-por André Klojda
Fazia tempo que eu não via Cachos Vermelhos! Seguimos cada um o seu rumo, mas agora enfim nos reencontramos no mesmo antigo local que costumávamos compartilhar. À época, nosso coleguismo não mereceu sequer um até logo ao nos separarmos, mas devo admitir que a rever é uma alegria. Quantas semanas ou meses desde a última vez? Não consigo me lembrar. Tenho percebido o tempo de forma um tanto estranha.
Quando chego, ela me reconhece e me cumprimenta com uma brincadeira. Ainda tem o mesmo olhar instigante, o humor que contagia, o espírito envolvente. Sorrio como resposta.
Um homem também está por perto, e noto que estiveram travando algum diálogo, mas nada que não pudesse ser deixado de lado tranquilamente. A relação dela com o sujeito aparenta ser ainda mais superficial do que aquela cultivada comigo.
Conversamos brevemente, ela puxando os assuntos, todos os mais protocolares possíveis para uma situação como esta: pergunta onde estive, o que tenho feito. Ainda assim, nos mais frívolos dos diálogos, ela permanece cativante. Outro rapaz entra no saguão. Cachos Vermelhos e ele parecem ser mais chegados, mas não tanto – ou é no que escolho acreditar –, e a conversa também não dura. Nós três orbitamos em torno dela, atraídos pela sua gravidade.
O zumbido que ressoa na ausência de palavras faz-se ouvir no recinto. Cachos Vermelhos se ocupa com algo em sua bolsa, mas logo o deixa para lá. Recosto-me na parede, e ela olha para mim. Faço algum gesto impensado e não sustento o olho no olho.
O dia aos poucos escorre para trás das montanhas lá fora, e continuamos a esperar. Cachos Vermelhos está sentada em um degrau da escada a qual ninguém sobe nem desce, enquanto nós outros permanecemos de pé.
O intervalo silencioso prossegue até que alguém abre uma porta e chama dois nomes. É um homem novo, sem charmes ou postura. Ele é direto; o simples estar aqui parece esgotar sua paciência. Os dois rapazes dirigem-se à porta, que o sujeito segura aberta. Olham para mim e para Cachos Vermelhos com uma expressão de sentimos muito, mas tivemos melhor sorte, vão ter que esperar um pouco mais. Ou talvez apenas um olhar de tchau. Não dá para saber – e de que me importa, uma vez que os dois me são indiferentes por completo?
Estamos agora a sós, ela e eu.
Os minutos se sucedem em marcha lenta. Passo a prestar atenção na respiração suave e delicada dela, coordenada com o som dos ponteiros do relógio pendurado alto na parede. Minha companheira puxa fundo o ar para os pulmões, parecendo que tem algo a falar, mas nada diz. Cachos Vermelhos mira o lado de fora, através da porta dupla de vidro que dá para a calçada. O sol se aproxima do horizonte e o céu está alaranjado. Ela inspira profundamente mais uma vez, estufa o peito e se levanta.
“Pode segurar pra mim, por favor?”, diz, não propriamente perguntando, mas já me entregando sua bolsa. “Lindo esse pôr do sol. Preciso tomar um pouco de ar fresco. Já volto, não demoro.”
Permaneço recostado na parede e a assisto dar as costas e atravessar a porta, os cabelos envoltos num balanço gracioso, como se fossem seda. Seguro a bolsa, quente por ter estado no colo dela, contra o meu peito.
A porta pela qual os dois rapazes entraram já há certo tempo continua fechada. Não se ouve sequer um som vindo do lado de dentro – ao menos eu não ouço, focado que estou na não melodia do momento, no som da quietude.
O saguão, agora apenas com a minha presença impedindo-o de estar vazio, é gelado e impessoal, os ponteiros do relógio a insistir com seus incessantes cliques ritmados. As cores exuberantes do fim de dia ameno que faz lá fora contrastam com este interior esquálido.
A despeito do sol, do céu, das montanhas, Cachos Vermelhos é o centro da paisagem à minha frente: seu corpo esguio, bem-disposto, coberto pelo vestido branco de renda, espreguiça-se gostosamente, de costas para mim. Ainda com o olhar fixo à cena que se desenrola, sei que a essência deste momento é inapreensível por foto ou filme, ou mesmo pela percepção de outro que não eu.
O sol tornou-se apenas um quarto de lua atrás da cadeia de montanhas ao fundo, e os últimos raios de luz pintam o céu de escarlate. A brisa começa a soprar mais forte e faz o vestido de Cachos Vermelhos esvoaçar, deixando entrever, por brevíssimo intervalo, as coxas. Mil bandas militares, com seus bumbos, cornetas, saxofones e clarinetes não seriam capazes de me distrair. Ninguém circula pela rua, ela – Ela – reina soberana na Criação.
Cachos Vermelhos tem os cabelos em chamas, ondulando como labaredas, crepitando como uma fogueira; não mais a seda, e sim o mais elemental fogo. A mão esquerda corre pelos cachos, tentando contê-los, e tudo nela se harmoniza como se cada movimento do seu corpo houvesse sido minuciosamente planejado e depois executado à perfeição. Não passam carros nem pedestres, o mundo está em compasso de espera, a existência está em suspenso. Mesmo o crepúsculo e suas maravilhas têm algo de ingênuo se comparados aos encantos de Cachos Vermelhos, que se vira, sorri e retorna lentamente para o saguão, alisando o vestidinho na altura dos quadris e dando fim ao minuto que durou horas. Entrego a bolsa a ela e mal olho em sua direção quando, ato contínuo, meu nome é chamado pelo homem impaciente, que dispensa os outros dois sujeitos.
Já estou longe dali, e o mundo parece girar nos eixos mais perfeitamente do que nunca.