O Novilho Cevado

– por David Carvalho

Porque tu sempre foste o preferido pelo meu pai, aí jaz um novilho esventrado à prova. Porque tu palmilhaste o rebordo do abismo e cravaste as solas em pedregulhos na pressa de cruzar este batente, assim, assentas na cadeira e esperas pelas fiéis mãos de um servo para lavar tuas pernas, tirar delas o barro e o estrume que lhes pesam. Quanto mais feridas adornarem a planta do pé, mais macias, gentis e silfídicas exige-se que sejam as mãos do serviçal. Chamem a mais nova das meninas, de pronto, chamem as rosas sem espinho, as melenas acastanhadas. Suas mãos são como flores por se macular, e os peitos, tâmara sobre o restolho. Eu sei, irmão, o motivo de teu exílio para as lonjuras sem nome, buscavas a Babilônia. E quantas vezes não a encontraste nas meretrizes ferozes que se estenderam em enxergas para ti, mulheres insólitas em casas soturnas, diante das quais escorchaste sofregamente o falo na esperança de calar o alvoroço que fazia as tuas vísceras urrarem feito matilha sedenta. Te deitaste com moabitas, fenícias e amonitas, marcaste os portões de Jerusalém em um jorro triunfal de urina e esperma manchado pelas espirais de um suave treponema, tua única companhia nas madrugadas que sucediam os banquetes. E de tua semente há de brotar meninos e meninas aos borbotões, pingando do gargalo de maternidades absurdas para se mover pela casa como o gorgulho sobre o trigo. Teus bastardos, já os vejo apinhados à porta mendigando o que nos restar do almoço, mas tu não ouvirias nem os queixumes nem as batedelas, porque são filhos do desprezo, como tu nunca o foste. Eis a glória dos palestinos que viverão daqui a vinte séculos, serão descendentes de uma singela prodigalidade que um dia profanou os mourões da casa do pai.

Parece que não, pareço distar de ti o abismo de uma sala, mesas e cadeiras jazem inúteis entre nós, tu sobre almofadões de seda, eu debaixo do umbral da velha casa, mas daqui eu te vejo, pródigo, não precisamos cruzar as mãos em um cipoal de gentileza. Daqui eu vejo os teus dois pés imundos, tiras de carne maltratada cujo sangue reteso aflora na pele quase a irromper pelos calos e manchar o chão em que pisas. Ainda fedes à bosta dos porcos que te albergaram e te acolheram como se fosses mais um dos leitões. Não chegaram a conhecer o pródigo, aceitaram-te febril e sifilítico, cavaram para ti uma nova cama no esterqueiro à espera de que brotasse acima das nádegas uma rabicha, muda a se soerguer do húmus. Sei que tu seguiste ascendendo, um grunhido por vez, na sorte da vida suína, mas nem nisto conseguiste sucesso, pois não te espetaram a garganta com o ferrão, nem penduraram tua carcaça despida sobre as brasas da fornalha para depois servirem tuas gorduras a gosto dos comensais em um dia de festança. Chegaram os convivas e onde o pródigo? Te imaginavam assentado no chiqueiro, pesando sobre os bagos e ansioso pela mortalha, mas tu, ingrato, já te lançavas pelas estradas a passos de quadrúpede liberto, javali fugido de cativeiro, e ainda percorreste alguns caminhos antes de te lembrares, em um trambolhão de sensatez, de tua própria humanidade. Ergueste então o lombo para o alto, com as pernas trôpegas arriscaste um passo no cascalho, depois o segundo, constrangido pela nudez, nudez de um Adão abismado sob a copa da primeira árvore do mundo. Com a pouca força que ainda tinhas, conseguiste invocar um fio de voz e não o deixaste se romper enquanto não morria todo o guincho que ainda se atravancava em tua laringe e nos confins da tua alma. Ainda assim os nomes das coisas, esses misteriosos sopros de ar, não se revelaram de imediato. Olhavas para o rio e falava “água”, olhavas para a montanha e “pedra”. E tu procedeste, seguindo o rumo da água e dormindo doído sobre a pedra.

O farol das lamparinas de azeite por detrás dos postigos arrefeceu o breu de tuas primeiras noites ao relento e tu dormias como qualquer coelho distante da toca, apavorado, de borborigmos plantados na barriga. Mas a alvorada despertou um novo ânimo em meu irmão. “Provarei da sorte dos peregrinos, deves ter pensado, todas as sendas do mundo estão curiosas de minha cajadada e a torga à ilharga roça-me os tornozelos sempre que um sopro dos vales desce o planalto para animar as imobilidades”. É certo, pródigo, tiveste as tuas urzes e encontraste, vá lá, alguma bonança rolando pelas picadas. Deus, contudo, é bom e impingiu uma discreta aliança lá do alto para ti, “ESCOLHE DE TANTOS CAMINHOS UM, O QUE VAI TE PROJETAR AOS BRAÇOS CANIÇOS DE TEU PAI, MEU SERVO, ANCIÃO DAS TERRAS DE LÁ, E EU NÃO TE REDUZO A UM ESTURRO CUJO PÓ HAVERIA DE SER DEBICADO PELOS ABUTRES, TU NÃO SERIAS MAIS DO QUE UMA MÁCULA ENTRE OS PEDREGAIS ENQUANTO O ORVALHO DA PRIMEIRA MANHÃ NÃO ESCORRESSE CONTIGO DA TERRA. ESCOLHE”. A rota de tua última aventura já estava, assim, traçada, insinuava-se pelo assobio da crepitação de sarças loquazes nas quais trombavas pelas veredas, pesado de carrapichos no pelo dos tornozelos, e tu não demoraste a aceitá-la, exausto como estavas do signo que pesava sobre a tua clavícula e que te derruiu e que fez de ti o refugo de um ímpeto imemorial.

