O espaço holandês e o espaço brasileiro

– futebol, pintura e arquitetura como maneiras diferentes de ver o mundo

Você joga futebol com a sua cabeça, as pernas não passam de instrumentos auxiliares.” – Johan Cruyff

Diante dele, que não pensa, todos nós, que pensamos, somos uns lerdos, uns bovinos, uns hipopótamos.” – Nelson Rodrigues a respeito de Mané Garrincha

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Em um estudo a respeito do futebol holandês, o pesquisador inglês David Winner1 compara o modo como Cruyff e Michels pensavam o campo de futebol com a maneira tipicamente holandesa de se aproveitar os espaços, manifesta também na pintura e na arquitetura. “Há uma maneira holandesa de ver o espaço e a paisagem”; e assim como foi em Amsterdã, onde enormes canais artificiais de água cortam as quadras em forma de grade, que a idéia de “cidade planejada” se encarnou em perfeição, foi também por meio da famosa seleção holandesa de 1974, sob a tutela de Rinus Michels, o “General”, que o mundo conheceu o “futebol total” e descobriu que o tamanho de um campo de futebol é uma variável plástica e manejável. Assim como a figura humana é um elemento de menor importância nos quadros de Bruegel e de Saerendam, o talento individual, essa variável imprecisa e traiçoeira na qual ainda confiamos cá deste outro lado do Atlântico, é irrelevante no sistema da laranja mecânica.

A lógica por trás da seleção de 1974 é simples: o time que passa mais tempo com a posse de bola, e não o que tem os melhores jogadores, controla o jogo. O talento do craque adversário é, afinal, irrelevante se ele não encontrar ocasião para exercê-lo – “sem a bola”, escreve Johan Cruyff, “não se pode vencer”. E qual o segredo para manter a posse de bola? Estender os espaços. Em vez de a perseguirem amontoando-se à sua volta, os jogadores aguardam pelo percurso da bola – que se move em passes curtos e precisos– nos seus respectivos setores. O campo inteiro, dessa forma, é ocupado por todos os jogadores, os quais, por não possuírem posições fixas, são intercambiáveis entre si. A bola pode estar nos pés de qualquer um, pois todos são igualmente valiosos (ou desimportantes). Não é dever do camisa 10 fazer a bola chegar aos pés do 9, e não é dever do 9 fazer o gol. Não há protagonista, não há herói; há funcionários de um mesmo mecanismo – um carrossel – encarregado de fazer com que a bola circule pelo campo – em tique-taque – até parar no gol. Os jogadores devem agir com calma e prudência, sem arroubos de inspiração e sem desproporcionalidade entre as funções e setores. Quando o time adversário está com a posse de bola, o mesmo raciocínio é aplicado, mas às avessas: o campo deve ser encurtado, para que os jogadores rivais se sintam pressionados e comecem a agir de maneira irracional (a famosa defesa organizada em linha de impedimento, inventada por Michels, por exemplo, serve para reduzir o campo), e a bola seja recuperada o mais rápido possível. Quem não tem espaço não tem tempo para pensar, e o futebol praticado na Holanda é, antes de tudo, uma arte racional – ou por outra: cartesiana.

O mesmo princípio pode ser observado nas pinturas holandesas. Em quase todos os grandes artistas holandeses, salvo algumas notáveis exceções, o domínio do espaço sempre foi uma preocupação central. Quando analisamos “O Casal Arnolfini”(Figura 1) de Van Eyck, o nosso olho, apesar da riqueza de detalhes com que às súbitas se confronta, não irá interromper a sua contemplação em ponto algum até que tenha atravessado toda a extensão da tela. Podemos começar e terminar em qualquer parte do quadro: todos os setores foram preenchidos com equivalente zelo e cuidado, de modo que nosso olho pode ziguezaguear à vontade, da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, até contemplar de relance, como recompensa pelo seu trajeto, a precisão geométrica do espelho ao fundo do famoso quadro de Van Eyck. Não há susto, não há paixão. Não nos decepcionamos, tampouco nos surpreendemos. Nada vem ao encontro dos nossos olhos. Nenhum detalhe ofusca o brilho do detalhe seguinte e, sem repentinos maravilhamentos, podemos apreciar o quadro inteiro com calma e paciência, trazendo na face a mesma tez inexpressiva dos rostos dispostos na pintura. Um exemplo ainda melhor, sem sair dos célebres pintores flamengos, é o “Cristo no caminho do calvário”(Figura 2) de Bruegel. Na pintura, que é uma ilustração da Via Crucis, só com certo esforço conseguimos enxergar o pequeno Cristo cambaleando em meio a uma multidão de pessoas– muitas das quais caminham completamente à revelia, sem consciência do evento em curso, ou de que suas almas estão prestes a serem salvas. Em vez de enfatizar, Bruegel esconde Cristo, como em um jogo ilustrado da série “Where is Waldo?” – nenhuma figura humana se destaca do cenário, pois elas são parte da paisagem: “as pessoas nos quadros de Bruegel não governam a natureza com algum tipo de autoridade divina, mas, antes, parecem formar uma comunidade com a paisagem em sua volta.” (Carsten Holer a respeito de “Os caçadores na Neve”) Em ambas as pinturas, conquanto certas partes tenham demandado mais esforço e capricho do artista, nunca saberemos quais foram. A tela não depende de nenhum elemento em particular, como o Ajax não depende de nenhum jogador. O campo de futebol é o quadro de Cruyff; a bola é o olhar do interlocutor, que transita de ponto a ponto pela tela de grama sempre encontrando um pé disposto a acomodá-la, livre e calmamente. Futebol é uma forma de arte, assim como toda arte, conforme nos ensina Johan Huizinga2, é uma forma de jogo.

