– por André Klojda
I
Nos dias de audiência, quando chegavam ao palácio as mais variadas súplicas, o imperador fazia especial questão de valorizar as características e adereços que o diferenciavam do tempo em que fora simplesmente um parrudo roedor, habitante indesejado a correr pelos cantos na corte da Rainha E*****. Por exemplo: tentava andar apenas nas duas patas traseiras, apesar de não conseguir conter o balançar da cauda rija, tal qual um espanador velho, enquanto se dirigia até o trono. Ao sentar-se, repousava-a garbosamente sobre um banquinho aveludado posto ali pelos empregados, homens e mulheres em trajes impecáveis, conforme os gostos do soberano.
“Entre o primeiro súdito!”, proclamou certa manhã.
Aproximou-se o homem, reverente, face voltada para o chão.
“Não esconda os olhos!”, ordenou o monarca, alisando suas vestes púrpuras. Notou, feliz, que deixava nelas cada vez menos pelos.
O sujeito ergueu a cabeça; tinha olhos cansados, mortos de sono.
“Meu imperador, eu vim dar, e não pedir. Depositei a minha oferta em frente aos portões do palácio – não me deixaram trazê-la para dentro. Está numa caixa simples…”
O governante entusiasmou-se, mexendo, por instinto, os bigodes aparados, deixando entrever os pontiagudos dentes de rato.
“Guardas, deem roupas limpas, de beber e de comer a este homem! E tragam-me o presente!”
Um empregado apressou-se em trazer vestes novas ao maltrapilho, enquanto outros partiram a fim de buscar o regalo anunciado.
Transcorreram, então, minutos nos quais todos encontravam-se felizes – o homem porque havia caído nas graças do imperador, que, por sua vez, envaidecia-se com o gesto de estima. Logo, os funcionários chegaram com a caixa.
“Abram-na! Deixem-me ver meu presente…”
Era uma caixa repleta de queijos. O súdito, pequeno produtor local, vibrou com a revelação, esperando mais favores e elogios de seu senhor assim que ele pusesse os olhos na fartura – era quase toda a sua produção mensal.
O imperador, a princípio pensativo, não conseguiu se conter.
“É uma vergonha! Uma vergonha!”
Olhares aflitos pelo salão.
“Meu imperador…”
“Homem, é um acinte que, após isto, ainda tenha a coragem de se pronunciar! Pensa que sou quem, ou o quê? Um personagem duma fábula porcamente escrita, que é tudo o que vocês sabem imaginar? Maldito seja você, miserável!” A voz do soberano, conforme a exaltação crescia, tornava-se mais e mais indistinguível de um chiar puramente animal. “Toma-me por uma caricatura…”
Aproximaram-se do trono dois homens da corte.
“Saiam! Malditos sejam todos vocês!”
Ao tentar levantar-se do trono, o imperador tombou – não conseguia mais manter-se de pé apenas nas traseiras. Tentou falar, apenas grunhiu, enraivecido; a corte, com os empregados em pânico e as sentinelas atônitas, tornou-se confusa e barulhenta como uma feira livre no domingo. As roupas reais despedaçavam-se conforme os movimentos, até há pouco polidos, convertiam-se em bestiais, como tinham sido em tempos pretéritos.
O produtor, cujo presente desencadeara a balbúrdia, não recuou: estocou o imenso rato furioso com uma lança arrebatada da mão de um guarda inerte. Em respeito à sua majestade, não matou o animal; feriu-o apenas a ponto de conter seu ímpeto. Comoção generalizada, mas à distância: ninguém ousou aproximar-se da inquietante figura do monarca semimorto.
O imperador recuperou-se do ferimento, mas nunca voltou a ser como fora antes do tombo. Nas redondezas, ouviu-se ainda por anos o seu guinchar, especialmente à noite, vindo da cela onde passou os dias que lhe restavam. Já o antigo súdito que desencadeara e dera cabo de toda a celeuma e do reinado desditoso, aclamado na primeira hora como grande liderança da nova ordem nascente, frustrou os revolucionários. “Eu sei é produzir queijo!”, bradou à turba ensandecida, deu as costas e nunca mais foi visto. Os demais apunhalam-se até hoje para decidir quem será o próximo a sentar no trono, a esta altura já carcomido e desprovido de um reino ao qual governar. A fábula tornou-se tragédia e, no fim das contas, provou ser não mais do que uma comédia de quinta categoria.
II
Coloco-me à espreita, mas eles ainda me acompanham. Não consigo despistá-los. Não há luz, há apenas eu e eles, os olhos amarelos.
Calafrios percorrem meu corpo nu: o frio, o vento, o medo. O medo.
O medo e os olhos amarelos; o medo dos olhos amarelos. Gigantes, caçadores, famintos. Felinos.
Eles estão à minha frente, mas logo consigo senti-los também às minhas costas; são apenas dois, mas movimentam-se como se fossem mil.
A falta de opções força-me a escolher a única alternativa: tremendo, caminho até eles. Se escapar é impossível, pois bem, resta-me confrontá-los.
Agora, os olhos fogem de mim. Sou eu quem os persegue. O medo, antes meu, passa a ser deles.
Fogem de mim como o diabo foge da Cruz!
Corro rápido, com as pernas quase a levitar. Sou invencível! A ausência de luz, o frio, o vento, a nudez – nada mais impede meu avançar impetuoso, destemido como alguém que não teme mais a morte por já estar morto. Os olhos amarelos, mal consigo vê-los: antes gigantes, agora diminutos, perdidos em fuga.
Mas é quando o jogo está ganho que se perde, diziam-me quando era criança.
Sorriem os olhos amarelos; param de correr de mim, recobram sua cólera. Apenas fingiam fugir. Gargalhando, a fera arremete ao meu encontro.
O medo, que tinha me deixado, está de volta. Como num jogo de criança, está na minha vez de fugir novamente. Dou as costas, mas já é tarde.
Trituram-me com seus dentes afiados, engolem-me, os olhos amarelos – abissais como nunca, terríveis como um grito desesperado.
Devorado, encontro-me na luz, na luz dos olhos amarelos. Agora, faço parte deles, e nós aguardamos a próxima vítima.