O livro no fígado – conto inédito de David Carvalho

Variação de uma lenda hierosolomita que narra a origem da construção das muralhas da cidade e de seus portais no século XVI.

Todas as noites o Grão-turco sonha o mesmo sonho, onde se levanta da cama, em seu palácio na urbe de domos amarelos brilhantes, e anda completamente sozinho pelas ruas até se ver caçado por um Leão terrível. Não há súditos que o escondam, não há instituições que barganhem por sua vida, não há cavaleiros que corram aos estábulos em seu nome, a cidade está absolutamente vazia, e noite após noite o Grão procura novos esconderijos para prevenir a carnificina.

As portas das casas são muito estreitas, como se os seus umbrais guardassem os jardins do paraíso logo atrás, mas o Leão, apesar do manjar de que desfruta diariamente, continua sinistramente magro e consegue se esgueirar para dentro. Advindo de planícies e tempos distantes, uma vez no interior dessas residências abandonadas, ele despende as suas reinações, urina, fareja, rastreia, perscruta, descobre, persegue, azucrina e amola as garras na pele humana. Abocanha torrões de membro e despedaça o resto. Por ser um pesadelo, o Grão-turco, cujo corpo real e intacto se encontra ensopado de suor em uma cama do harém, ao lado de beldades asiáticas e africanas, mesmo depois de ter sido retalhado pela besta, continua acompanhando as desventuras dos seus ossos, palitando a boca do monstro, carregados por vielas sombrias para depois serem cuspidos nos fins da urbe, onde paulatinamente passam a compor pilhas.

Para desfazer este círculo infernal a religião comum dos domos amarelos não basta. O Sultão deve, portanto, consultar os Magos à sombra, inicialmente os conservadores, que lhe receitam medidas antiquadas. Pedem que passe a dormir menos, como eles próprios, patriarcas em vigília, para que sobre mais tempo ao estudo e à meditação, enquanto caravanas de caçadores são enviadas para matar os leões que vivem nas planícies mais próximas.

Outros, do partido das novidades, antecipam que essas horas a mais o Grão depositaria em seu harém para acompanhar disputas de alaúde e apagar lanternas e que essas bestas do sono dormem em grutas mais profundas que as das cercanias, por isso sugerem o expediente do confronto ao próprio Sultão. Mascarados de bucrânios, para lembrar que são os touros as bestas mais poderosas, ungem a sua lança principal com o azeite vertido de chifres sinuosos e, visto que o sonho é um espelho do mundo material, espelho trincado, mas ainda um espelho, ordenam-lhe que durma com ela todas as noites sob a sua cama e a invoque no vidro dos sonhos para espetar o Leão.

O Grão-turco, na dúvida, decide entremesclar todas as medidas. Dizima a população de felinos grandes do país, passa noites em claro buscando distrações mundanas e, quando por fim cede ao sono, vai deitar-se perto da lança para acessá-la facilmente e percorrer os salões do palácio sonhado, as pedras soturnas das vielas e pátios, onde encontra rastros de sangue pelo chão e paredes, seu sangue, além de castelos de ossos lambuzados, os seus. Nada, contudo, impede que a besta volte a se mostrar e o devore sadicamente uma vez mais.

Exausto, temendo um dia ficar preso de vez nesse eterno pesadelo sem conseguir mais despertar, manda chamarem de terras distantes, para além de cidades onde os domos são verdes e brancos, depois de lugares onde os arquitetos sequer constroem domos, um Mago muito controverso, porque crítico de ciências populares e fáceis que, para descobrir a ordem das coisas, ensinam a ler o número de animais no céu e a direção de seu vôo, o formato das linhas na mão, a posição dos astros no cosmos. Este radical reputa como única razão possível a leitura dos órgãos das aves.

Em seu primeiro dia com o Grão-turco, enfadado depois de ouvir repetidas vezes o relato da situação e o apelo em nome do bom sonho, pede autorização para visitar o seu viveiro e traz dele um pássaro pequeno que não acarinha antes de matar segundo a regra impassível dos rituais. Extrai-lhe o fígado e manipula-o para ampliar à visão e ao tato as fibras e as linhas escondidas sobre a superfície. No fundo todos sabem que, auspício por auspício, os capítulos desta víscera molhada sobre o atril do mago não possuem muitas histórias a mais do que os escritos na palma de uma mão aberta ou nas constelações de astros. Tudo vai depender da capacidade de interpretação do Mago.

A leitura toma o seu tempo. O visitante afinal pede permissão e revela ao Grão-turco não se tratar de um Leão só o algoz que lhe devora a carne infinitamente, pois tamanhas ira e fome não coexistem em nenhuma criatura. São sim Leões diferentes, inúmeros Leões, tantos Leões quanto domos. Mesmo os que já o houvessem visitado e que nesse momento se encontrassem satisfeitos, suspensos entre a matéria e o sonho, logo regressariam, famintos, para caçá-lo, e assim todos eles continuariam até construir uma muralha branca feita exclusivamente de seus ossos ao redor da urbe e até pintar cada edifício com o sangue derramado.

Nota o ouvinte assustado e não consegue, por trás da máscara de apatia pregada em seu rosto, não se regozijar de alguma maneira por haver ferido ao seu modo um homem tão ilustre. Pede permissão novamente, quer complementar sua mensagem com uma segunda revelação. Diz saber o que são esses Leões famintos, são Reis, são Salomões de barbas como jubas, antigos governantes santos da urbe que não desejam nada mais senão guardar-lhe como se guarda uma pedra preciosa dos gatunos. Por isso pintam-na, para cobrir o seu rosto dourado com um largo véu vermelho, por isso erguem um muro, para fechar todas as portas aos estrangeiros, transformando-a em um orbe. Se regressassem como pássaros, de fígados ainda bem amarrados por dentro, suspendiam-na da terra e encerravam-na nas nuvens, por trás do raio.

O Grão, incomodado pela nova interpretação, para se dizer o mínimo, sustenta incansavelmente o conciliábulo durante a noite inteira em busca de uma saída para o seu cativeiro. Espreme o Mago em seu moinho de angústias, fá-lo manipular e girar aquele pedaço de fígado até a sua expressão se desfazer em suor e cansaço e as suas falanges rangerem como uma manivela desgastada. Só lhe dá sossego depois de ouvir, afinal, um bom conselho, que se apressa para executar. Transformar a vontade dos Salomões na sua, mandar construir ele mesmo uma muralha ao redor da urbe, pintar os seus prédios com um vermelho ocre, cor da argila, para esconder a cidade de quem não lhe saiba sagrada, de quem não lhe mereça contemplar. E nunca mais um Leão pintou um domo novamente.

Desenho exclusivo de David Prado