(Figura 1) “Casal Arnolfini” – Jan Van Eyck
(Figura 2) “Cristo a Caminho do Calvário” – Pieter Bruegel

Em Vermeer, no século XVII, o tema da pintura já não era relevante: ele escolhia cenas banais da vida cotidiana, e ilustrava, nas palavras de E.H.Gombrich, “naturezas mortas” com pessoas inclusas. No famoso “A Leiteira” de Vermeer, a mulher retratada não possui mais vida do que a jarra de leite em suas mãos. No século XX, em Mondrian, a única coisa que interessava era o manejo dos espaços. A sua missão era “eliminar o trágico da vida”, e com ele aprendemos que as cores são valorizadas de modo diferente conforme a posição e a amplitude que possuem dentro da pintura. Duas zonas de extensões diferentes podem ser percebidas de maneira equivalente caso a discrepância nos tamanhos seja compensada pela profundidade do tom (o pequeno quadro vermelho, engolido pelas bordas, é equivalente ao grande quadro branco ao seu lado). Tomando as grades de Mondrian por exemplo, o leitor pode aprender a organizar de maneira visualmente agradável a mesa de sua sala, a dispor os livros e os enfeites da estante de seu quarto, ou mesmo os quarteirões de uma cidade, mas jamais desenvolverá qualquer conexão emocional com a obra, pois, para Mondrian, “o artista(…) não tem o direito de influenciar o próximo emotiva e sentimentalmente”3(Giulio Carlo Argan, “Arte Moderna”). É natural, argumenta Rudi Fuchs4, diretor do Museu Municipal de Amsterdã, que o povo holandês conceba o espaço desse modo:

“Peça para que qualquer holandês desenhe o horizonte, e ele traçará uma linha reta. Se você perguntar para um cidadão de Yorkshire ou da Toscana, ou de qualquer outro lugar, essa linha terá montanhas e saliências. O azul escandinavo, ao contrário do azul italiano, possui um aspecto frio e metálico. A pintura italiana é rica em vermelhos quentes, mas quando o vermelho aparece em uma obra de um artista do norte europeu, como Munch, é o vermelho do sangue que mancha a neve.”

Embora os italianos estivessem preocupados com o espaço e a perspectiva, era em torno da figura humana que as paisagens se organizavam. Na pintura holandesa, por sua vez, o espaço vale mais que as figuras humanas dispostas na tela. E, assim como é menosprezado na pintura de Mondrian, o homem, o indivíduo, não tem lugar no carrossel holandês de 1974. O time de Michels não é composto de indivíduos criativos e particulares, mas das arestas de uma figura geométrica que a todos revolve e direciona. O povo holandês, ressalta David Winner, tem reverência natural pela figura do “arquiteto” – pela mente responsável por organizar os espaços e delegar funções. O grande mestre no domínio dos espaços no século XX, contudo, não é Mondrian, mas Johan Cruyff, o “Pitágoras de chuteiras”, que foi a um só tempo jogador e técnico, pedreiro e arquiteto, dentro do campo de futebol. O seu gênio com a bola nos pés foi perfeitamente transferível para o seu gênio do lado de fora do campo, como técnico do Barcelona. “Cruyff enxerga dessa forma e é admirado por sua capacidade inata de compreender a estrutura geométrica na qual o campo se divide”(David Winner).

