Morte Térmica

— por Marcel Novaes

Eu estava no primeiro ano do colegial e devia ter uns 15 anos. Meu melhor amigo era o Pedro. Naquele dia já era o final da tarde quando fui até a casa dele. Minha mãe quase não me deixou sair, disse que o tempo estava fechando e ia chover, mas eu expliquei que seria rápido. O Pedro tinha comprado o gibi Arma X, que trazia a história da origem do Wolverine. Acontece que os X-Men eram nossos heróis favoritos e estávamos ansiosos por aquela edição.

Fui a pé, apreciando o pôr do Sol. No oeste, a luz vermelha refletia na parte de baixo das nuvens e as deixava rosadas. Do leste, vinham as nuvens escuras de chuva que tinham feito minha mãe tirar a roupa do varal. Mas ainda estavam longe.

Meu amigo estava tomando banho. Enquanto eu esperava, o pai dele, seu José, puxou conversa comigo. José era um cara que sabia fazer de tudo, montara uma oficina no fundo da casa onde as crianças não podiam entrar. Lá ficavam guardadas ferramentas de todo tipo, alicates, ferro de solda, serrotes, serras, lixas, chaves de fenda e de boca, vários tipos de cola e milhares de pregos e parafusos. O senhor José estava acostumado a desentupir a calha, consertar o motor do carro, montar as estantes, pintar o muro e usava um rádio que ele mesmo tinha feito. Ele era esse tipo de sujeito.

Estávamos os dois sentados no sofá. A televisão ligada no jornal. José tinha canelas brancas, cobertas de finas veias roxas. As unhas dos seus pés eram grossas e amareladas. Eram horríveis e eu tentava não olhar para elas. Perguntou se eu tinha namorada, desconversei. Depois quis saber de qual aula eu mais gostava na escola, eu disse que era física. Eu já tinha ouvido falar da segunda lei da termodinâmica? Respondi que não.

Ele explicou que, de acordo com essa lei, a entropia do universo sempre aumenta. As coisas estão sempre se expandindo, esfriando e ficando bagunçadas. O cosmos evolui de maneira irreversível, rumo ao caos total chamado de morte térmica.

— É um caso particular de um princípio mais geral, que determina tudo o que acontece, não só os processos físicos e químicos mas também a biologia, a cultura e a história — foi mais ou menos isso o que ele disse, de modo professoral.

Olhei para ele espantado. Não sabia que além de ser um cara prático ele também curtia essas teorias. Conhecer o princípio que determina tudo quanto é coisa na vida e no universo parecia ser uma coisa legal pra caramba.

Ele me observou durante um tempo sem dizer nada, como se estivesse me avaliando. Olhou na direção do banheiro, onde Pedro estava tomando banho, depois me convidou para ir com ele até a oficina, disse que queria me mostrar uma coisa. Eu não queria ver nada na oficina, não levava jeito para trabalho manual, mas não tinha alternativa. José já estava se levantando e o imitei. Enquanto andávamos pela casa, eu espiava seus pés e ele ia falando.

— Tudo que existe está sempre decaindo. Essa é a lei da vida, meu jovem. O tempo vai introduzindo falhas, defeitos, erros. Se ninguém age para prevenir e corrigir esses erros, eles se acumulam. As pessoas envelhecem, as coisas envelhecem, o mundo envelhece. O que era harmonioso se torna confuso, o que era puro se corrompe. Isso vale também para civilizações, como Spengler deixou bem claro.

Eu não estava nem aí para aquele papo. Não prestava atenção nem aos professores, muito menos a conversa de pai. Mas tentei sugerir, com um silêncio atento, que entendia tudo. Quando paramos na porta da oficina, trancada com um cadeado reluzente, ele pegou um molho de chaves no bolso.

— Os povos precisam tomar sempre cuidado para que sua cultura não se corrompa. A cultura é uma coisa delicada. Não acha?

Concordei com um murmúrio enquanto olhava para o céu. Um trovão abafado tinha rolado lá por cima. Já estava escurecendo.

