A luz do sol entrava pelos vitrais da janela luxuosa do escritório e coloria o rosto do cangaceiro. Ele despertou com aquela luminosidade nas pálpebras fechadas e olhou o relógio de bolso. O objeto não fora presente do chefe de Estado, como sempre contava. Na verdade, ele o tirara de um defunto, anos antes, quando trabalhava para o homem em sua extensa equipe de guarda-costas.
Por que alguém poderoso como o presidente precisaria de tanta segurança era uma pergunta que esse cangaceiro não estava muito disposto a fazer. Se o dinheiro era bom, era melhor não fazer perguntas.
— Senhor Francisco Robalo? — disse a voz no computador. — Senhor Francisco Robalo, o senhor tem uma mensagem da… Viúva… Santana.
Ele se endireitou na cadeira muito confortável.
— Leia para mim — disse.
A voz eletrônica demorou alguns segundos para responder.
— Vossa Senhoria… Cangaceiro Chico Robalo… está convidado para o jantar em sua homenagem que ocorrerá na noite de hoje na… Residência Fazenda Santana. Todo o seu bando está também convidado.
Ele escutou a mensagem com uma expressão séria no rosto, mas só percebeu ao final. Então, relaxou o corpo e se esticou na cadeira, mãos na nuca. Sorriu.
Por que estaria preocupado? O que uma velha viúva sem um vintém no bolso e inválida poderia fazer contra duas dúzias de homens armados? Uma viúva e, ele jamais poderia deixar de lembrar, suas três filhas solteiras. Porém, não intocadas. Isso ele poderia garantir. A lembrança o fez abrir mais o sorriso de dentes perfeitos e postiços.
— O senhor confirma presença nesse evento? — perguntou a voz eletrônica, interrompendo as lembranças. — Há um compromisso com o governador esta tarde, porém, o horário não é conflitante.
— Confirmo — disse e caminhou até a pequena adega anexa a seu escritório de governo. Serviu-se de um copo de uísque. Aquela garrafa fora presente de algum político, mas não lembrava qual. Parou com o copo a meio caminho da boca, afastou-o e, segurando com o polegar e o indicador, derramou um pouco da bebida no chão.
— A mim — disse. — E aos dias de glória.
***
O sol também bateu numa outra janela de uma fazenda não muito distante de onde um certo cangaceiro tomava o último drinque de sua vida.
Por essa janela de vidro meio fosco e cortinas pesadas, escuras, a viúva Santana observava, sentada em uma cadeira de rodas, o motor fazendo um suave som de apito que a acompanhara por quase toda a vida.
Vivia apenas à sombra dos dias antigos. Suas terras, tomadas como “imposto”. Pura conversa para boi dormir. Roubo legalizado, era como ela chamava, ou eles não precisariam de todo aquele armamento. E em nome do quê? Dos mais pobres? Que piada. Metade para os cangaceiros, metade para o governo. Aos pobres, as migalhas, caídas por ventura da mesa.
— Minha senhora? — falou Raimundo às costas dela. — Está na hora.
Raimundo fora o empregado mais fiel de seu marido, jamais saíra da fazenda, nem mesmo quando as vacas magras chegaram, e só tinham para comer um milho mirrado e carne seca. Outrora sempre animado e festivo, seu rosto lapeado pelo sofrimento agora era um quadro de natureza morta.
— Elas estão prontas? — perguntou a viúva. Falava das filhas, pois não era delas e apenas delas que sua velha boca falava já há tantos meses?
— Estão — ele disse. — Tem certeza, minha senhora, que deseja dá-las assim àquele cangaceiro?
Ela continuou certo tempo imóvel, as mãos sobre as pernas, o vestido negro tremulando na barra sob a leve brisa quente que entrava pelas portas abertas.
Com o toque de um botão, fez a cadeira de rodas girar, ficou de frente para Raimundo, vestido com o traje comum de trabalho, sujo e tão antigo quanto a própria fazenda Santana.
— Você ainda as ama, Raimundo? — ela perguntou.
— Sempre, minha senhora — Raimundo respondeu, meio sem jeito pelo questionamento, e completou: — Como se fossem minhas próprias filhas.
— Então, Raimundo, ame as meninas. Ame só mais uma vez, mais agora, e mais que nunca. Ame para fazer esse último sacrifício por elas. E por mim, meu filho. E pelo falecido patrão seu.
— E depois? — agora foi a vez dele de perguntar, dando um passo em direção a ela, seus olhos eram janelas apontando para o passado, mostrando o menino que sempre fora, acorrentado desde o dia em que nasceu naquela fazenda como o mais livre dos escravos. — E depois, minha senhora, e eu? O que vai ser de mim nesse mundão perdido lá fora?
A viúva Santana fez a cadeira deslizar até a porta, virou e encarou o empregado uma última vez.
— Você vai ser livre — disse. — E aí, vai ser quem quiser ser.