Se o futebol praticado na Holanda reflete uma maneira fundamental com que o povo holandês enxerga o mundo, o que nos ensina o futebol brasileiro a respeito de nós mesmos? Eis a pergunta a que almejo responder com este breve ensaio: como nós, brasileiros, lidamos com o espaço?

Apesar da extensão continental de território, o nosso horizonte é estreito, e o mundo que se nos apresenta não é largo como o dos holandeses. Grande parte de nossos jogadores cresceram em favelas, amontoados de casas em nada semelhantes às quadras ordenadas de Amsterdã; quando meninos, aprenderam a jogar futebol em ruas estreitas e esburacadas – ou campos de terra enlameados. Com a bola ricocheteando em calçadas altas, e oponentes mais velhos à sua frente, ele precisava dar um jeito de chegar à trave de um metro de extensão, delimitada por duas chinelas havaianas. O jogador brasileiro, em menino, acostumou-se à situação que o Cruyff e Michels a todo custo queriam evitar: conserva a calma e consegue ser inventivo e inteligente sem espaço para mover-se e sem tempo para pensar. Dessa forma, porque acostumado às medidas de uma quadra de futsal, o jogador brasileiro prefere encurtar o campo de futebol em torno da “zona da bola” – quer esteja com a posse, quer não. Eis a diferença entre os pontas holandeses (que ficam presos à linha lateral, mantendo o campo largo) e o criativo ponta brasileiro, que achata o campo pelo meio e precisa costurar os adversários com passes curtos ou com dribles. O seu talento consiste em encontrar espaço onde não há – por vezes, entre as pernas do adversário, por um engenhoso e súbito truque de mágica.

Os jogadores brasileiros se organizam a partir da bola, não do jogo posicional5. Amontoados dentro da zona da bola, as leis são invertidas: tudo é caótico, contraintuitivo, e só o nosso jogador de talento, que já desde a infância passa por apertos maiores, está à vontade. Tudo deve ser feito com urgência e de repente. Sua atenção deve voltar-se àquela área estreita, onde não raro 4 ou 5 jogadores se tumultuam, dando assistência ao craque da equipe – ao jogador que vale por 4 ou 5.6 Os atacantes se aproximam, os pontas são criativos, invertem posições constantemente; e, quanto mais perto estiverem uns dos outros, melhor conseguem se entender. Um jogador precisa olhar para o seu colega de equipe, prever seus movimentos, antecipar seus desejos. Ao brasileiro convém que o campo de futebol diminua. Além do pequeno retângulo em torno da bola, nada interessa.

O objetivo da seleção holandesa não é apenas fazer gols, mas manter a posse de bola, os espaços abertos e, por conseguinte, a possibilidade de fazer gols sempre alta. Voltar a bola aos pés do goleiro para conservá-la é preferível a arriscar tudo em um passe para o jogador mais talentoso do time. O gol é um momento fortuito em meio ao percurso que faz a bola pelo campo. A bola irá chegar ao gol, pois ela irá chegar a todas as partes campo, assim como o nosso olho, cedo ou tarde, irá perceber Maria sofrendo ao canto direito do quadro de Bruegel; não porque tenha chamado nossa atenção de maneira contundente, mas porque estava lá, esperando por nós, sem nada que pudesse interferir em nosso percurso diletante7. Quando Cruyff diz que “jogar futebol é simples, mas jogar um futebol simples é a coisa mais difícil que existe”, está apenas replicando o famoso preceito de Horácio: “Ars est celare artem” (“a arte consiste em esconder a própria arte”). O grande artista, no sentido almejado por Horácio, é aquele que esconde os seus esforços e faz com que seu artifício pareça um desfecho natural e esperável; a obra de arte, assim, harmoniza-se com os demais elementos da criação, como fosse ela mesma uma entre tantas variáveis necessárias para o bom andamento da vida. O homem não se maravilha com o calor do sol, nem deve se impressionar com o talento do artista. Cruyff quer que o gol seja uma consequência do posicionamento do time, não um feito milagroso nos últimos minutos do jogo. Os dois pensadores clássicos torcem o nariz para os desnecessários adornos, para os recursos excessivos, para a inventividade soberba; para o “trágico da vida” repudiado por Mondrian. Se o futebol holandês é clássico e preza pelo aproveitamento racional dos espaços, o futebol desenvolvido no Brasil(e na américa latina), um país de tradição ibérica, colonizado por espanhóis e portugueses, é uma arte barroca.

