A Arte da Guerra

“…tinha de altura seis côvados e um palmo. Tinha capacete de bronze na cabeça, couraça de malha de bronze que pesava quase sessenta quilos, caneleiras de bronze nas pernas e um dardo de bronze às costas; a haste de sua lança era como a travessa de um tear e seu ferro pesava seis quilos” – 1 Samuel, 17:4-6.


Levantei-me e bradei da quinta arquibancada como um louco desses que a boca lhe querem tapar com uma venda e cerrei vitorioso os punhos a golpear o ar como se fossem as minhas pernas e não as de Gastão envolvendo o braço direito do rapaz na altura do cotovelo e lhe dando um aperto tão justo que um centímetro a mais de torção o teria partido em dois. O competidor estrebuchou disparando chutes para o ar e tentando puxar o braço que ainda julgava lhe pertencer, mas o nosso campeão aumentou a pressão desvairado pelo gosto do poder que exercia sobre o adversário e certamente o teria expulsado do tatame suspenso em uma maca carregada por dois bombeiros consternados se o pobre coitado não houvesse batido três vezes no chão naquele mesmo segundo com a mão e com a vergonha que lhe sobravam. Elevei os braços e uivei o nome de Gastão junto de nossa alcateia, celebrando mais uma vitória no campeonato regional, a que nos levou para a grande final da categoria Absoluto, onde não há restrição de peso, onde os gordos podem cair de cem quilos sobre os magros e amassá-los até os olhos saltarem órbitas afora e o nosso campeão não nos desapontava com os seus pesadíssimos cento e muitos quilos de terror unificados em uma carranca negra de não sei quantos metros de altura. O árbitro aproximou-se receoso do rapaz deitado para averiguar como estava e conversou alguns segundos com ele, talvez o aconselhasse Menino, dê graças a Deus quando sair daqui, você acabou de sobreviver ao ataque de um monstro, se recupere bem e me prometa nunca mais competir um Absoluto novamente. Depois da confirmação da vitória pelo juiz eu desci para levar água ao vencedor e parabenizá-lo. O seu quimono branco, cingido firmemente por uma faixa preta, estava um pouco encardido depois de três disputas invictas, na jaqueta havia alguns distintos pingos de sangue de cada uma delas, sangue que brotava de solavancos e chutes atirados sob o olhar torto da arbitragem para manter os adversários a uma distância segura quando lhe faltassem as oportunidades de imobilização. O Sensei aproximou-se com notícias do próximo concorrente É o Pastor, da Escudeiros, ele acabou de vencer a outra semifinal, você vai lutar com ele em dez minutos. Eu ainda não ouvira falar desse lutador, mas o seu nome dava a entender que o sujeito ia surgir com uma bíblia suada à sovaco para celebrar um culto diante de oitenta cadeiras de plástico mais ou menos ocupadas e não disputar na unha o título mais importante do campeonato. Mais cedo eu vi muitos escudeiros serem trucidados pelos lobos, tantos que, pelo visto, só sobrou um deles para lutar e, o que me pareceu muito estranho, logo na final. Esse rapaz então poderia ser um sujeito forte e habilidoso, poderia ser um lutador bastante técnico, desses que fazem miséria com um calcanhar que lhes sobre na chave. O Gastão eu conheço há não muito tempo, porque tenho somente um ano de tatame, mas sei pelos outros que veio inicialmente do boxe por preferir a experiência do rola de jiu-jitsu à troca de socos dos pugilistas que pareciam ter lhe entortado o nariz, rebaixado o olho direito e deixado roxões permanentes nas bochechas e na testa. De modo que, eu imaginava, ou havia começado a lutar profissionalmente e não obteve sucesso ou já parecia naturalmente um boxeador esbofeteado. Os dentes eram uma linha de cacos de garrafa amarelos. O bigode arrematava um quê de Maguila. No jiu-jitsu ele não era um lutador rápido ou explosivo, nunca o foi, compensava com a pressão que sabia aplicar sobre os adversários quando precisava fazer alguma passagem ou simplesmente administrar o tempo de luta que lhe restasse, espremendo-os como a limões maduros. Quando catava um braço não lhe devolvia mais, carregava-o consigo até o fim, ia de americanas e kimuras ou aplicava uma chave triunfal de estremecer o úmero. O Sensei, um senhor careca meio sisudo de quarenta e poucos anos e quarenta e muitas medalhas de ouro dependuradas na parede do