Paralelos de Sofia – por Andre Klojda

– por Andre Klojda

Melhor seria escrever um poema. Mas não em versos livres, e sim obedecendo a uma estrutura rigorosa. A rigidez da forma seria mais fiel à trama, finamente tecida, dos meus encontros com ela.

Chama-se Sofia e nasceu em país estrangeiro, longe do meu paraíso infernal ou inferno paradisíaco carioca. Conhecemo-nos quando frequentávamos a mesma faculdade. Eu havia ganhado uma bolsa para estudar e pesquisar, durante um semestre, no departamento de física da Universidade de Copenhague, e nós éramos colegas em uma das disciplinas. Era início de fevereiro, quando, apesar da pouca neve, o vento, fino e gelado como uma navalha, ainda corta a pele das bochechas nuas.

Após a primeira aula, descemos as escadas juntos.

“Eu sempre quis saber como é o Brasil”, ela me disse, já fora do prédio, a desafiar o frio.

“É bom, é quente. Eu gosto”, respondi.

Ela sorriu, dando significado às minhas pálidas palavras. Sofia tinha dentes bonitos: caninos afiados e molares retangulares. Dentição digna dos melhores predadores. Afastou-se para pegar sua bicicleta, dando-me as costas sem olhar para trás — de todo modo, eu voltaria de metrô. Foi-se embora a pedalar, vestida com o casaco pesado, de um vermelho reluzente à luz cambiante do inverno, cachecol esvoaçante jogado para trás e bolsa cruzada no peito.

À noite, escrevi sobre ela, com a certeza de que ela sequer pensaria em mim. Algo deve acontecer entre nós, pensei. Mas foi apenas no nosso segundo encontro, parece-me, que Sofia me enxergou como um igual. Ela foi ao meu apartamento na noite do sábado daquela mesma semana. Não que antes tenha me desprezado; não mesmo — apenas estivera tranquila demais naquele dia descendo as escadas, com um sorriso fácil, enquanto meu coração acelerava e a minha boca matraqueava parvoíces. Já dessa segunda vez, olhava-me como eu olhava para ela: indiretamente, a princípio, e só depois ficando à vontade, mas com um rubor permanente nas faces.

Eu morava com três colegas, todos estrangeiros e mais simpáticos do que eu, e às vezes algum deles recebia visitas. Descobri, então, que Sofia era amiga de um amigo de um dos meus colegas de apartamento, o alemão. Ela não sabia que eu morava ali, nem eu sabia que ela lá iria. Aproximamo-nos aos poucos, noite adentro.

“Não me vejo como uma física, mas como uma artista. As equações só me encantam quando nos levam a imaginar tudo o que há muito além delas”, contou-me, com uma latinha de Carlsen na mão direita. Sentávamo-nos de lado no sofá e de frente um para o outro. O braço esquerdo de Sofia, jogado sobre o encosto, fazia com que as pontas dos seus dedos resvalassem no meu ombro. Chamavam-me a atenção suas unhas, seus dentes e seus olhos, como se eu precisasse temê-los.

“Mas isso não é óbvio? A física, quanto mais a teórica, já não exige essa abstração?”, rebati.

“De certa forma, sim. Mas não falo só de abstração, falo de poesia.”

“Pois eu me satisfaço com a física. Acho que as equações têm sua beleza própria. Não vejo necessidade de romantizá-las. Ali já está tudo.”

“Não é verdade. Eu sei que você escreve.”

Levantei uma sobrancelha, surpreso. Ela deu de ombros.

“No intervalo da aula você ficou sentado escrevendo num moleskine. Imagino que não fossem equações.”

Não achei tão óbvio o raciocínio, mas assenti. Ela estava certa, era o meu diário – no qual Sofia não imaginava que, desde aquela nossa primeira conversa, era sobre ela que eu escrevia. Ou imaginava?

Fui ao banheiro. Quando voltei, Sofia já vestia o casaco para ir embora acompanhando o amigo com quem chegara. Como ela não fizera questão de se despedir, tampouco eu o fiz. Fui para o meu quarto e logo dormi. Naquela noite, não escrevi.

Aliás, as coisas que eu escrevia eram curiosas: cativava-me, sobretudo, o charme nem sempre óbvio de Sofia e o que eu enxergava através dela. Os dentes como presas; os olhos ora brilhantes, ora opacos; o jeito que ela pronunciava as palavras em inglês — língua na qual nos comunicávamos —, projetando os lábios exageradamente em algumas sílabas; a voz rouca, sempre baixa, como se com medo de despertar um mundo adormecido; braços e pernas grossos; o torso robusto. Seu cheiro era como o perfume de tempos imemoriais; tinha algo, até demais, de selvagem.

