radicalmente diferentes, que, para Latour, dariam pistas sobre a estrutura íntima da modernidade, mas, que, a meu ver, unem-se em seus pressupostos: tanto Boyle quanto Hobbes são materialistas que estão preocupados com a autonomia, científica ou política, do ser humano. Uma natureza inerte, composta por pequenos corpúsculos, desprovida de um sentido divino (eis o sentido último da proposta de Epicuro, a libertação da angústia perante os deuses), tanto se presta à manipulação irrestrita do pesquisador quanto é incapaz de resistir ao arbítrio do soberano.

É enquanto pretexto para o projeto moderno guiado por uma vontade de poder, que se manifesta em uma civilização da técnica, por um lado, e em uma política da imanência, por outro, que o atomismo, via Lucrécio, tornou-se tão sedutor para as elites europeias a partir do Iluminismo. Outras perspectivas metafísicas (enquanto visões do Todo, pois o epicurismo, enquanto uma forma de materialismo, seria mais propriamente uma física) não seriam tão úteis: para os estoicos ou neoplatônicos, o homem não é o que há de mais elevado, mas, para além dele, existe um princípio vital, uma Alma do mundo (e, para os platônicos, realidades ainda mais elevadas: o inteligível e o Um), que se estende por todo o cosmos e que não pode deixar de ser levada em conta. Em uma realidade que não é inerte, mas que é viva em sua essência, a técnica e a vontade política não têm a palavra final. 

Não penso, entretanto, que o nosso epicurismo seja como o dos antigos. Ele é, antes, sua versão degradada, que, em vez de nos levar a ataraxia, nos carrega por uma espiral de ansiedade. A filosofia de Epicuro era um modo de vida que tinha como finalidade a tranquilidade e o prazer mais duradouro de simplesmente existir, em uma atitude contemplativa diante da natureza, afastado de ambições políticas. Os modernos o adotaram para a ciência pudesse agir sem limites e para que o poder dos políticos não tivesse uma instância superior a qual responder. 

Este nosso epicurismo enlouquecido teve o seu sucesso: trouxe novos ares para a política e favoreceu avanços tecnológicos. No entanto, mostra sinais de esgotamento. Em primeiro lugar, porque nos tira o sentido que descobrimos no cosmos, nos levando ao niilismo. Diante de um mundo inerte, incapaz de dizer qualquer coisa ao homem, filósofos como Nietzsche e Sartre celebraram a nossa capacidade de inventarmos nossos próprios valores e criarmos nosso próprio sentido. Mas este, que sempre foi o talento de um reduzido número de visionários e reformadores, nunca foi uma opção viável para a maioria das pessoas. É o que a nossa experiência do séc. XX e XXI de um universo em desencanto nos mostrou: não somos capazes de acreditar em um sentido que nós mesmos criamos; um sentido, para que seja acreditável, deve antes ser descoberto nos olhos do outro. 

Segundo, porque, ao nos ensinar a enxergar a natureza como um mero agregado de átomos, nosso epicurismo enlouquecido nos fez perder a experiência do cosmos como uma realidade viva, no qual, como dizia Tales, todas as coisas estão repletas de deuses, preparando, assim, o caminho para a agressão ambiental. Afinal, se tudo não passa de átomos e vazio, não há nada superior ao humano. Somos os senhores de todas as coisas e delas podemos dispor tal como queremos. 

Por fim, nossa política epicurista da imanência, na qual, em um mundo destituído de sentido, devemos estabelecer nossas próprias regras políticas, não nos dá freios para impedir que prevaleça, como dizia o personagem de Trasímaco na República, a conveniência do mais forte. Não somos nós, individualmente, que estabelecemos as regras, mas aqueles que dominam o jogo, que vencem a guerra de todos contra todos – pois o que resta além da guerra se não há nada maior que o conflito das vontades? Nosso capitalismo tardio, ou, para falar com Mark Fisher, nosso capitalismo realista, em sua ilusória inescapabilidade, é fruto de nossas escolhas metafísicas. 

O que nos resta fazer? Antes de tudo, tomar consciência de que somos todos epicuristas. Depois, entender que nosso imaginário metafísico atual não é um mapa completo do real. Não escolhemos ser epicuristas, nem podemos facilmente escapar de seu fardo. Um imaginário metafísico é construído socialmente e, assim, foge, em alguma medida, à escolha individual. Mas devemos entender que existem mais coisas entre o céu e a terra do que átomos e vazio. É nesse espaço desconhecido que podemos construir um mapa mais abrangente. E, se não somos capazes de deixar nosso epicurismo de lado, podemos, ao menos, torná-lo um menos neurótico e atormentado, mais próximo do que era praticado pelos antigos. Podemos tentar ser epicuristas verdadeiros, buscando a simplicidade, o contentamento e a contemplação. Se não conseguimos fugir do Jardim, podemos, ao menos, fruir de seu poder terapêutico e transformar a nós mesmos, de modo a encontrarmos, dentro de nós, a paz que queremos no mundo.

Seria isso suficiente para resolvermos nossos graves problemas? Provavelmente não. Talvez Heidegger estivesse certo em dizer que somente um deus pode nos salvar. Enquanto o aguardamos, podemos ao menos aprender, com Epicuro, a alcançar alguma eudaimonía neste breve momento que é nossa vida, recuperando, na medida do possível, o prazer de existir.