quarto, aceitou-o na academia quando ainda sequer havia uma, treinavam no quintal de sua casa ao lado da Saveiro, sobre um tatame azul recentemente barganhado ao fio das lágrimas. Com o passar dos anos foram chegando mais alunos, mais carros estacionados à frente de casa, e o que era uma peça de improviso teve de ser reparada. Juntou as suas economias de anos para investir em um espaço maior na zona leste, uma dessas salas comerciais com ar condicionado e vista para o rio Parnaíba, e contratou de secretária a primeira Márcia que lhe bateu à porta. Investiu em algumas dúzias de tapetes olímpicos e abriu aulões das oito às oito com o anseio de formar uma nova elite de atletas, apesar de, todos o sabíamos, já haver um preferido entre nós. O Sensei nunca descuidava do Gastão, preparava-lhe treinamentos específicos de força, de resistência, ensinava a toda a classe golpes que se incorporariam naturalmente em seu jogo de luta pessoal, seis semanas antes dos campeonatos iniciava os campings onde frequentemente todos da academia teriam de rolar com ele sequencialmente em um suplício que durava três minutos por desafiante. Quando chegava a minha vez eu me levantava e me benzia mentalmente apertando as pontas da minha faixa branca para demonstrar a faísca de poder que fosse. Encontrava à minha frente um intimidante galegão que me vigiava do alto como de uma atalaia, mas exausto, algo arqueado, leão solitário acossado por feras que não lhe queriam permitir um minuto de descanso entre os combates, espreitando-lhe nas sombras, sedentas da oportunidade de vitória sobre o maior nome da casa. Entre os rolas, o Sensei exigia ao leão que ajeitasse a jaqueta e refizesse o nó da faixa observando-o assim assim, meio reticente, sem saber se o seu campeão conseguiria arrancar o lombo de mais uma presa que lhe caísse entre os dentes. Começou a luta e Gastão se sentou ofegante para aguardar a minha incursão, pensava em me derrubar com uma puxada de lapela para a seguir montar em cima das minhas costas ou talvez optasse pelo movimento que lhe permitisse descansar um pouco mais enquanto retomava o fôlego, puxar guarda e me desafiar a passá-la com o ar de caçador que prepara uma armadilha oculta sob as árvores. Eu parti para cima pelo lado esquerdo cortando a sua coxa com a faca do meu joelho direito, ele contudo conseguiu conter o meu avanço com a outra perna, empurrou-me para trás, sentou-se a postos e bufou alto antes de agarrar minhas duas pernas cerrando-as em um mortal abraço de urso. Com a cabeça fez força sobre as minhas costelas, empurrando-as ao mesmo tempo que se protegia de uma guilhotina, e ergueu-me ao alto para a seguir me projetar do cimo da atalaia abaixo. Estatelei-me no chão, com o meu adversário a pesar mamutes sobre mim e nada mais fiz até a luta acabar, e nada mais fez Gastão após ter gastado o seu último sopro em uma baianada cinematográfica. Tá aí o meu campeão, porra, bradou o Sensei pintando-lhe acima de todos os outros sobre o pódio do campeonato, com uma medalha dourada pensa na altura do coração e algum prêmio em dinheiro nas mãos, qualquer quantia que fosse, visto que nenhuma dessas competições menores recompensa bem o atleta que por ela bebeu o sangue de tantos companheiros em armas sacrificados no altar do tatame. Nós acreditávamos em Gastão porque acreditávamos na bruta força que represa o ataque ainda que bem elaborado, consciente de si, técnico, que diminui a sua margem de ação até vertê-lo em uma busca desesperada pela defesa, pela possibilidade de reação, pela sobrevivência, pela chance de voltar vivo para casa, em frangalhos. Acreditávamos no poder diante do qual toda arte de guerra desembainhada murchava e se tornava obsoleta em dois tempos e a não ser que fossem fuzis, trinta e oitos ou facas não havia uma só arma que fosse mais mortal que o jiu-jitsu na pungência do ataque e ao mesmo tempo não havia outra mais sutil em eficácia mecânica, o que fazia dele o perfeito jugo e de seu praticante um tipo samurai com as orelhas em couve-flor. Eu continuei acreditando na força quando olhei em direção ao campo de batalha que sediaria o último combate e descobri no canto, fones de ouvido Samsung, leves saltinhos de aquecimento, um negrinho cor de jambo, magro, de quimono azul a aguardar o seu rival, sem terno