Mais tarde, em seu pequeno quarto em cima do celeiro, enquanto todos tiravam a sesta depois do almoço, Raimundo contemplava o campo por sua janela. No fundo, apesar de nunca ter lhe faltado o roupa e comida, aquela visão era a única coisa realmente dele: campos, pastos, depois, mais campos e mais pastos, dos Santana e de tantas outras famílias, sobreviventes das vacas magras, e das guerras, e das pestes, e do tempo.
Ele amava aquela vista, amava o toque do vidro aquecido pelo sol na testa. Ficou ali, chorando seus amores perdidos e os que perderia naquela noite, até o dia dar seu último suspiro em luzes alaranjadas.
Quando sentiu os olhos secos novamente, vestiu sua melhor roupa e caminhou pelos pastos até a varanda da casa principal da fazenda. Ao longe, vindo pela estrada que seu pai, quando moço, ajudou a pavimentar, já via uma longa comitiva de treze carros oficiais, todos pretos e agourentos como rabecões do inferno. Ele estremeceu.
— O cangaceiro e seus doze pares de cornos — disse e retorceu o rosto numa careta de desprezo.
Entrou pisando firme pela varanda, o pensamento nas filhas da viúva. Foi até os fundos da casa, num quartinho onde, muito tempo antes, os pais dele moraram e morreram, onde a mãe morreu de velhice e tristeza, dias depois do pai.
De um canto, a viola do velho pai o olhou triste e desafinada. Raimundo a pegou e dedilhou, movendo as tarraxas para afiná-la.
Livre? O que faria, então, se fosse livre?
Começou a cantar. Cantou sobre cangaceiros e aventuras, e o sertão e a chuva, e a fome e a colheita, e fogueiras apaixonadas.
E seria o quê? Nesse mundão de meu Deus, perdido sem Sua presença?
Seria uma voz.
Cantou sobre o cangaceiro que chegava.
Na cozinha, o prato principal fumegava numa grande panela de barro. A viúva Santana subiu em uma plataforma especialmente colocada ali para ela naquela noite. Todos os outros trabalhadores da casa já haviam sido dispensados, com exceção de Raimundo.
Ela subiu e depositou os últimos ingredientes, vendo-os afundar na panela e desaparecer junto com as lágrimas de olhos que já haviam visto tanta coisa. Agora só queriam descansar.
Sorriu satisfeita.
A campainha tocou e ela foi até a entrada, já sabendo quem chegara.
Raimundo estava lá e abriu as grandes portas duplas a um aceno de cabeça dela.
A varanda se abriu para o grupo de cangaceiros com seu líder e capitão que, de braços abertos, sorria. Aquele sorriso falso enganara seu marido. Agora surgia todas as noites, no escuro, em seus pesadelos.
— Minha senhora — disse o cangaceiro Chico Robalo.
— Boas-vindas a minha humilde fazenda — respondeu a viúva. — A você e a seus homens.
— E suas filhas? — foi logo perguntando ao entrar na casa. — Onde estão? Elas estão bem, imagino.
— Estão sendo preparadas — ela respondeu, os olhos fixos nos dele. — Especialmente para esta noite.
O sorriso do cangaceiro se alargou, apesar de continuar sendo falso, morto.
Raimundo não sabia como estava conseguindo conter, ao menos até aquele momento, a vontade de pular no pescoço daquele homem cruel e apertá-lo até que seus olhos saltassem das órbitas fundas.
— Preparadas? — perguntou o visitante.
— Sim, agora, se me dão… se nos dão as honras, por favor, Raimundo, leve nossos convidados à sala de jantar.
— Sim, minha senhora — respondeu o empregado.
— Raimundo, meu bom — disse o cangaceiro virando-se para o homem —, como estão seus pais?
— Mortos, senhor — ele falou, olhos fixos no outro, como sua senhora o instruíra. — Você mesmo os matou, ao menos meu pai, há vinte e cinco anos.
O cangaceiro deu uma sonora gargalhada, acompanhado por seus homens.
— É verdade, homem — disse secando as lágrimas. — É que a gente manda tanto cristão pra vala esses dias que acaba se esquecendo e comete essas gafes. Me desculpe.
A isso, Raimundo não respondeu, apenas deu as costas e caminhou até a sala de jantar. Foi seguido por parte do bando de cangaceiros, a outra parte ficou do lado de fora montando guarda.
O salão onde ocorriam os jantares, assim como o resto da fazenda, era apenas a sombra do que fora um dia. As paredes, agora nuas, já haviam ostentado quadros valiosíssimos, todos de artistas sacros sertanejos. Uma solitária prateleira ainda restava, com somente meia dúzia de livros sobreviventes. Cordéis de um mundo que não voltaria mais.
— Sentem-se, por favor — instruiu a velha senhora Santana e os homens de Chico Robalo obedeceram, dispondo-se nas cadeiras ao redor da mesa longa de madeira que ocupava quase toda a sala.
