Maria – por Andre Klojda

Aproximava-se o horário do fim do expediente, e Maria ainda não conseguira parar um momento sequer naquele dia: “Venha aqui”, “Vá acolá”, “Ajude-me um instante!”, suas colegas pediam. Com comovente solicitude, sem palavra agressiva ou mau pensamento, Maria atendia a cada uma.

Normalmente, não contava os minutos para o horário de saída. Nesse dia, porém, era diferente. Como ímãs, seus olhos não conseguiam resistir à atração do relógio, pendurado alto na parede da copa, ávidos para o ponteiro marcar 18 horas. 

“Maria, por favor! Um momento só…”, pediu uma mocinha, a mais jovem das camareiras. Sem fazer cara feia, apesar de faltarem apenas cinco minutos para o tão esperado horário, Maria foi até ela e a ajudou com a terrível máquina de lavar do primeiro andar. O treco nunca funcionara direito, não seria agora que deixaria de dar problemas…! Por ser a mais velha e pelos idos anos desde que começara a trabalhar no hotel, Maria sentia-se especialmente tocada pelos pedidos de socorro das iniciantes. Com o jeito que só ela tinha, colocou a máquina em operação, para alívio da moça em apuros.

Enfim livre para ir, Maria tomou um banho rápido no pequeno vestiário das funcionárias, onde o chuveiro operava aos pingos, trocou a roupa e foi embora sem se despedir. Apesar do aperto no coração que isso lhe causava, como se sair no horário certo, sem falar com ninguém, fosse uma infração às regras, deixou o prédio pela porta dos fundos. Não olhou para trás.  

Era um fim de tarde bonito, com um suave sol alaranjado a esconder-se atrás das montanhas, por sua vez parcialmente ocultas por nuvens leitosas, que adornavam o horizonte. 

Após olhar apenas de relance as vitrines das lojas da rua, também já prestes a encerrar o expediente, Maria logo subiu as escadas da estação de trem e chegou à plataforma. Naquele dia, a viagem seria mais breve, porque saltaria dez estações antes do que estava acostumada: assim era o caminho mais curto para a casa da aniversariante.

Joice era sua amiga desde o primeiro emprego das duas, num hotel próximo àquele em que Maria agora trabalhava. Aguardou ansiosa a passagem dos quatro minutos, sinalizados no letreiro, até a chegada do trem seguinte. 

Durante o trajeto, no vagão que chegara estranhamente vazio – considerou um presságio de que seria uma noite agradável –, Maria pensou nos tempos em que ela e Joice viviam sempre juntas, no trabalho e nos dias de folga. Surpreendeu-se ao dar-se conta de quantos anos já fazia desde aquela época.

Despertando dos devaneios para não se esquecer de saltar na estação certa, Maria desceu junto a um mundaréu de gente, após esperar com impaciência a abertura das portas. Quando foi que o vagão, antes confortável, ficara lotado? Fizera o trajeto imersa nas lembranças, desatenta ao fluxo de passageiros e vendedores ambulantes. Muitos daqueles rostos, silenciosos companheiros de rotina, já lhe eram familiares.

A passos ligeiros, percorreu o curto caminho entre a estação e a rua onde Joice morava com o marido, Tiago, e os filhos. 

A casa ainda estava vazia, com não mais do que cinco ou seis convidados, mas os demais não demoraram a chegar. Bem disposta como de costume, Joice alegrou-se ao ver a amiga.

“Maria, minha irmãzinha!” 

Joice sempre fora a mais calorosa das duas; longe de ter o temperamento pacato de Maria, sua extroversão e sociabilidade a colocavam constantemente sob os holofotes. Mas não era algo que prejudicasse suas qualidades como amiga fiel: mesmo casada e com filhos, fazia questão de manter contato com a velha companheira. As longas conversas ao telefone ainda eram regulares, apenas menos frequentes. Maria, embora amasse a amiga na mesma medida, era de poucas palavras, guardava muito para si – o que já lhe havia custado ouvir alguns bons sermões…

Maria encontrou um porto seguro, entre os convidados, ao chegar Nora, irmã mais velha de Joice, a quem não via fazia anos. Nora, também deslocada em meio a desconhecidos, ficou igualmente feliz com o reencontro, e logo se sentaram no sofá.  

À parte breves intromissões de Joice, que se desdobrava para dar atenção a todos, e intervalos para servirem-se à mesa, Maria e Nora conversaram durante toda a noite. Maria estava feliz, sentia-se leve em meio àquele clima de celebração – fazia tempo que não comparecia a uma festa – e, ao contrário do que ocorrera no expediente, esqueceu-se do relógio. 

Só lá pelas tantas, como a Cinderela que vê, surpresa, aproximar-se a meia-noite, notou que a barulheira na casa diminuíra e que já devia ser tarde. Os garotos, filhos do casal, tinham ido dormir, porque o dia seguinte era de escola; restavam apenas dois pares de amigos de Tiago. Junto a ele, que tocava violão, cantavam com admirável entusiasmo.

Justo nesse momento, Joice chegava ao sofá para se juntar à amiga e à irmã, após ter se despedido do comboio de convidados que acabara de ir embora. Maria, mesmo pesarosa por não poder aproveitar a presença da anfitriã, anunciou que partiria. Em protesto, as outras apelaram que reconsiderasse e ficasse pelo menos mais um pouco. O último trem passaria em breve, insistia em dizer, mas não lhe davam ouvidos. 

“Você vai ficar com a gente, Maria! Só esta noite, por favor. Nós nos vemos tão pouco…” 

Maria sentou-se novamente no sofá, com a bolsa no colo, como quem ainda não desistiu da ideia de partir. No entanto, sua hesitação era característica daqueles que estão quase convencidos a mudar de ideia… Ao olhar o relógio na parede atrás da mesa de jantar – tão parecido com aquele da copa do hotel! –, desistiu e entregou-se. Fosse o que fosse! A vida não podia se resumir à repetição da rotina, ainda que ela a executasse com a boa vontade de seu coração generoso. Quem era Maria para além do cotidiano há tantos anos centrado no trem e no hotel, com alegrias esparsas como os pingos do chuveiro no vestiário das funcionárias? Quando essa questão cruzou, como um flash, a sua mente, sentiu uma inédita urgência em descobrir a resposta a esta e a outras perguntas. Com um semblante menos cansado e mais jovem, adquirido instantaneamente – prova de que é possível transformar-se em um segundo – ela disse que ficaria, desde que pudesse escolher a próxima canção para Tiago tocar. Todos comemoram, até os amigos de Tiago, que não a conheciam: foi impossível não reagir ao luminoso sorriso de Maria. Os olhos de Joice marejaram e ela usou a manga da camisa para secá-los discretamente. 

Andre Klojda é jornalista, doutorando em literatura brasileira (UFRJ) e ficcionista. É autor dos contos de Imaginação (Penalux, 2020).