engravatado ou línguas estranhas, sem Bíblia aberta no livro de Reis. O Pastor afinal de pastor não tinha nada além do nome bordado em garrafais douradas que reluziam na parte superior das costas do jaquetão. Gastão bebeu um longo gole de água da garrafa e depois molhou seu rosto com o restante, Professor, como um viadinho magricela e pequeno desses chegou a uma final de Absoluto? O senhor acompanhou alguma partida em que ele lutou, sabe algo do jogo dele? Rapaz, ele foi o campeão da categoria leve, respondeu o Sensei, vi pouca coisa das lutas dele, até porque esse parece ser o primeiro campeonato em que ele compete, por isso não tive como estudar bem o jogo dele, pelo que eu vi dá pra dizer que é um lutador técnico, que não perde tempo com firula, que sabe aguardar o momento certo de aplicar algum golpe, mas tipo assim, a verdade é que, acima disso, ele é muito é cagado de sorte por estar disputando assim uma final, esses juízes de bosta devem estar roubando para o lado da Escudeiros, porque um magricela como ele não deveria ter chance contra os lutadores grandes. E na verdade não tem nenhuma, completou depois de uma pausa, você tá em casa, rapaz, não se esqueça do que treinamos e arranca o couro desse fresco. Gastão assentiu e nada respondeu, confiante, e nós colegas esperamos à toa por uma bravata das boas, como a que ele falou antes da semifinal Professor, se eu cato algum braço desse filho da puta eu aplico um Armlock tão forte que saio daqui mais tarde com o ouro no pescoço e o antebraço dele no bolso. Todas as suas ameaças tinham algo de grotesco, ar de chacina planejada, de modo que, antes de o despacharmos para uma luta eu sempre tinha a impressão de estar tirando a coleira de um sanguinário Pitbull diante de algum estranho que me saltasse o muro a gritar Pega, Xerife! Olhei ao redor, estávamos todos na área de concentração dos atletas, onde restavam somente os que aguardavam subir no pódio para receber a medalha que lhes coubesse e tirar alguma foto de lembrança e talvez receber uma nova faixa de treinadores orgulhosos debutando assim novas cores. Os azuis viravam roxas e os roxas marrons. Ninguém mais aguardava a sua vez de lutar, pois a final do Absoluto de faixa preta seria a última luta de todo o campeonato. As arquibancadas já se encontravam apinhadas de espectadores ansiosos por mais um mata-mata de gladiadores, torcendo secretamente para que o confronto desandasse no sentido da mais empolgante rinha de galos, para que não ficasse naquele xadrez morno de troca de chaves desajustadas, onde os peões distribuídos casa sim casa não pelo tatame impediam o avanço de torres e bispos cinco fileiras à frente. Acaba com a raça dele Gastão, leva esse ouro pra casa, assim falei para o meu colega finalista sem sequer saber se fui ouvido e voltei apressado com o restante da alcateia para o meu lugar na última arquibancada. O Sensei o acompanhou até a arena e ficou do lado de fora, mas próximo, para que pudesse gritar no gogó alguma orientação porventura necessária ou reconhecer algum erro de arbitragem, como costumava nos dizer durante as aulas que era tão comum nesse tipo de competição. O nosso campeão enfim pisou no tatame e foi cumprimentar os juízes, assim como o Pastor o fez, depois se cumprimentaram secamente e permaneceram cada um do seu lado até a luta começar. O juiz deu o sinal e Gastão logo se arqueou e assentou suas manzorras fechadas no chão assumindo uma ameaçadora posição de gorila a andar com os nós dos dedos para intimidar a gazela que julgava estar enfrentando. O Pastor, peso leve em final de categoria Absoluto, não podia não estar fisicamente desgastado pelo ferro e pelo fogo de tantas disputas travadas com pesados e pesadíssimos durante toda a tarde, mas não parecia abatido ou inseguro, ali estava, vigilante, estudando as opções de que dispunha para derrubar um inimigo cujos cacos de dentes distavam facilmente dois Pastores do chão. Deixou-o se aproximar e em um súbito movimento, aproveitando o encurvamento de seu adversário, atirou-se sobre ele, segurando o seu antebraço esquerdo e jogando as duas longas pernas por sobre os ombros, amarrando-as rapidamente ao redor da cabeça. O triângulo voador não saiu de todo bem encaixado batendo de trave no trapézio do gorilão, mas o surpreendeu e trouxe