Este inominado espetáculo: a arte de Nigel van Wieck

– por Pedro Rocha Souza

« The supreme importance
Of this nameless spectacle
Sped me by them
Without a word»

William Carlos Williams

1

Dos muitos temas aos quais um artista pode se voltar, os cotidianos, os da vida de todos os dias, talvez sejam os mais desafiadores. E desafiadores não porque sejam eles estéreis ou desimportantes; mas desafiadores justamente porque a sucessão dos eventos que os compõem faz muitas vezes com que eles se tornem insípidos para nós. Mais: essa sucessão de eventos, onde tudo se confunde, ajunta muitas vezes uma brevíssima beleza a uma homérica futilidade, como um belo acorde que se perdesse numa dissonância; como tímidas palavras de amor ditas entre os alaridos duma algaravia.

Assim, para qualquer artista talvez não haja virtude mais apreciável do que aquela keen observation da qual tanto falam os americanos. É ela quem tornará o artista, para dizê-lo nas palavras de Rodin, o confidente da natureza (e por natureza entende-se tudo aquilo que há sob o sol); é ela quem lhe dará aquele ar de ourives: o artista vasculhará terras e homens, e limpará, lapidará e engastará numa forma em que se possa ver melhor, tudo aquilo de valioso que encontrou. É só depois destas singelas belezas salvas de uma futilidade homérica que poderemos dizer, como Keats: ‘‘a thing of beauty is a joy forever’’. 

Nesta tarde, é assim, como jóias de uma fineza irrepreensível, que aparecem para mim os quadros de Van Wieck. De um cotidiano que às vezes possa nos parecer tão exaustivamente conhecido, os olhos do pintor tomam da vida um gesto, um olhar, uma cena, e, desse modo, transfigurado pela imaginação de Van Wieck, o real já nos aparece naquilo que tem de mais poético. Seus olhos parecem estar atentos a tudo, e em tudo parecem sempre encontrar beleza: ora ele a encontra numa garota solitária sentada num dos assentos de um vagão de metrô, como em Q-train, ora numa praia lotada, com cores em profusão, como em Back to the Island; ora, ainda, num ambiente silencioso como o de The Staten Island Ferry. Van Wieck atravessa paisagens, passa por vários homens e mulheres, e desta longa caminhada que parece ser sua arte, retira dela um instante de beleza que fixa através dos seus pincéis.

É bem menos ‘‘pictórico’’, bem menos ‘‘estilizado’’ do que, por exemplo, um Eric Fischl, para compará-lo com um contemporâneo. Para além da técnica, que Van Wieck demonstra dominar facilmente, seu estilo está menos nos gestos do pincel do que na escolha de temas, na mise-en-scène, na escolha consciente de cada detalhe que se enxerga em suas telas, e isto nos mostra que nada em sua arte é fortuito: se gastarmos algum tempo diante de suas pinturas, podemos perceber que cada cena, cada gesto, cada elemento presente nelas resulta daquela paciente e virtuosa atenção do pintor. Van Wieck parece querer esconder o traço ‘‘pictórico’’ de seus quadros, quer fazer com que sejam vistos como cenas fotografadas ao acaso, e é isso, sobretudo, que os faz tão naturais: Van Wieck tem o raro talento, como tinha Vermeer, de fazer cenas que foram meticulosamente pensadas parecem extremamente naturais (afinal, o que Van Wieck busca é o realismo).

Essa sua atenção de ourives (que perscruta o real só para, através de sua imaginação, transfigurá-lo em obras de vivacidade, sinceridade e realismo incomuns), é preciso que nós a admiremos. E é somente quando nós a admiramos que compreendemos uma de suas afirmações: “inspiração é para amadores”. De fato, suas telas parecem provar que, para Van Wieck, o começo de um bom quadro é apenas sair de casa e se atentar à vida — e este modo de criação evoca um dos conselhos de W. Carlos Williams: “O propósito de um artista, não importa qual seja, é tomar da vida, tudo aquilo o que ele vê, e alçá-la àquela elevada posição onde ela possa se tornar digna”.

2

Inglês morando nos Estados Unidos desde 1979, em seus quadros Nigel van Wieck parte de temas tomados da vida estado-unidense, sobretudo da cidade em que vive, Nova York. E é com cenas e figuras tomadas da América de nossos dias que sua obra atualiza a tradição da pintura realista americana. Pelo grande valor que suas obras testemunham, Van Wieck tornou-se o herdeiro dessa tradição, e põe-se ao lado dos grandes mestres da escola, como Thomas Eakins, Winslow Homer, John Sloan e Edward Hopper.