Irrompeste pelas planícies baixas e o areão te pareceu assim, familiar, paternal. Eram as terras do ancião, pródigo, reconheceste e apressaste o passo. Os mourões, contudo, já não pareciam reter a mesma gordura de terras, nem de olivais ou pedregulhos. A boiada ocupava metade do pascigo. Onde as vinhas? Não viste uma uva sequer pensa em cachos bojudos, inclinada sob o engaço. É que já não os há, uva e engaço, diluíram-se junto de boa parte do plantel e dos hectares. O pai foi obrigado a vender muito do que tinha para conseguir a pequena fortuna que te foi repassada, a mesma que, repito, tu expendeste em bárbaros lupanares. É lei de economia doméstica, todo capital tem um custo e o teu valeu-nos os olhos e as órbitas. Ainda assim, lá estavam todos, a babar teu nome quando tu chegaste. Estenderam as mãos para ti, saudaram teu juízo e agradeceram a Deus por tamanha bênção, até as azêmolas envergaram-se em reverência figadal. Os molecotes correram casa adentro e invocaram meu pai para a claridade matinal que nos envolvia. Assim que o velho te viu empalideceu, tremeu-se todo e caiu duro na terra, quase desfalecido, afinal era o filho perdido que estava ali, em pé, ofegante, miserável, mas vivo, a olhá-lo como um cão arredio. Levantaram-no, mas tu permaneceste à distância, tentando reter as lágrimas em um último golpe de orgulho que não cai bem a tipos com pés rasgados; também é possível, presumo, que não estivesses retendo-as, mas que simplesmente já não as tivesses mais dentro de ti, mijaste e suaste todas pela estrada marcando setas no chão que te indicassem o caminho de volta, de volta ao esterco, aos porcos, caso nós não te aceitássemos e te amaldiçoássemos e te varássemos como um bicho e te enxotássemos para longe. Não digo que não foi prudente, também sou senhor dos cuidados, mas foi absolutamente desnecessário, pois assim que se levantou, o meu pai avançou sobre ti; até então foi o único, pois a tua podridão mantinha os escravos a quinze passos de um sereno abraço receptivo. Ignorou teu bafo, os trapos rotos, encarou-te assim como te encaro neste momento, frente a frente, sem medo, obrigando-te a arquear-se pronta e subitamente até beijar o chão batido com a testa, sim, assim como tu te curvas agora diante das palavras do primogênito, cansado de ouvir tantas vezes o teu nome, pródigo, pródigo, pródigo, embalado em um especular que reconstrói a mixórdia de teus passos e que arranca do teu tríptico as tripas.

Os pródigos também amam e quem ama retorna, cogitou o meu pai, tateando tuas costas e beliscando escrófulas que te pesam o pescoço, para verificar se tu és real, se não és o fantasma do filho que a todos enrolou em uma patranha espetacular. Eras tu, afinal, e não tiveste a paciência amolada por futilidades, ninguém te perguntou que lugares conheceste, o que diabos aprontaste pelo mundo, quantos anfitriões te acolheram entre os seus, quem segurou o relho que te zurziu as costas, como era o sibilo das cobras que se desviaram de teus tornozelos. Foste aceito em todo o teu mistério, em todo o teu pecado, e coraste, tu não esperavas reencontrar as mesmas mãos que um dia tu repeliste, tu não esperavas ser acolhido em tua Pátria como um filho digno da terra e, no entanto, aqui estamos, corteses, notívagos, embalsamados pelo sândalo que exala dos quartos, dos corredores, das almas. Ao bater do crepúsculo, o meu pai veio a mim e noticiou o que encomendara, a morte do mais gordo de seus bezerros para oferecê-lo a ti, pródigo, em um banquete como ainda não viste em mil léguas de peregrinação. Mataram-no e aí está, genuflectido, devoto diante de ti; arremessei-o indelicadamente a teus pés, não para declarar guerra, como um Caim deveras diplomático, mas para cumprir um expediente contábil e assim iniciar o conto acerca do custo de teus caprichos, o que me carregou madrugada adentro e que devo encerrar o quanto antes. Tu estás prestes a provar da justiça do primogênito, pois sou eu o responsável por este torrão que nos alberga, há muito os deveres legais me foram delegados pelo pai. Sou teu anfitrião e irmão mais velho, cabe a mim decidir tua sorte, se vai ou se permaneces, se dormes ou se ficas de pé em prontidão de pilastra, e, tu sabes, sou implacável. Já decidira a cor de teu destino bem antes de te prestar esta visita. Assenta. Ouve. Cora. Te abençoo. Eu deixo para trás o Filho Pródigo e já nem lembro do nome, tu serás, pois eu te renomeio, o Filho Remido, e as meretrizes e os porcos não te reconhecerão mais. Tu permanecerás na Pátria e acompanharás a colheita de cada cenoura da terra aberta, montado no cabo de um enxadão, a pisar em radículas torradas pelo Sol. Te abençoo com o bom trabalho que a prosperidade há de exigir em cada vigília, ao cabo de uma colheita, ao princípio da seguinte, na busca pelos carneiros afoitos, no abater os doentes. Teu suor há de regar veias do chão muito antigas e se acumular em albufeiras subterrâneas, suspensas entre a superfície e o centro do mundo, para depois ser absorvido pelos tentáculos radiais destes magníficos pinheiros que coroam a nossa casa. Te abençoo com novos olhos, novas retinas. Tu serás o que nunca foste, eu serei o que sempre fui. O filho que diz sim. Tu poderás fitar-me de frente sem precisar se ajoelhar em minha presença. Ergue-te.