Vinte anos da visita da saúde – de que morreu o futebol brasileiro?

– Milton Gustavo Vasconcelos

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Há poucas semanas, o pentacampeonato de futebol da seleção brasileira completou 20 anos. Muitos têm falado de como nas duas décadas que a ele se seguiram o futebol nacional entrou em franca decadência e de como nossos clubes não conseguem mais fazer frente aos europeus e blá-blá-blá. Reconheço cada um desses fatos e choro junto com vocês as mesmíssimas pitangas.

30 de junho de 2002 é uma data a ser lembrada, sem dúvida, mas não foi exatamente o dia em que o futebol brasileiro morreu. Foi, talvez, o dia do último sorriso, do último abraço de moribundo. Foi a “visita da saúde”, como diriam os sertanejos, aquele último pulso de alegria que permite aos moribundos se despedir dos seus. Parecia fulgurar, mas agonizava, agonizava e não sabíamos.

Morreu apenas seis meses depois, dia 15 de dezembro de 2002, sem despedidas, sem discursos, sem alarde. Morreu e ninguém percebeu. Foi para uma vala comum, como tudo que é sublime e incompreendido. Morreu e todos foram cúmplices: imprensa, técnicos, torcedores. Todos queriam um campeonato “moderno”. Nesse dia, duas décadas atrás, o Santos de Robinho e Diego, que houvera feito uma campanha medíocre durante todo o torneio, bateu um sólido Corinthians, em plena capital paulista, sagrando-se o último campeão do Brasileirão com mata-mata, ou, simplesmente, o último Campeão Brasileiro.

As cenas do garoto magrinho, partindo com suas pedaladas para cima do experiente Rogério, que recuou até se precipitar e derrubá-lo, ficaram para sempre em nossas memórias. O mesmo moleque de 18 anos botou a bola embaixo do braço e fez o gol do título, em plena casa do adversário, como num filme B. O 8º colocado foi campeão; foi o último suspiro do campeonato mais injusto, caótico e divertido do planeta; do campeonato mais brasileiro do planeta.

 No ano seguinte importaram da Europa os “pontos corridos”; veio o título do Cruzeiro, com 200 rodadas de antecedência. O jogo decisivo foi: Cruzeiro 2×1 Paysandu (22º Colocado). Desde então, a prancheta substituiu o craque; o preparo físico substituiu o talento; o planejamento e a grana substituíram a magia e nosso jogo se tornou um pastiche pálido do campeonato inglês (ou escocês, o que for pior).

O escritor Pedro de Almendra publicou recentemente um ensaio, uma pequena obra de arte, em que explica como o futebol brasileiro foi forjado sob o caos espacial, como nossas cidades e nossas vidas. Mas complemento: o futebol brasileiro é o jogo do caos no espaço e também no tempo! Nossos torneios não nasceram para ser planejados por anos, como se fossem lavouras; mas sim para se resolverem num estalo, como um truque de mágica ou um beijo roubado.

Os antigos campeonatos eram o reino do craque, do que nunca ficava nervoso, do que achava o gol milagroso, do que humilhava o adversário, porque eram também o reino do instante. Criamos então uma geração de jogadores resistentes à pressão e à hostilidade da torcida, à corneta da imprensa, às investidas dos zagueiros; uma horda de kamikazes, que não respeitavam ninguém e eram respeitados por todos; que nunca se adaptavam na Europa, e que os europeus não podiam vencer. O boleiro, aquele de quem não se exigia a boa forma em 38 jogos, mas sim uma falta na gaveta na final contra o Bangu ou o Criciúma, desapareceu. Ficaram só os atletas; correndo… correndo… não se sabe para onde.

 Com o fim do mata-mata, desapareceu ainda toda uma fauna, que povoava nossos gramados e imaginários. Não existe mais o catimbeiro, jogador especialista em provocar o adversário e retardar partidas; nem o corneteiro, aquele fulano que dizia que ia fazer gols e os fazia. Acabaram-se os talismãs, os Tupãzinhos, os Dineis, os Basílios, os Mauricinhos, sujeitos que entravam em campo faltando cinco minutos para acabar a partida e “achavam” o gol que decidia o campeonato. Não… Estamos em outra época: os catimbeiros seriam amarelados e perderiam o próximo jogo (todos são decisivos e, quando todos são decisivos, nenhum é); os corneteiros levariam um cagaço do assessor de marketing do clube e os talismãs não resolveriam campeonato nenhum… o campeonato já estaria resolvido, num gol de pênalti, marcado pelo VAR, no 1×0 contra o Red Bull Bragantino.

Este ano não vai ter Felipão mandando engessar o pé do Arce, para enganar o técnico da Portuguesa, nem Tupãzinho entrando nos 5 minutos finais e fazendo o gol do primeiro título do Timão. Aliás, nunca mais vai ter Tupãzinho, acabaram-se os apelidos; nossos jogadores agora têm nome e sobrenome, escrito direitinho, do jeito que está na ficha da federação, assim fica mais fácil quando forem transferidos para a Europa ou para a Arábia. Garrincha, Zico, Pelé, Vavá, Tostão, nunca, nunca mais…

E infelizmente este ano tem mais pontos corridos. Mais desse labirinto infindável de um a zeros e zero a zeros que nos toma o ano todo, achatando os estaduais, evitando o Rio-São Paulo e outros torneios de boleiros. Mergulharemos de novo nesse labirinto de tática, nesse triunfo de planejamento, nesse deserto do encanto, nesse puxadinho das escolinhas de futebol, nesse túmulo dos craques.

No final do ano os nossos olhos, fatigados de mediocridade, lerão a insossa manchete: “Com altos investimentos e um gestão competente __________ se sagra Campeão Brasileiro pela __ vez, com __ rodadas de antecedência.” E a lembrança do futebol antigo doerá de novo, como um nervo exposto, como uma chaga aberta, como um ingresso para um clássico perdido no bolso de um torcedor descuidado.

– E este ano tem de novo: o mais justo, previsível e pasteurizado de todos os campeonatos… O menos brasileiro dos campeonatos.