Mas é justamente pelo fato de Van Wieck nos aparecer como um mestre do realismo americano que surgem alguns problemas. Talvez o maior deles: suas pinturas são frequentemente associadas às de Hopper, e, assim, a imagem de um Van Wieck hopperiano tornou-se popular, quase uma associação imediata por parte de alguns. Mas a verdade é bem outra: uma análise mais demorada de seus quadros revelará um pintor bem distinto de Hopper. Na verdade, revelará um pintor de quadros opostos aos de Hopper. Gostaria agora de traçar uma comparação entre as obras dos dois pintores, na tentativa de tornar mais claro o que é próprio de cada uma delas.

Em primeiro lugar, poder-se-ia apontar para a diferença entre o gosto gestual dos dois dois pintores. Enquanto as figuras de Hopper são quase sempre contidas, de movimentos lentos, diríamos até rígidas, as de Van Wieck mostram-se numa liberdade gestual muito maior. Poses como as que vemos em Catch the Sun, The Spider and the Fly, Upstaged e Morning Stretch jamais poderiam ser pintadas por Hopper.  Algumas figuras femininas de Van Wieck — flexíveis, sensuais, cheias de curvas — jamais teriam espaço na arte do mestre nova-iorquino. E este caráter quase escultórico de suas figuras é evidente demais para que possamos equipará-las com as de Hopper. Gestos livres, uma maior naturalidade, um quê de hedonismo: são assim as figuras de Van Wieck, e assim jamais poderiam ser as de Edward Hopper.

Em segundo lugar, enquanto as emoções em Hopper são quase sempre indefiníveis, nos quadros de Van Wieck o mundo emotivo de suas figuras já é bem mais identificável. Muitas vezes taciturnas, compenetradas, as figuras de Hopper não nos permitem quase nunca entrever algo daquilo que se passa com elas: estão encerradas em seus mundos interiores. Nas de Van Wieck, ao contrário, já podemos notar emoções mais claras: ora um prazer hedonista, ora um desejo, ora um tédio, ora simplesmente um momento de introspecção. Muitas vezes o mundo emotivo de suas figuras abre-se diante de nós, como na maravilhosa pintura hedonista Girl Reading, mas também há cenas alegres e dançantes como as de Deesse du sloir e Cut the Rug. Enquanto Hopper constrói sua narrativa excluindo o mundo emotivo de suas personagens, não deixando que elas exprimam nada, sempre sob a penumbra de sentimentos desconhecidos, na obra de Van Wieck é, por vezes, a clara emoção das figuras que constrói a força narrativa da imagem: quadros como Dead End, Night Watch e Waiting são prova disso.

E, por fim: tudo em Hopper é silêncio. Será difícil encontrar em Hopper a cidade em movimento, imaginar vozes que se confundem em conversações ou mesmo sons de motores, enfim: todos os sons que conhecemos bem. Nas pinturas de Van Wieck, ao contrário, ao menos em algumas delas, nós já ‘‘adivinhamos’’ estes sons: há gente a conversar, a tomar alegres duchas nas praias, há a conversa íntima de um casal na cama, e mesmo risadas em festas noturnas. Pinturas como Telling Tales, Back to the Island, Hearts on the Beach ou Masked Ball jamais encontrariam lugar no projeto estético de Hopper: não são elas cenas suficientemente silenciosas para o gosto do mestre nova-iorquino. E enquanto Hopper parece ser um pintor de cenas estáticas, as pinturas de Van Wieck surgem para nós cheias de movimento, profundamente dinâmicas, por assim dizer.

É claro que em ambos encontramos um talento extraordinário para criar tensão narrativa; ambos trabalham extraordinariamente bem luz e cor; ambos sabem transfigurar o real através da imaginação e do senso artístico. Mas quando penso em Hopper, penso em Hotel Room: uma figura feminina compenetrada, imersa num silêncio profundo, confinada em seus sentimentos indecifráveis, mulher solitária em viagem, num cenário que evoca uma narrativa desconhecida. Quando penso em Van Wieck, lembro de The Flute Player, pintura pela qual me apaixonei e que é minha favorita do pintor: penso em sua figura feminina langorosa, a dormir um sono tão doce, mulher a quem a luz que entra pelas janelas banha, fazendo com que ela resplandeça, como se a luminosidade do quadro viesse dela mesma. The Flute Player: uma das figuras mais sensuais que já vi, trabalho de cor e luz irrepreensíveis, uma visão absolutamente poética e sensual do feminino, e na opinião deste que escreve, um dos mais belos nus já pintados, ao qual não posso deixar de adjetivar senão como obra-prima. A arte de Van Wieck não deve nada à de Hopper. Comum entre os dois é apenas o fato de serem ambos pintores realistas americanos.