Ele entrou e acendeu a luz. Eu hesitei, preferia que o Pedro aparecesse e fôssemos ler nosso gibi, ou ouvir música, ou até fazer os deveres de casa. Pelo menos eu e o senhor José podíamos conversar sobre aqueles assuntos lá na sala, com a televisão ligada. Busquei com os olhos a direção da casa, procurando algum sinal do meu amigo, mas não vi nada. De cabeça baixa, entrei.

Várias ferramentas estavam penduradas em um quadro preso na parede. José tinha desenhado o contorno dos objetos no quadro, para que cada um ficasse exatamente em cima da própria sombra. Era um cara bem organizado. Uma grande bancada ocupava o centro da oficina, em torno da qual ele deu a volta, indo parar bem no canto. De lá, ficou me olhando.

— Gobineau escreveu que, quando uma nação não tem aristocracia, ela morre. O povo, a massa, só pensa em dinheiro, e o dinheiro corrompe a alma. Tem como discordar disso?

Eu não estava acompanhando o raciocínio, muito menos aqueles nomes estranhos. Eu gostava de dinheiro, meus pais gostavam de dinheiro. Mas eu não ia dizer isso. Estava olhando as caixas armazenadas lado a lado na estante de metal. Elas pareciam não ter sido jamais abertas, estavam ali empilhadas desde sempre. Antes de eu nascer aquelas caixas já estavam ali tomando pó. Eu tentava imaginar o que elas continham e o que nós dois estávamos fazendo ali.

— Hoje em dia, nenhum país possui uma verdadeira aristocracia. É por isso que o mundo está piorando rapidamente. Uso de drogas, mistura de raças, individualismo, essas coisas estão acabando com a civilização. O último grande esforço para tentar impedir isso, para tentar recuperar uma cultura decadente e proteger uma nação, foi feito há quase cem anos.

Enquanto falava, José se aproximou de um conjunto de latas metálicas redondas, enferrujadas, sem identificação nenhuma, e pegou a menor. Abriu e começou a remexer dentro dela. Enquanto isso, eu estralava os dedos e tentava arrumar uma desculpa para sair dali. Pensei em dizer que precisava ir ao banheiro, ou mencionar a chuva que estava chegando.

— Nietzsche, Fichte, von List… Eles tentaram. Quem sabe menos tem que se resignar a aprender com quem sabe mais. Concorda? Você aprende com seus professores, não é?

Assenti com a cabeça, sem muita ênfase.

— Quem tem menos clareza acerca do caminho deve seguir seus líderes. Quem tem menos força de vontade precisa se submeter a alguém mais forte. Não há outra maneira. Contrariar esses princípios é contrariar a natureza.

Ele finalmente tirou alguma coisa de dentro da latinha.

— Venha até aqui.

Eu me aproximei dele bem devagar. Será que queria me dar algum susto? Não dava para ver o que tinha na mão. Ele não olhava para o objeto, seus olhos estavam fixos em mim. Parecia impaciente para que eu me aproximasse.

Parei ao seu lado. José passou o braço esquerdo por trás da minha cabeça e pousou a mão, quente e pesada, no meu ombro. Eu não sabia dizer se aquele cheiro estranho vinha do ambiente fechado ou se vinha dele.

A mão no meu ombro exerceu leve pressão para que eu me aproximasse, leve o bastante para que fosse possível resistir sem deixar a situação ainda mais estranha. Eram passos que eu tinha ouvido ali fora? Seria o Pedro se aproximando? Será que meu amigo ficaria surpreso em ver seu pai praticamente me abraçando dentro daquela oficina, ou iria entrar e fechar a porta? Tive vontade de estar em casa, com minha mãe.

José finalmente abriu a mão direita e, ali dentro, estava uma moeda. Fiquei esperando para ver o que ele ia dizer, mas já tinha concluído que o cara era meio doido. Tanto drama por um negócio banal daqueles? Uma moeda velha?

