O meu Kafka – um ensaio e duas traduções por André Klojda (03/06/24 centenário da morte de Franz Kafka)

* Em homenagem ao legado de Franz Kafka, falecido em três de junho de 1924

-por André Klojda

Franz Kafka está morto há exatos 100 anos, completados neste 3 de junho. Não morreu em Praga, e sim num sanatório próximo a Viena, mas sua ligação com a cidade natal é umbilical e indelével – é a mãezinha com garras afiadas da qual não se pode escapar, como ele mesmo a descreveu. E para lá, de fato, voltou: está enterrado no cemitério judaico, no bairro de Strasnice.


Praga é a cidade na qual viveu meu avô paterno, nascido no ano seguinte à morte de Kafka. E isto quer dizer justamente o que o leitor está a pensar: absolutamente nada. Bom, é nada, mas é alguma coisa; é uma conexão, forçada e remota, que gosto de pensar ter com o escritor. Cada qual tem os autores de que gosta, e, entre estes, tem os seus autores, aqueles que não apenas falam, mas sussurram ao pé do ouvido. Para mim, Kafka é destes últimos.

Quando comecei a escrever textos supostamente literários, era ele quem eu tentava imitar, a fim de assimilar o estilo, como etapa no caminho de desenvolver um próprio – tarefa, aliás, de toda uma vida, caso alguém queira a ela se dedicar. As pequenas peças de Contemplação mostraram-me a senda pela qual queria enveredar: eram curtas, agridoces, e embora fossem diretas, eram misteriosas. As frases, mesmo quando se alongavam, permaneciam límpidas, corretas. Era como alguém que tinha encontrado exatamente o que queria dizer, preciso como o Relógio Astronômico de Praga, e o único jeito de dizê-lo era por meio de uma literatura ainda inaudita, a qual só ele seria capaz de dar à luz. Eu era ainda adolescente quando li Contemplação pela primeira vez. Nalgum lugar dessa trajetória, houve Um artista da fome, A metamorfose, uma primeira tentativa com O processo, os aforismos, os diários, as cartas, e por aí foi…

Não sei apontar o momento em que Kafka tornou-se um dos meus – ou que eu me tornei um dos dele. Muitos anos depois, em visita a Praga, conheci os pontos turísticos manifestamente referentes ao escritor, mas a verdade é que toda a cidade é permeada de vestígios dele. A capital tcheca que eu via com meu pai, que, por sua vez, a via através das lembranças de meu avô, era a mesma que transparecia nos escritos de Kafka, mesmo se não de modo explícito e nominal. Praga é mais compreensível sob o prisma da estranheza kafkiana. Trata-se de um homem que refundou a cidade onde nasceu, mesclando-se a ela por meio de suas palavras, tornando arte e vida uma e a mesma coisa, como raros artistas conseguem fazer.

É clichê, eu sei, quase vergonhoso, e estou incluindo esta observação apenas na última revisão deste texto – mas, mesmo relutante, tenho que dizer: Kafka está morto, mas permanece vivíssimo.

Kafka é uma atmosfera, e sua literatura também é uma literatura atmosférica, no sentido de que existe algo denso, significativo, que permeia todo o seu universo, transformando qualquer banalidade em algo sui generis. Praga, do mesmo modo: a princípio, não existe muito a diferenciá-la de alguns outros centros europeus; mas o porquê de essa cidadezinha estar sempre entre os principais destinos turísticos e ser saudada como talvez a mais encantadora do mundo, admito que me escapa à razão, e consigo entendê-lo apenas por meio do sentimento. Ali existe algo objetivo, mas profundo como um abismo, inescapável como o destino de Josef K. ou de Gregor Samsa. Um vento que sopra é um vento que sopra; um vento que sopra na Ponte Carlos, sobre o Moldava, é algo de muito diferente…

E isto não é apenas lirismo. Como afirma Milan Kundera, a própria existência da nação tcheca nunca foi entendida como algo dado, e o fato de ser algo não dado é justamente um de seus principais atributos. Para existir, foi sempre preciso reafirmar as singularidades de sua arte e de sua cultura. Kundera prossegue: para os tchecos, nem a língua, nem o pertencimento europeu são incontestáveis, e sim temas espinhosos, repletos de percalços, escolhas e lutas. Ele proferiu essas palavras em discurso no congresso de escritores, em 1967, às vésperas da Primavera de Praga. Historicamente, um passado bastante próximo, embora nossa perspectiva nos engane quanto a isso; e nada nos assegura que o futuro não reserve mais provações à cultura e à própria existência da hoje chamada República Tcheca.

Pois muito bem, Kafka, nascido à época do Império Austro-Húngaro, educado em escola alemã e sob muitos aspectos culturalmente mais próximo dos germânicos, talvez não reflita os anseios mais profundos quanto à preservação da cultura e língua tchecas, tantas vezes ameaçadas de desaparecimento. Seu pai, Hermann, embora nascido em Osek, referia-se a seus empregados tchecos como “inimigos pagos”. Já no ano 2000, houve oposição da própria prefeitura de Praga à proposta (no fim das contas, aprovada) de batizar a praça em frente ao local de nascimento do escritor de Franze Kafky Náměstí (Praça Franz Kafka).