No entanto, se fosse necessário apontar algo de próximo entre Van Wieck e Hopper, eu diria que ambos me parecem pintar a partir de um mesmo espírito, espírito este sob o qual Hopper afirmou pintar, em entrevista a Brian O’Doherty, em 1964: “Goethe declarou, ‘o início e o fim de toda atividade literária é a reprodução do mundo que me cerca através do mundo que está em mim, todas as coisas apreendidas, relacionadas, modeladas e reconstruídas numa forma pessoal e numa maneira original. Para mim, isso se aplica à pintura, fundamentalmente, e sei que há… muitas opiniões diferentes sobre pintura; agora, muitos protestarão que esse é um modelo ultrapassado e datado, mas eu penso que ele é fundamental”.

Se Van Wieck pinta a mesma América, a mesma Nova York de Hopper, ele já a pinta de uma maneira estritamente pessoal e diversa. Sua obra é valiosa por valores bem outros. É pelo fato de ser capaz de transfigurar de maneira tão pessoal e sincera a realidade em que vive que Van Wieck aparece como um dos mestres da pintura contemporânea.

3

A arte de Van Wieck também aparece para nós como pinturas que nos pedem tempo e atenção. Isto é, como toda boa pintura, as suas foram feitas para ser apreciadas. É preciso que gastemos tempo observando cada uma delas, que as conheçamos calmamente. Numa época de olhares inquietos como a nossa, diante de seus quadros é preciso que o espectador vá, pouco a pouco, descobrindo suas belezas profundas; que vá, pouco a pouco, apreciando o uso da luz, da cor, do arranjo, do gesto, a narrativa a se construir ou a se apagar.

Por mais que suas telas encontrem um imenso sucesso nas redes sociais, que estampem capas de livros, que sejam tomadas como modelos para fotos, que muitos as usem como papéis de parede de seus notebooks e celulares, elas foram feitas para as velhas molduras, para ser penduradas nas paredes e para servir como objetos de imenso valor estético. Não é inútil relembrar: Van Wieck é pintor figurativo, e isto faz com que suas obras nos peçam tanta atenção quanto a vida. É preciso que o nosso olhar repouse sobre elas, quase como que em slow-motion.

É sobretudo por nos devolver esse prazer temporal da apreciação pictórica que nós devemos lhe agradecer. Suas pinturas são um modo de atiçar nossa apreciação estética, de aguçar o nosso olhar para as cenas do cotidiano; mas também são, muita vezes, um convite para que nos entreguemos àquele dolce far niente. Que os anti-hedonistas passem longe de seus quadros!

A obra pictórica de Van Wieck é também uma amostra de que o ideal da pintura representativa não morreu. Nela, o tão antigo prazer estético de representar o mundo se renova numa arte sempre sóbria em relação à técnica, mas também profundamente imaginativa, cativante e sensual. É curioso que estes quadros que representam cenas que se passam tão depressa possam ser admirados por tanto tempo.

4

Pus como epígrafe estes versos de William Carlos Williams: “A suprema importância / desse inominado espetáculo / fez com eu acelerasse ao passar por eles / sem dizer palavra.”[1] Nesta tarde em que mergulhei nas obras de Van Wieck, relembrei muitas vezes dos versos d’O direito de passagem.

Talvez o mais cativante na obra de Van Wieck seja o fato de que toda ela é feita da mesma matéria que nossa vida; que ele lance um olhar àquilo que já é por todos conhecido, àquilo que talvez nenhum de nós se atente em meio aos nossos afazeres diários, e que disto ele consiga tirar tanta beleza. Sua arte aparece para nós como um ato de fé de quem crê que a vida (esta nossa vida, deste nosso século) ainda seja capaz de evocar verdade e beleza. Um ato de fé na capacidade do artista de voltar-se àquilo que bem conhece e, pela força criativa de seu talento, transfigurar o real em arte, e em arte das melhores. Recordemos, mais uma vez, de uma de suas afirmações: “inspiração é para amadores”. Sua arte inteira é a prova disso: Van Wieck demonstra através de suas pinturas que há na vida de todos os dias uma superabundância de beleza, bastando apenas que nos esforcemos para encontrá-la. Depois de um mergulho profundo em suas pinturas, saímos como se tivéssemos acabado de lavar nossos olhos. Como se aquela luz que Van Wieck diz querer pintar tivesse iluminado o mundo inteiro.

E é assim, admirado com arte deste mestre contemporâneo, afirmando-o ser o maior pintor realista de nossos dias, que encerro este texto. E se pus aqueles versos de W. Carlos Williams como epígrafe, permita o leitor que eu cite alguns outros, do mesmo poema, que me parecem ter o gosto de um dos quadros de Van Wieck: ‘‘Por que me importaria o rumo? / e lá fui rodando sobre as / quatro rodas do meu carro / pela estrada molhada até / que vi uma moça com uma perna sobre / o parapeito de um balcão.’’


Pedro Rocha Souza é natural de Fortaleza, e vive em Florianópolis. Escreve e pensa sobre as Artes Visuais, sobretudo Pintura.