A imagem na moeda era o rosto de um homem, de perfil, com algumas palavras em volta que não dava para entender. Com um movimento da mão, ele fez a moeda virar. Do outro lado, havia um número 5 e a imagem de uma águia, pousada sobre uma coisa redonda. Dentro da coisa redonda, uma suástica. Em volta disso, as letras pareciam ser Deutsches Reich 1938, ou coisa parecida.

Estendi a minha mão para pegar, mas ele fechou os dedos. Abaixei meu braço, envergonhado. Se não era para pegar, por que mostrar daquele jeito? Achei que fosse me repreender, mas ele não disse nada, apenas abriu a mão novamente. Perguntei se era uma moeda nazista.

— Não use essa palavra. Este homem é o marechal Paul von Hindenburg. Um idiota bunda mole. Seu maior erro foi nomear como chanceler da Alemanha um outro idiota, mais perigoso, chamado Adolf Hitler.

Finalmente aparecia um nome que eu já tinha escutado antes.

— A maioria das moedas alemãs dessa época traz a imagem de Hitler, mas eu prefiro esta, com o marechal. É o menos idiota dos dois.

Uma moeda nazista… aquilo tinha o seu charme. Eu queria pegá-la e sentir seu peso, talvez jogá-la para cima rodopiando, mas estava claro que ele não iria deixar, então me contive.

— O que aqueles idiotas fizeram foi pegar uma coisa correta e acabar com ela. Fizeram uma puta cagada.

Perguntei que coisa correta era essa.

— O arianismo, é claro. As raças são diferentes, não são? Olhe para um homem nascido na Dinamarca e para um homem nascido no Congo. Não são diferentes? Ou são iguais?

Dei uma tossida antes de responder.

— Bom, com certeza não são iguais… quer dizer…

— Pois então! Nenhum é melhor que o outro, mas são diferentes. Os seres humanos estão divididos em raças, isso é uma coisa óbvia, e cada raça tem sua cultura, suas origens. Depois que as raças começaram a se misturar, inevitavelmente entraram em conflito e tudo deu errado no mundo, aumentaram as guerras e as desgraças.

Eu ouvia aquele discurso quase sem respirar. A mão sobre meu ombro estava me apertando um pouco, mas eu não tinha coragem de retirá-la. Seu rosto estava próximo do meu. A barba dele estava por fazer, era grisalha e aparentava ser tão áspera quanto as lixas que eram usadas naquela oficina.

— A ideia arianista estava certa: manter a pureza da cultura. Mas deixaram o idiota do Hitler estragar tudo. Ele não entendia nada do assunto, queria eliminar as outras raças. Um jumento. Nenhuma raça tem direito de eliminar outra. Anos depois, os próprios judeus e os negros entenderam melhor a idéia e começaram a lutar com unhas e dentes para proteger sua cultura e preservar sua raça. São mais inteligentes que o Hitler. O que não é difícil.

O cara era doido mesmo. Não tive tempo de dizer nada porque lá de dentro da casa finalmente chegou até nós a voz do Pedro, que chamava pelo pai. José soltou meu ombro. Aliviado, dei um passo para trás.

Pareceu que um encanto tinha se quebrado e o mundo voltara ao normal. Seu José era de novo só o pai do Pedro. Ele olhou a moeda, suspirou e guardou-a de volta.

— O Brasil é o pior dos casos, é a mistura completa, a degradação máxima. Nós aqui já estamos no beco sem saída, sentimos os efeitos fatais da entropia, caímos nos braços da morte térmica da cultura.

Ele falava consigo mesmo. Fechou a lata, colocou-a na estante e foi saindo, arrastando os pés de unhas podres, como se tivesse se esquecido de mim. Esperou que eu saísse da oficina e trancou de volta o cadeado reluzente.

Depois de tantos anos, eu me lembrei dessa história hoje. Pensei no Pedro durante o dia todo, mas esse episódio em especial só me veio à cabeça quando precisei pegar algumas moedas para dar a um pedinte, o magrelo sem camisa que tinha ficado guardando meu carro durante o funeral.