Se na pintura de Bruegel e Van Eyck o quadro inteiro é aproveitado, e o olho transita livre por qualquer canto da tela, o quadro de Caravaggio só possui uma zona de interesse. O sol há muito despediu-se; a luz agora é escassa e só pode iluminar um elemento do cenário. Devemos, pois, nos contentar com a pouca realidade que o artista optou por revelar com a luz vacilante de sua lamparina. O que não é essencial à pintura, foi coberto pela noite e não merece a nossa atenção. Não há tempo para o vagar diletante e desinteressado; somos convocados, às pressas, a tomar uma decisão irreversível: luz ou sombra; espírito ou carne; santidade ou pecado; céu ou inferno. Em moldura de trevas, melhor podemos apreciar a luz, porque damos mais valor ao que é escasso. A pintura barroca nos ensina que podemos perder a luz a qualquer instante, e que devemos utilizá-la de modo inteligente: o tema que ela clareia, portanto, não pode ser banal nem dispensável.

Van Gogh, uma das notáveis exceções entre os mestres holandeses, em carta a seu irmão, fala que Rembrandt lhe fazia pensar em seu pai caçando pela noite escura, com uma lamparina acesa. Seu pai, escreve Van Gogh, via o mundo como vemos a pintura do mestre barroco: só existe aquilo que a lamparina denuncia, e mudar a direção da luz é como criar um mundo novo em meio ao nada. Assim o brasileiro enxerga o campo de futebol. O ponto de luz da pintura barroca é a zona da bola. O campo não interessa: interessa o entorno da bola, a pequena quadra de futsal que ela desenha. Pensemos como um jovem brasileiro, pobre e marginalizado, que cresceu nas favelas sonhando em ser jogador profissional e comprar uma casa melhor para sua mãe. Como dizer para ele que a bola virá a seus pés caso ele saiba esperar no lugar certo? Aquele objeto é a sua única oportunidade de mudar de vida. Os breves segundos em que a terá nos pés durante uma hora e meia de jogo são a chave para uma realidade inteiramente nova.

A virtude distintiva da poesia barroca é a agudeza8: a capacidade de conectar conceitos aparentemente contraditórios, de relacionar imagens distantes no campo semântico de modo que façam sentido ao leitor. O artista barroco, assim, toma um caminho inusitado para chegar a uma verdade. Chega-se à luz pela sombra; chega-se ao gol por entre três jogadores adversários. Ninguém espera que Garrincha vá chegar lá, ninguém planejou, nem o seu técnico, nem o técnico do time adversário, e por isso ele chega. O que dá gosto de ver, aos nossos olhos, não é o padrão abstrato de movimento que ordena o campo, mas o caminho inusitado aberto em meio aos planos, o obstáculo vencido, a reviravolta. Nós contamos com ela. Nós assistimos futebol porque queremos ver coisas saindo fora dos planos. Nelson Rodrigues está apenas fazendo justiça à tradição barroca da literatura brasileira quando, em suas crônicas esportivas, compara Pelé a Michelangelo, Garrincha a um “anjo de pernas tortas” e Djalma Santos a um “Cristo negro”. Como ninguém, ele estava ciente do espírito nacional que esses personagens representavam:

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“O inglês apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro vive cada lance e sofre cada bola na carne e na alma. Djalma Santos põe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de um Cristo negro.

E mesmo fora do futebol, o europeu faz uma imitação da vida, enquanto que o brasileiro vive de verdade e ferozmente. Ninguém compreenderá que foi a nossa qualidade humana que nos deu esta Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: – foi o mistério de nossos botecos, e a graça de nossas esquinas, e o soluço de nossos cachaças, e a euforia de nossos cafajestes.”9

O futebol brasileiro não é um jogo de xadrez. É um teatro humano; ora trágico, ora cômico. Assistimos porque a história ensaiada pelos 22 personagens em palco prende a nossa atenção. Como em toda peça de teatro, há heróis, vilões, protagonistas e coadjuvantes. Convém, portanto, que os protagonistas fiquem em primeiro plano, e que a “zona da bola” mostre onde eles estão. O craque do time, assim, deve ter a bola em seus pés o máximo de vezes possível, participando da maioria dos lances. O brasileiro assiste o jogo de futebol salivando, à borda da cadeira, com cobiça, desespero e ansiedade; esperando o momento em que a bola estará nos pés do craque. Todos os memoráveis times brasileiros possuíram um jogador de destaque, a quem os outros integrantes do time serviam de moldura. A camisa 10 era só uma camisa qualquer até Pelé a vestir aos 17 anos de idade e vencer uma copa do mundo servindo de critério para a posição mais completa do esporte, o “meia atacante”. Em 1970, 12 anos depois, metade da seleção nacional era composta de camisas 10. Eram cinco, do meio-campo para frente: Gerson, Pelé, Rivelino, Jairzinho e Tostão. Qualquer um poderia jogar em qualquer lugar, não porque se igualavam na irrelevância, mas porque carregavam um time inteiro no hábito de seus passos – todos eles, com apenas alguns segundos de bola nos pés, podiam decidir o jogo inteiro.