— E suas filhas, onde estão? — perguntou Robalo novamente, pondo um guardanapo sobre o colo.
— Como já lhe informei, estão sendo preparadas para o senhor e para seus homens — respondeu a viúva.
Os cangaceiros se entreolharam, mas nenhum deles disse mais nada. Raimundo, que havia se ausentado por um instante, voltou trazendo uma bandeja com tira-gostos, queijo de cabra, castanha de caju e um copinho de cachaça para cada um dos convidados.
A prosa continuou por mais algum tempo, sempre com os cangaceiros falando e a dona da casa e seu empregado quietos. Depois de algumas rodadas de aperitivos, o chefe dos cangaceiros finalmente se inquietou.
— Mas e essas meninas, cadê? — perguntou, batendo na mesa. — Quero ver as três, como é mesmo o nome delas?
— Maria Flor, Francisca e Maria Teresa, se você não lembra de todas que fez mal — falou Raimundo entre dentes.
— Raimundo — interveio a velha senhora Santana. — Está na hora do prato principal. Por favor, sirva-nos.
— Sim, senhora — disse e retirou-se.
— Garanto que a espera vai valer a pena.
Chico Robalo a olhou com seus olhos fundos. Seus homens inconscientemente mais eretos nas cadeiras.
— É bom que sim — sorriu o cangaceiro. — É mesmo bom que sim.
Raimundo retornou empurrando um grande caldeirão em um carrinho de rodinhas. O conteúdo da panela fumegava e o cheiro fez o barulho dos estômagos dos cangaceiros ser audível por toda a sala.
— Eita que o bucho já tava era reclamando era muito — falou Robalo.
Junto com o panelão, foi trazido um conjunto de cumbucas muito antigas, dos tempos do Império, afirmou a viúva.
Raimundo serviu a todos, começando por Chico Robalo e rodeando a mesa. Quando ia colocando a sopa, os homens avançavam como cães esfomeados. Parou de servir ao chegar ao lado de sua senhora, deixando, porém, a cumbuca dela vazia.
— Não vai comer, velha? — inquiriu Robalo.
Ela o ignorou e olhou nos olhos de Raimundo.
— Vá, meu filho — disse, fazendo o empregado se derramar em lágrimas. — Vá que seu trabalho aqui já tá feito. Só lembre de ser livre quando estiver lá fora.
Ele assentiu, dando as costas para os cangaceiros que começavam a cair mortos.
Só quando ele saiu da sala a velha senhora Santana fitou novamente o líder do bando.
— Como disse, minhas filhas estavam sendo preparadas para vocês. — Ela fez a cadeira de rodas ir até o lado de Chico Robalo que estrebuchava segurando a garganta. Espuma branca escorrendo pela boca.
— Velha filha de uma rameira — ele conseguiu falar. — O resto do bando tá lá fora, não vai sobrar nada desse lugar, nem de tu.
— E quem disse que tem o que sobrar desse lugar? — perguntou pegando a tigela de sopa e a colher do cangaceiro e começando a dar-lhe mais da sopa. — Coma tudo, seja bonzinho — disse.
— Tu vai morrer velha safada — ele falou enquanto a espuma em sua boca se tornava vermelha.
— Eu morri — ela respondeu, entornando o resto da sopa quente da cumbuca no rosto do cangaceiro. — Quando vocês vieram aqui e levaram minhas filhas. Sabe o que elas fizeram ontem à noite? Elas tomaram veneno, se mataram, as pobres. Mas eu preparei elas pra vocês, ah, preparei sim. Pensei se não tinha outro jeito, mas tinha não, tinha nada.
Ao dizer isso, a velha senhora Santana terminou de derramar a grossa sopa no homem e, da cumbuca, além do líquido, caíram os restos das filhas, envenenadas, primeiro pela maldade daquele endemoniado, e, por último, por elas mesmas, mas a dose era grande e o veneno era forte.
— Vocês queriam elas, não queriam? Pois tá aí elas.
Ela riu, riu olhando os mortos ao redor, riu quando os outros cangaceiros entraram na sala de jantar, armas em punho.
E morreu com um sorriso nos lábios, cravejada de balas, o mundo explodindo ao redor.
***
Antes de deixar o que fora seu lar por toda uma vida, Raimundo não pôde evitar de passar no antigo quarto dos pais e recolher a viola de madeira envelhecida pelo tempo.
Correu para o campo enquanto os disparos trovejavam dentro da casa. Estava feito.
Continuou correndo pela estrada e fugindo por meses. Parou numa cidadezinha de beira de estrada.
— E essa viola? Toca? — perguntou o dono da bodega quando Raimundo entrou.
— Sim, senhor — Raimundo respondeu.
— Então avie e toque pra nóis — pediu um cliente bebendo no balcão.
Raimundo olhou os dois como se tivesse acabado de se dar consciência de si pela primeira vez na vida. Dedilhou a viola.
— E tu canta do quê?
— Eu canto dum cangaceiro, coisa-ruim.