Os Vivos e os Mortos – conto de André Klojda

A praça estava apinhada de gente. Seria não mais que um leve exagero dizer que a cidade estava toda lá. Se, em tempos normais, a festa do padroeiro já era o principal evento do ano, que dirá na época da maior das crises, quando mesmo a esperança havia se tornado escassa. 

Naqueles dias, o peso começara a fazer-se sentir, de vez, sobre os filhos daquela terra. Como um predador silencioso que já se anunciava pela sombra projetada, todos sabiam que o momento chegaria, é verdade, mas sabiam apenas como se sabe uma teoria abstrata. Eis que num dia comum, banal como qualquer outro, a hora finalmente veio: as convocações começaram. 

Daniel observava as garotas, de saias plissadas, em geral longas – uma ou outra, mais ousada, as vestia pouco acima dos joelhos, deixando entrever as coxas durante a apresentação de danças típicas –, e era inevitável ponderar: seria a última vez que estava ali, junto da sua gente, em festa? Tinha sido convocado logo na primeira leva, e em breve se apresentaria; mas os demais rapazes não se iludiam: sabiam que, mais cedo do que tarde, os tentáculos da guerra logo os apanhariam também. 

O ânimo geral era estranho, e mesmo a alegria era tensa, de risos mais forçados do que naturais, como máscaras tragicômicas. 

Daniel, por ele, teria ficado em casa, ao lado dos pais chorosos, que não tiveram disposição para sequer fingir normalidade. Mas Pedro pedira para encontrá-lo, queria lhe entregar alguma coisa.

Uma das garotas piscou para Daniel, a mais bonita entre elas, de tranças compridas e bochechas salientes. Ela era toda potência, vida, e ele era qualquer coisa oposta a isto. 

“E aí, meu amigo”, disse Pedro, chegando pelas costas de Daniel, que, absorto, sentava-se sozinho num banco da praça, enquanto as meninas desciam do palco e a procissão tinha início.

Daniel olhou para o braço direito de Pedro, engessado, e depois, com um aceno, recebeu o amigo. Ele sempre dissera que faria isso, se as convocações começassem: Quebro meu braço na hora, não tem nem conversa

Notando o olhar do outro, Pedro enrubesceu. 

“Parece mentira, eu sei, mas foi um acidente”, disse, sem conseguir sustentar olho no olho.

Daniel ainda não conseguira dizer palavra sequer. Não fazia por mal – apenas não conseguia ir além. Acenou mais uma vez. Quando Pedro sentou-se ao seu lado, e a multidão deixava a praça para seguir a procissão pelas ruas, Daniel finalmente abandonou a mudez.

“O que você queria me dar?” Antes de concluir a pergunta, notou que Pedro carregava, na mão sem gesso, um pequeno embrulho.

“Aqui.”

Daniel abriu o papel grosso, azul, e explorou, com os olhos e os dedos, a moeda que o amigo lhe dera.

“Meu avô levou essa moeda para a guerra”, começou a explicar Pedro. “Foi presente de uma namorada da época – minha avó nunca soube dessa parte…” Um sorriso iluminou-lhe o rosto, fugaz como um raio. “Leva com você.”

“Por quê?”

“Bom… meu avô voltou da guerra.”

“Justo.” Agora foi a vez de os lábios de Daniel contraírem-se no mais próximo possível de um sorriso.

Nesse momento, a moça que piscara para ele de cima do palco surgiu à sua frente, faces rosadas de esforço, arfando, e o abraçou, molhando os ombros da camisa de Daniel com as suas lágrimas. Não disse nada antes de voltar correndo pelo mesmo caminho de onde viera, a fim de retomar seu lugar na procissão.

“Olha só, não sabia que ela tinha voltado.”

“Você sabe quem é?”, perguntou Daniel, ao que Pedro arregalou os olhos.

“Como assim? Você não?”

O semblante confuso foi resposta clara.

“Daniel, é a Rosa.”

Rosa: a primeira namorada de Daniel, ainda durante a adolescência em flor. Passara dois anos fora, estudando, e voltara mais corada e robusta, com um penteado diferente – mas ainda era a mesma. Para que Daniel não a reconhecesse, tinha de estar realmente com os sentidos e o entendimento embotados. Pedro inclinou-se e o olhou nos olhos pela primeira vez: eram olhos mortos como os de um defunto que tivesse partido em agonia; mesclavam torpor e desespero como nada que Pedro tivesse visto antes. Daniel tombou para frente; não fosse pela agilidade de Pedro, teria ido dar no chão.

Ainda naquela noite, Daniel recobrou os sentidos. Era estresse, disseram-lhe. Acordou na manhã seguinte como novo, e dali a uma semana apresentou-se na cidade vizinha. 

A guerra não durou muito mais tempo. Daniel recebeu treinamento durante três semanas e foi enviado para a linha frente, onde ficou por dois meses. Licenciou-se por quinze dias – não voltou para casa, viajou com amigos que fizera no front –, e retornou ao campo às vésperas da assinatura do armistício. 

Durante esse período, ainda que breve, viveu o que não poderia sequer ter imaginado. Viu homens e mulheres morrerem ao seu lado, e não gostava de pensar se teria sido responsável por matar outros tantos, inimigos cujas faces jamais viu. Seu semblante endureceu-se, seus olhos tornaram-se mais profundos e até mesmo sua voz tornou-se mais grave. Irmanou-se de maneira umbilical àqueles que serviram com ele. A família o abraçou de volta, sentindo que ali havia um novo Daniel.

“Ah, meu filho! Você foi e voltou… É um milagre. Pobre, pobre do Pedro – imagino que você ainda não saiba…”

Não foi, porém, com surpresa que recebeu a notícia de que o amigo estava morto. Um mal súbito, uma infecção – não souberam lhe dizer a causa. No dia seguinte, visitaria os pais de Pedro, para lhes prestar as devidas condolências. Acontecem as coisas que têm de acontecer, suspirou; e quando têm de acontecer, e se têm de acontecer. Rege o universo uma intrincada rede de coincidências ou um destino meticulosamente traçado? Fosse como fosse, arrepiou-lhe a espinha pensar como é tênue e traiçoeira a linha que separa os vivos e os mortos.