Em uma planície aberta e livre de obstáculos, é impossível que cem soldados vençam mil de um exército inimigo. Coloquem todos eles perdidos em uma mata fechada, e as probabilidades mudam drasticamente. Se os cem souberem aproveitar o espaço melhor, a desvantagem numérica não será percebida com a mesma gravidade. Foi assim que Antônio Conselheiro10 conseguiu derrotar os exércitos do governo central três vezes seguidas, dispondo de poucos jagunços, sem experiência de guerra e com armamentos inferiores. Em tudo há um mesmo princípio: uma mesma maneira de aproveitar os espaços e de saber lidar com cenários inusitados, onde a inteligência vence – ou dribla – uma desvantagem física. O nosso campo de futebol é uma vereda aberta no mato espesso, por onde apenas nós sabemos caminhar em segurança. A perna torta de Garrincha, no futebol e só no futebol, é um privilégio de nascença, pois fazia com que seus movimentos fossem impossíveis de prever. A baixa envergadura de Romário permitiu que ele desde cedo aprendesse a se posicionar com perfeição – e fizesse mais gols de cabeça que muitos artilheiros de 1, 90. As desvantagens sociais que precisaram atravessar desde a infância consolidaram em sua formação uma maneira inusitada de perceber o mundo, que não é partilhada por todos – muito menos por seus rivais. Quando os adversários são forçados a lidar com o seu mundo estreito de caos e de imprevistos, as proporções se invertem, e os nossos jogadores se agigantam.

Ainda em 1939 – antes de Pelé e da copa do mundo –, Gilberto Freyre11 compara o futebol “apolíneo” desenvolvido na Europa, com o futebol “dionisíaco” desenvolvido pelos mulatos brasileiros:

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“Uma arte que não se abandona nunca à disciplina do método científico mas procura reunir ao suficiente de combinação de esforços e de efeitos em massa a liberdade para a variação, para o floreio, para o improviso. Até mesmo a liberdade para a ostentação ou para a exibição do talento individual num jogo de que os europeus têm procurado eliminar quase todo o floreio artístico, quase toda a variação individual, quase toda a espontaneidade pessoal para acentuar a beleza dos efeitos geométricos e a pureza de técnica científica.”

Comparemos Amsterdã vista de cima, toda repartida em grade, com Ouro Preto, uma cidade que parece um pretexto para que a catedral se erga, triunfante e dourada, no meio de casas indistinguíveis. Ouro Preto precisa da catedral para ser identificada, ao passo que aquilo que caracteriza Amsterdã são os próprios canais de água que a dividem e organizam. Tudo em Amsterdã é simétrico e equivalente, como nos quadros de Mondrian e no time de Michels. A beleza de Ouro Preto consiste no jogo de contraste, entre o sagrado, marcado pelo ouro nas hastes da catedral de Aleijadinho, e o mundo ordinário das casas à sua volta. Retirar a Catedral da cidade seria como arrancar o rosto de uma pessoa, cobrir de preto a zona luminosa de um quadro de Caravaggio, ou tirar Pelé da seleção de 1958.

A capital do Brasil, contudo, assim como a da Holanda, não é Ouro Preto, mas uma cidade planejada. No fim da década de 50, o então presidente Juscelino Kubistchek decidiu mudar de casa para um ambiente mais tranquilo do que o Rio de Janeiro, e transferiu a capital para a região com menor densidade demográfica do país – o Centro-Oeste. Brasília, assim, foi planejada pelo arquiteto visionário Oscar Niemeyer para servir de morada ideal aos componentes do governo central, isolando-os dos conturbados humores populares. De tal modo são dispostas as quadras da cidade que o transeunte, à medida em que caminha de uma das asas ao centro do avião, percebe os prédios em sua volta maiores e mais afastados; quando, enfim, chegar à praça dos três poderes – na cabine do piloto –, se sentirá como uma formiga dispersa e solitária, ainda que tenha ao seu lado uma multidão enfurecida. Tudo é feito para mantê-lo no seu devido lugar; para recordar o cidadão de que ele é pequeno, e de que o governo, contra o qual ora esperneia, não pode ouvi-lo, e está longe do alcance de seus frágeis braços. A nova capital, todavia, a despeito de todas as maquetes, não escapou ao contraste barroco do espírito nacional: os construtores da cidade, tão logo concluíram a obra, perceberam-se expulsos do Éden para governantes e improvisaram desordenados e espontâneos arranjamentos de casa do lado de fora. Brasília não é o apolíneo avião de Niemeyer, mas as dionisíacas cidades-satélite que o emolduram.