Sentávamo-nos afastados durante as aulas, ela mais à frente e eu atrás, no auditório amplo e profundo. Quando meus olhos cruzavam com a silhueta de Sofia, com apenas seus ombros e costas visíveis para mim de onde eu estava, iluminavam-se os meus pensamentos e me eram sugeridas soluções para as questões mais complexas. Não era algo comum de experimentar, tamanha clareza de raciocínio. E ao fim da aula, ao mirar seus olhos de brilho incerto, as sugestões transformavam-se em respostas impossíveis de colocar em texto ou equações.

A proximidade de cada terça-feira, dia da disciplina que fazíamos juntos, me deixava ansioso. Sabia que ao vê-la, ao escutá-la, compreenderia um pouco melhor a verdade incontível em meras fórmulas e letras. Trocávamos frases erráticas, geralmente sem sequer nos sentarmos, ao descermos as escadas, assim como havia sido no nosso primeiro encontro após a aula. Algo fugaz? Sim, mas trocar essas poucas palavras era como um compromisso inescapável. Para ela também era assim, notei conforme passavam as semanas: acabada a aula, logo ia ao meu encontro para que pudéssemos conversar a sós por uns instantes.

Uma vez, já para além de meados do semestre, quando a temperatura havia se tornado mais gentil e tímidos raios de sol banhavam o campus, resolvi que não falaria com Sofia naquela terça-feira. Ao mesmo tempo que me atraía, amedrontava-me a estranha relação que cultivávamos. Assim fiz: terminada a aula, juntei as minhas coisas, atrapalhado, e arranquei como se vestindo antolhos de cavalo, impedido de virar para os lados. Só desviei o olhar quando tomei o metrô de superfície. Ela não estava por perto. Acalmei minha respiração durante o breve trajeto até a estação na qual saltaria e, antes de subir para casa, resolvi aproveitar um pouco mais o dia ameno.

Acomodei-me à mesa num café ao ar livre a meio caminho entre a estação e o meu prédio. Peguei um copo de chocolate quente e tirei o moleskine da bolsa. Precisava organizar os meus pensamentos — o que acabei não fazendo, porque, para emaranhá-los ainda mais, avistei Sofia aproximar-se.

“Veja só. Parece até que você me seguiu”, falei — sério, mas fingindo brincar.

Mais do que qualquer coisa que ela pudesse dizer, a expressão em seu rosto afastou a possibilidade de aquele ser um encontro proposital: o sorriso normalmente largo, mesmo quando encabulada, agora era contido, sequer mostrava os dentes, e os olhos piscavam sem parar.

“Engraçado nunca ter visto você por aqui. Venho quase toda terça depois da aula comer uma fatia de bolo com chá indiano”, ela respondeu — e imediatamente o jogo virou, tornando-me o aparente perseguidor.

No fim das contas, os dois já menos tensos, ela sentou-se comigo à mesa.

“O famoso moleskine”, Sofia ainda teve tempo de dizer, antes que eu o guardasse. “Depois não sabe o porquê de ser tão fácil notar que você escreve. Ninguém resolve equações num moleskine.”

Sorrimos.

À vontade, ela voltou a ser encantadora como de costume — não digo encantadora de um jeito romântico, e sim me refiro a uma capacidade de encantar como a de uma criatura mitológica. Talvez um encantamento sedutor, talvez um feitiço mortal: a distância é sempre tênue, e às vezes é a mesma coisa.

“Você é engraçado. Imagino o que é que você realmente pensa. Gostaria de descobrir, mas, no fundo, todo mundo sabe que o mistério é sempre mais interessante do que a descoberta.”

Aquilo me desconcertou. É como se entre nós fosse necessário sempre haver certo incômodo, ao mesmo tempo que era preciso que mantivéssemos contato, nos falássemos regularmente.

Desandei a tagarelar, estimulado pela provocação. Divaguei sobre o que pensava dos desdobramentos mais recentes da mecânica quântica, ponderei os experimentos empreendidos nos aceleradores de partículas e até compartilhei algumas das ideias nas quais estava trabalhando e que, à época, julgava inovadoras — hoje, porém, mesmo não tendo se passado tanto tempo, sei que eram bobagens. Era perceptível, no entanto, que Sofia pouco se importava — enquanto eu falava, ela assentia com a cabeça, mas era evidente que aquilo que eu dizia estava em segundo plano. Assim como ela era para mim, intuí que, para ela, eu era um meio através do qual enxergava além; sonhava, imaginava mil e uma fantasias. Seria assim que Sofia encarava, também, as equações, achando-se uma artista?

De repente, para ver qual seria a reação de Sofia, interrompi o meu discurso. Mudos, olhamo-nos ainda por alguns instantes; ela então levantou-se da cadeira, alegou um compromisso qualquer e foi embora. Senti-me aliviado.