Nicholas Murray, biógrafo aliás atento à simbiose Kafka-Praga, bem recorda que, no fim do século XIX, os tchecos viam os alemães como a classe dominante, o que facilita no entendimento de certa resistência a um autor cujos escritos são todos em alemão. A propósito, mesmo a tradução de suas obras para o tcheco demorou décadas para ganhar fôlego. Ainda assim, a leitura de Kafka espelha, à sua moda, o drama do espírito tcheco, movido pela resiliência e pela necessidade de pugnar para simplesmente existir. A Europa Central, compreendida entre a Rússia e Alemanha – e em cujo coração situa-se Praga –, não é um Estado, e sim uma cultura ou um destino, escreve Kundera. Para o autor d’A insustentável leveza do ser, os judeus eram o principal elemento cosmopolita e integrador dessa região, a condensação do espírito da Europa Central. Um espírito talvez kafkiano?

Aliás, nos meus tempos na Universidade de Copenhague, lembro-me de ter caído, certa feita, num seminário cujo objetivo era, precisamente, discutir a acepção do termo kafkiano, que, num estado mais puro, seria diferente daquilo que normalmente se entende por ele.

“Alguém não compreende alemão nem dinamarquês?”, perguntou o conferencista, em inglês. Se meu alemão hoje é limitado, à época era inexistente – o dinamarquês, então…

Ninguém levantou a mão – nem eu.

Distribuíram, então, um texto de Kafka, não me lembro qual, nessas duas línguas.

E qual era, afinal, esse sentido mais puro do kafkiano, advogado pelo palestrante, que também não me recordo quem era? Não sei, não me lembro; e, com efeito, pouco me importa enquanto escrevo este texto. Será que a exposição prosseguiu em inglês mesmo? Teria sido em alemão ou dinamarquês, por isso não tenho qualquer lembrança do conteúdo? Poderia procurar nos meus cadernos as anotações que fiz sobre esse dia, mas elas não têm importância. Gosto mesmo é de recordar a sensação de estar abrigado do frio numa sala de aula clara, asséptica à moda escandinava, sem saber como fui parar ali e para onde fui ao sair de lá, enredado numa realidade que não compreendia bem, mas da qual, ainda assim, não cabia fugir… Para mim, isto é kafkiano.

Desde então, minhas únicas incursões acadêmicas ativas a partir da literatura de Kafka foram relacionadas a um evento chamado, justamente, Kafkiana, na UFRJ. Ao lado da minha então namorada, hoje esposa, realizamos uma conferência abordando Contemplação. No ano seguinte, integrei o comitê científico do congresso. Isto já faz uns bons anos, e por ora é só. E acredito que assim será; tem vezes que um autor é tão seu, que o estudar formalmente parece um equívoco. Prefiro mantê-lo à cabeceira, sempre pronto para ser lido e relido sem o rigor da pesquisa; conversar sobre novas biografias e edições das obras com meu tio, o maior entusiasta de Kafka que conheço; por vezes enfrentar os textos, com extrema dificuldade, no original – deixo a seguir, aliás, dois exemplos dessas arriscadas incursões.

Concluo estas anárquicas observações sem propriamente as concluir. Pensei em dizer um punhado de outras coisas, mas há o indizível – não por autocensura, mas devido à palidez da (minha) capacidade expressiva. O que pode ser mais radical do que afirmar que Kafka é meu? Talvez nada; e, numa amostra de abnegada falta de ciúmes, não me importo, e até incentivo, que você faça dele seu também. Conforme o anunciado, à guisa de uma breve amostra do autor, mui ousadamente deixo a tradução de um aforismo, que fiz para epígrafe da minha coletânea de contos autorais, e a de uma das peças de Contemplação, mero exercício que empreendi tempos atrás, usando como apoio as versões de Modesto Carone, brasileira, e João Barrento, portuguesa.

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Duas traduções,

Um aforismo

Não é necessário que você saia de casa. Fique à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, apenas espere. Nem mesmo espere, esteja absolutamente em silêncio e sozinho. O mundo vai oferecer-se a você para ser desmascarado, ele não pode evitar, em êxtase vai contorcer-se à sua frente.

A excursão às montanhas

“Eu não sei”, clamei eu sem som, “eu já não sei. Se ninguém vem, então não vem mesmo ninguém. Eu não fiz mal algum a ninguém, ninguém me fez mal algum, mas ninguém quer me ajudar. Absolutamente ninguém. Mas não é bem assim. Apenas que ninguém me ajuda – do contrário, absolutamente ninguém seria ótimo. Eu gostaria muito – por que não – de fazer uma excursão na companhia de absolutamente ninguém. Naturalmente às montanhas, para onde mais? Como se acotovelam uns aos outros esses ninguéns, esses muitos braços esticados transversalmente e entrelaçados, esses muitos pés separados por ínfimos passos! Entende-se que todos estejam de fraque. Vamos tão assim assim, o vento atravessa as brechas que nós e nossos membros deixamos abertas. As gargantas tornam-se livres nas montanhas! É um milagre que não cantemos.”