Nas últimas décadas, como uma resposta à ascensão das ligas europeias, os times nacionais têm passado pelas mãos de diversos arquitetos diferentes, todos eles afoitos em sua missão de atualizar12 o nosso futebol primitivo conforme os preceitos de Michels e de Guardiola (“um técnico tem razões que a razão desconhece”, como diria Nelson Rodrigues). A história, contudo, há de se repetir: é a despeito das vontades do arquiteto que o brasileiro encontra o seu espaço. É espremido e acuado, no caos das favelas e das cidades-satélite, nas veredas abertas em meio ao mato profundo, na zona minúscula que emoldura a bola, que o brasileiro se sente à vontade e faz morada. Bastam alguns poucos segundos com a bola nos pés, no intervalo de tempo em que o jogo não sai como o planejado, para que o jogador de talento faça o imprevisto e determine o resultado. Nas mãos corretas, a luminosidade breve e vacilante de uma lamparina é o suficiente para cumprir a função do sol e mostrar o caminho em meio à noite escura.

Notas e referências:

1 Veja o Capítulo 14, “Dutch Space is Different”, in: David Winner. Brilliant Orange: the neurotic genius of Dutch football. Londres: Bloomsbury Publishing, 2001

2 Johan Huizinga. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2019.

3 Giulio Carlo Argan a respeito de Mondrian em Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

4 Rudi Fuchs é usado por David Winner como referência em “Brilliant Orange: the neurotic genius of Dutch football.”

5 Para uma comparação do “ataque posicional” de Cruyff e o “ataque funcional” brasileiro, recomendo a leitura do texto de Jozsef Bozsick (pseudônimo): Telê versus Cruyff: duas maneiras antagônicas de praticar o jogo, mas com o mesmo intuito. link: https://medium.com/@Jozsef_Bozsik/1992-tel%C3%AA-versus-cruyff-duas-maneiras-antag%C3%B4nicas-de-praticar-o-jogo-mas-com-o-mesmo-intuito-ff1ac429e332

6 Jogando um pouco mais ao meio do campo em um jogo contra a Inglaterra, Garrincha percebeu-se mais suscetível a receber passes e revelou ao mundo a sua grande descoberta tática: É muito bom jogar por ali. A gente recebe um monte de bola.”

7 Para Cruyff, uma vez que, durante a partida, cada jogador não passa mais de 3 minutos com a bola no pé, o mais importante é o que ele faz nos outros 87 – a maneira com que se posiciona sem estar envolvido nos lances.

8 Segundo Alcir Pécora, a agudeza é “um tipo de ‘artifício’ ou ‘conceito’ produzido pelo estabelecimento de uma correspondência inusitada, imprevista, entre dois termos usualmente distantes no espectro semântico da língua. Acrescento que, no âmbito dessa ‘distância’, são mais favorecidas as relações de contrariedade, oposição e mesmo de paradoxo do que as de similitude, embora também esta esteja implícita no conjunto dos empregos.” (in: A agudez na poesia barroca. Revista Cult. Edição 177.)

9 Nelson Rodrigues. O Escrete de Loucos. in: A Pátria em Chuteiras: Novas Crônicas de Futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

10 Euclides da Cunha. Os Sertões. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

11 “Enquanto o futebol europeu é uma expressão apolínea – no sentido spengleriano – de método científico e de esporte socialista em que a pessoa humana resulta mecanizada e subordinada ao todo – o brasileiro é uma forma de dança, em que a pessoa humana se destaca e brilha.” (Gilberto Freyre. Football Mulato. Diário de Pernambuco, 1939.)

12 O Barcelona de Cruyff perdeu duas vezes para o São Paulo de Telê Santana. Quando foi derrotado na final do mundial de 1992, Cruyff declarou: “se for para ser atropelado, que seja por uma Ferrari.”