Assim como naquela já distante noite de sábado no meu apartamento, não escrevi sobre ela nesse dia. Era tudo por demais estranho e eu estava cansado, com saudades do Brasil. Enxergávamo-nos, um ao outro, ainda que pelos breves momentos em que conseguíamos nos aturar, como companheiros de jornada com algo em comum — um lar, um quê familiar enquanto estávamos em terras estrangeiras para os dois? Ou mais: existiria alguma lei cósmica, para sempre desconhecida, que relaciona destinos e os faz convergirem de tempos em tempos? A ciência não parecia ter a resposta, e em vez de olhar para cima — o mundo macroscópico do espaço —, ou para baixo — o mundo das partículas invisíveis —, perdi-me na investigação de mim mesmo.

Depois, não vi Sofia novamente na universidade. A essa altura, não havia muitas aulas restantes no curso de terça-feira, e estávamos focados nos trabalhos de conclusão das disciplinas. Penso se alguma vez ela me viu e evitou o contato, ou, quem sabe, chegou mesmo a ausentar-se das aulas apenas para que não nos encontrássemos.

O céu tornava-se a cada dia mais e mais azul, com menos nuvens, e o sol chegava a ser quase tão quente quanto é possível na Escandinávia. Posso dizer que foram as minhas semanas mais felizes durante o intercâmbio. Conheci lugares, pessoas e sensações, dividido entre os estudos e o ímpeto de aproveitar a experiência que se aproximava do fim. Após a conclusão das pesquisas e da entrega dos relatórios, eu ainda tinha quinze dias antes de voltar ao Brasil. Resolvi passear um pouco pelo continente e experimentar as diferentes primaveras que se descortinavam no Velho Mundo.

Houve ainda uma última vez. Encontramo-nos, Sofia e eu, em uma estação de trem em Bruxelas. Qual não foi o meu choque ao olhar para trás, enquanto comprava minha passagem no guichê automático, e ver que era ela quem cutucava o meu braço. Foi para ela também uma surpresa: não sabia que era eu, precisava apenas de um favor, de alguém que pudesse comprar-lhe uma passagem para a estação do aeroporto, já que seu cartão tinha sido recusado. Quando a vi ali, experimentei o sobressalto que nos arrebata quando encontramos uma pessoa em ambiente diferente daquele no qual estamos acostumados a vê-la. Parecia indefesa — uma fera de olhos desatentos e garras retraídas.

“Vou pegar um avião para casa”, ela disse sem que eu perguntasse. “Você também?”

“Não, ainda não.” Omiti que eu apenas vagabundeava com as economias das quais ainda dispunha.

Caminhamos juntos pelo subterrâneo, de onde partiam as escadas para as plataformas. Nossos trens partiriam de locais de embarque diferentes, o dela antes do meu. Despedimo-nos tão sem jeito como havíamos nos encontrado, ainda surpresos com a casualidade. Casualidade — é assim que chamo, na falta de melhor compreensão das leis que regem o cosmo e o caos.

Ao subir até a minha plataforma, ainda pude ver Sofia, antes que seu trem chegasse e cobrisse sua silhueta. Conhecemo-nos descendo uma mesma escada, e agora nos separávamos subindo escadas diferentes. Sozinho, sorri e pensei em acenar para ela, já acomodada no banco do vagão, mas desisti.

Não a amo. Nunca a amei, durante todo esse tempo, e estou convicto de que não posso amá-la, sob qualquer condição que seja. Aliás, não posso sequer afirmar que nós nos gostemos. Não é essa a relação que estamos destinados a manter. Somos, os dois, presa e predador um do outro; talvez por isso eu enxergue tão nitidamente, indissociáveis, sua ferocidade e sua doçura. Nossos desígnios, sempre cruzados, não prefiguram uma união, uma felicidade conjunta. Antes pelo contrário: somos retas paralelas que se encontram no infinito — infinito este que, no tempo presente, é representado por instantes. Assim como a literatura ou a música, a física teórica se faz valer largamente da imaginação; quem sabe seja por isso que Sofia enxergue-se como artista. Faz todo sentido — eu só não estou acostumado a pensar nesses termos. A poesia, a física e a vida: tudo isso é uma e a mesma coisa. Curiosa associação, assim como a que existe entre mim e Sofia — e esse estranho relacionamento é “o algo” que deve acontecer entre nós, tão vago, mas tão concreto, como a palavra: algo. Às vezes, pressinto que a encontrarei novamente a bordo de um trem, num café ou ao virar num corredor. Quem sabe um dia sacie sua curiosidade e venha ver de perto como é o Brasil? Chego a torcer por isso, desde que tão repentina como o encontro seja a nossa despedida.

Andre Klojda é jornalista, doutorando em literatura brasileira (UFRJ) e ficcionista. É autor dos contos de Imaginação (Penalux, 2020).