Tratavam-no como os antigos tratavam os oráculos. Ou quase isso: é bem verdade que muitos, em especial os mais jovens e os turistas, como seria de se esperar, escolhiam a via do folclore. Ainda assim, é justo dizer, todos guardavam diante dele certa reverência.
Era um homem muito velho, cujo nome se perdera no tempo. Chamavam-no, agora, simplesmente de Seresteiro. Inconfundível, já que era o último dos seus. Havia, ainda, tocadores de serestas – mas seresteiros, mesmo, para quem a antiga arte não era um meio de vida, mas a própria vida, estavam no passado.
Em frente à casa do Seresteiro, geminada a outras tantas, numa ruazinhaapinhada que afluía, como uma artéria, à rua principal, entreouvia-se de tudo:
“Ele tem coisa com o sobrenatural – eu nunca vi, não, mas…”
“Ah, pois eu já vi muita coisa: um dia ele tocou uma música que fez o céu se encher de estrelas de um segundo pro outro.”
“Ouvi dizer que o Seresteiro tem 150 anos de idade. É verdade que ele não tem documentos?”
“Ele dá conselhos, mas nunca responde nada sobre a vida dele – também, esse povo fofoqueiro…”
Os comerciantes e os guias, naquele pequeno município que vivia do turismo,hesitavam no lidar com ele: em parte, era interessante explorar sua lenda; mas, por outro lado, latejava a incômoda consciência de que era no mínimo deselegante perturbar o sossego de um senhor que, tivesse quantos anos fosse – de fato ninguém sabia –,permanecia reservado, embora recebesse de bom grado aqueles que fizessem questão de visitá-lo. Um pouco como um oráculo, como eu disse no início.
Pronto, está bom de contexto. Interessa-nos, aqui, uma ocasião específica, quando a noite era profunda, como se nunca mais fosse amanhecer.
Uma moça, vinda da metrópole, caminhava pelas ruas desertas daquela cidadezinha. Perdera o sono, convocada ao sereno pelas estrelas da madrugada fresca, habitada apenas por ela e pela figura que divisou no banco próximo ao coreto, na praça em frente à igreja.
Aconchegando-o como a uma amante, o Seresteiro, de hábeis mãos sulcadas pela velhice, dedilhava seu violão. Segurava-o inclinado, quase na vertical. Não cantava, propriamente; era mais um cicio, que escapava de seus lábios, para acompanhar a melodia tocada baixinho. Sob a aba do chapéu, escondiam-se os olhosfundos. Seus murmúrios e os acordes, densos como a noite, pareciam dirigir-se a invisíveis companheiros, que, de tão delicados, apenas eram capazes de suportar a mais gentil das músicas. A moça só conseguia ouvi-lo porque o silêncio era sepulcral.
Ela escondeu-se atrás de uma árvore.
Não, não, não se esconda, ouviu cantarolar. Seu coração enrijeceu-se, petrificado ao ver-se descoberta. Sabia da fama do Seresteiro: ele não era gente como a gente. Era mais místico do que músico, ou, pelo menos, o mesmo tanto dos dois.
A jovem, com um misto de medo e respeito, não quis desagradá-lo. Saída de detrás da árvore, seu rosto lívido era o mais fulgurante brilho na noite sem lua.
O choro do violão tornou-se mais obstinado. A moça, como se suas pernas não mais lhe pertencessem, abafou um grito ao notar que não caminhava em direção ao velho: dançava. Não a dança de uma passista, e sim uma afim à lenta e firme melodia do Seresteiro, que, como uma correnteza, tragava-a para perto dele. Um pé após o outro, devagarzinho…
Foi uma cena como nunca vista; é pena que só o céu e a praça vazia puderamcontemplá-la.
De perto, agora sentada no banco ao lado dele, ela pode ver toda a beleza daquele rosto, vincado e de pele espessa. O Seresteiro levantara a aba de seu chapéu e deixava-se admirar, nunca parando de tocar seus choros e serestas, transitando suavemente entre canções.
A moça chorou de soluçar: era a apresentação mais bonita que já vira. Percebeuque, em seu regaço, repousava uma rosa vermelha.
O que é isto, o que é isto, perguntou aflita, mas o velho, embora a olhasse nos olhos, não falava, apenas cantava.
Comigo eu vou levar, eu vou levar quando eu morrer, o perfume da rosa que um dia eu dei pra você, entoou. Quede-se aqui, não posso ficar… Mas deixe viva a minha lembrança do lado de cá…
Tomando a rosa nas mãos, a mulher precisou conter a vontade de lançar-se aopescoço do Seresteiro, como se abraça um avô querido. Tocá-lo parecia um acinte,assim como se evita macular a pureza de uma relíquia sobre o altar.
Ela afastou-se, então, e voltou para o seu quarto na pousada, tateando o caminho na treva da noite, que, após o luminoso encontro, parecia ainda mais absoluta.
*
Ao surgir da aurora, logo se espalhou a notícia: o Seresteiro morrera durante noite. O vizinho disse que ouvira seu expirar final, um melódico e melancólico gemido – mas talvez fosse só uma invencionice oportunista. De todo modo, o velório seria ainda naquela tarde. O prefeito, sem demora, anunciou uma cerimônia pública. A moça, a quem não importava a origem natural ou sobrenatural do encontro que tivera na madrugada, agarrou-se à rosa, unindo-se a ela num luto doído. A morte da beleza é dos eventos mais trágicos deste mundo.
E qual não foi sua surpresa naquela tarde, quando chegou ao velório, na mesma praça de seu encontro com o Seresteiro, e viu, na fila para o último adeus, dezenas de pessoas – mulheres, homens, uma ou outra criança – que, assim como ela, carregavam uma rosa vermelha. Chorosa, como antes fora o agora silencioso violão do artista, a moça esperou sua vez, depositou a flor junto ao corpo e – ela poderia jurar – escutou-o cantarolar.