-por Bernardo Lins Brandão
Apesar de todos os anúncios, a metafísica não morreu. Ou melhor, morreu, mas passa bem: contra toda a tradição filosófica, que, desde o séc. XIX, celebra o seu fim, acredito que ela ainda seja fundamental. Fernando Pessoa, escrevendo como Álvaro de Campos no poema Tabacaria, fala do Esteves-sem-metafísica, mas, em toda a experiência humana há sempre uma metafísica, ainda que implícita, isto é, um mapa, mesmo que provisório, da estrutura do real e das possibilidades nele contidas. Não é por acaso que, após a primeira metade do séc. XX ter decretado o seu fracasso, vemos, no séc. XXI, o seu retorno, seja na filosofia analítica, seja na continental, em correntes como o realismo especulativo e a Ortodoxia Radical.
Os críticos, no entanto. Aristóteles, na Ética (X, 6-7), dá a entender que a vida na qual existe espaço para a metafísica é maximamente feliz, uma vida divina da qual podemos, em alguma medida, participar. Mas, quando lemos os manuais que foram escritos a seu respeito, ela parece ser árida e abstrata, incapaz de levar a uma experiência assim.
É que ela estava, para os antigos e medievais até S. Tomás de Aquino, ligada a um modo de vida. Não era apenas uma teoria, mas theoría, uma forma elevada de contemplação. Os textos filosóficos que dela tratavam estavam inseridos em um contexto no qual o mestre convivia com os seus discípulos (o que os gregos chamavam de synousía) e encarnava, para eles, aquilo que ensinava.
Para a fruição da sabedoria metafísica, eram pressupostos, entre aristotélicos e platônicos, agostinianos e tomistas, uma série de conhecimentos tácitos, mais próximos da tékhne que do conhecimento abstrato: uma terapia das paixões, um modo de vida mais simples, na qual o foco da atenção se mudava das coisas humanas para as coisas divinas, e o aprendizado da arte da admiração.
Segundo Pierre Hadot, a prática da filosofia como um modo de vida perde o seu vigor com a ascensão do cristianismo, já que ele era também um modo de vida. Mas o próprio Hadot se contradiz em seu texto, quando mostra, ao falar de Justino e Agostinho, que o modo de vida filosófico se conservou no interior do próprio cristianismo. A meu ver, é com a ascensão das universidades que ele deixa de ser relevante.
É que a universidade, com seus vários professores e aulas estruturadas, é um ambiente bastante adequado ao aprendizado de assuntos teóricos, mas não se presta bem à assimilação de formas de existência. Isso, tradicionalmente se faz, nas mais diversas culturas, no convívio com um mestre carismático, digno de imitação, junto a outros discípulos que também o admiram. e buscam ser como ele. É o que vemos, por exemplo, nos diálogos de Platão, nas descrições de Sócrates e o seu círculo de discípulos, mas também, como podemos perceber a partir da leitura do notável livro de Stephen Jaeger, A Inveja dos Anjos, nas escolas catedrais do período otoniano medieval.
A distância entre vida e filosofia se intensifica com a invenção da imprensa. Graças a ela, um filósofo pode escrever um livro que pode ser lido por uma multidão de leitores anônimos, que o autor não sabe quem são. Pierre Hadot falava que o texto filosófico antigo era em geral escrito para um contexto específico, no qual o autor não queria apenas informar, mas provocar uma transformação espiritual em seu leitor. Mas, para isso, precisava imaginar quem ele era. Isso não é mais possível ao autor moderno, cujo livro pode ter várias edições, e que, por isso, sente a necessidade de tornar sua linguagem mais universal, o que a torna mais imediatamente inteligível, mas o leva inevitavelmente ao fracasso em transmitir uma experiência profunda.,
É o que vemos, por exemplo, nas Meditações de Descartes, um texto que, como o seu próprio nome indica, tinha a pretensão de levar o leitor a experiências espirituais, mas que, muitas vezes, reduzido à uma ordem lógica de razões, não foi lido assim. E, também, na Ética de Spinoza, com suas demonstrações ao modo geométrico, que constitui uma clara tentativa, poucas vezes bem-sucedida, de levar seu leitor genérico à contemplação do infinito e a um modo de vida segundo a razão.
Aquilo que Platão falava no Fedro a respeito dos perigos da escrita, com a imprensa, se intensifica. Se Sócrates, nos Diálogos, desenvolve sua reflexão filosófica na discussão com seus interlocutores, se os tratados de Aristóteles são notas para suas aulas e se os textos de Plotino e Epiteto tantas vezes tomam a forma de uma conversa, é que eles ainda estão atentos para os contextos ao qual se dirigem e os efeitos que podem provocar. Mas, com a imprensa e o leitor anônimo ao qual ela se dirige, a razão filosófica se torna desencarnada, mais próxima, como vemos em Descartes e Spinoza, da razão matemática que do encantamento que a synousía com um mestre carismático era capaz de incitar. Ela se torna mais abstrata, mais afastada da vida e das pretensões de provocar as transformações existenciais necessárias para que a contemplação metafísica seja possível.
É que a razão, em sua plenitude, é razão encarnada. Ela envolve não apenas o pensamento discursivo, mas o ser humano como um todo: sua vida emocional, sua imaginação, seu Stimmung e sua orientação mais fundamental no mundo. A razão desencarnada moderna perde o substrato existencial que era pressuposto da metafísica enquanto theoría e, assim, esta acaba por se reduzir a um discurso teórico a respeito de um objeto que, de tão geral, é equivalente ao nada. Pois, se tudo é ser, para que falar do ser? O que eu poderia descobrir a seu respeito que já não esteja em todas os entes concretao?
Sem o seu substrato existencial, a metafísica entra em crise e logo é considerada algo a ser superado. Por isso, o retorno da metafísica depende da redescoberta das experiências vitais, para falar com Marcus Reis Pinheiro, das quais ela depende.