ao chão até deixá-lo de joelhos e com um braço a menos para o contra-ataque. O Pastor ainda tentou se afastar dos joelhos de Gastão e elevar o quadril para encontrar o ajuste perfeito, para sufocá-lo na forca das coxas, mas este não cedeu à sequência, aproximou-se ainda mais, agarrou a canela do escudeiro e começou a desatracar o nó de marinheiro tão habilmente atado. Vendo-os assim, colados, o Pastor me saía de Pastorinho e o Gastão parecia uma árvore sem copa, desgalhada, na qual se atrepava um louco. Era o Quixote embrulhado na empreitada do moinho. O Pastor desarmou o triângulo e posicionou-se rapidamente no chão para erguer uma muralha ao redor de si recorrendo a um dinâmico arsenal de guardas, todas intransponíveis ainda que sitiadas pela maior das catapultas. Sem largar as mangas de Gastão, pés talhando patíbulos nos bíceps, começou da aranha, depois enrolou o braço capturado em uma dolorosa laçada que se ancorou na axila, escalando a seguir a perna para travá-la na guarda X. Os guardeiros da arquibancada gritavam animados e listavam a ordem das defesas para depois praticá-las uma a uma em sequência evocando a garra do valente escudeiro. O objetivo do Pastor, desde o início, era impor o seu jogo, impedir que um adversário daquele tamanho crescesse impávido para cima dele, por isso tentava prendê-lo em diferentes e incessantes e intercambiáveis labirintos de alavancas, onde cada músculo travado era um muro, onde a força do gigante se refratava e decompunha como luz incidindo sobre o prisma, de modo que quando Gastão estava prestes a ultrapassar a linha de defesa vencida caía em um novo pavilhão com uma nova Ariadne por se cortejar e assim tinha de recomeçar e recomeçar sem perder a esperança de envergar a grade de tantas gaiolas e, afinal, moer mãos e pernas do carcereiro que as erigiu. O sangue quente, contudo, ou o suor escorrido sobre os olhos ou o arrepio que lhe saltava espinha acima diante da possibilidade da derrota embaralhavam as ideias de passagem que lhe pudessem ocorrer e apagavam de seu corpo o movimento residual que permanece sob a pele a nível de reflexo depois de tantos drills praticados na expectativa da guerra. Faltando dois minutos para o fim, após ter estourado uma pegada de lapela, foi ele, furioso, quem abriu a Bíblia, apelando para um Ezequiel desesperado e completamente amador. Em vez de tentar prever e se antecipar à próxima guarda atirou-se impaciente, imprudente, sobre o adversário como quisesse apagar uma fogueira com o Maguila. A jaqueta entreaberta com as banhas despencadas para fora, a faixa preta desbotada estirada sobre o tatame como uma serpente sem cabeça. Senhor das armas até então, durante o decorrer de toda a final se viu desprovido delas, mesmo as suas bestas nada puderam contra o pastor, que a todas afugentou ao baque das cajadadas. Sentia-se um inútil completo, domado por um poder fugaz, por uma força que subestimara envaidecido e que tão facilmente o humilhava diante de todos os dojôs de Teresina com um teimoso jiu-jitsu de trincheira. O Sensei segurava-se firmemente no para-corpo que isolava os lutadores dos que assistiam, sem conseguir esconder a sua cara chupada de raiva desde que descobriu a resistência e agilidade do rapazinho que importunava cada vez mais o seu campeão, forçando-o a movimentos tolos, estourando as pegadas que não deveria estourar, contendo a passagem que não deveria conter, o rio que não deveria represar. Quando a máquina de Gastão perdeu as forças o Pastor travou sua perna esquerda com a de la riva, puxando-o a seguir pela gola, pegada cruzada, até fazê-lo apoiar-se no chão com as duas mãos, momento em que os seus quilos pesadíssimos desceram quase todos para os braços deixando as pernas leves, quase plumas. Suspendeu-as facilmente e berimbolou o adversário alcançando suas costas, para a seguir avançar sobre o calcanhar de Aquiles mais preocupante a qualquer lutador, mesmo os brutamontes, o pescoço. Assim, o Pastor recurvou Gastão em arco puxando a toda força a gola estrangulada, o joelho e o fiapo que porventura lhe restasse de resistência nos couros para depois esticar o quadril torto e quase dispará-lo flecha em direção às grades de ferro. A arquibancada saltou para celebrar a espetacular finalização sobre o galo de briga no qual eu e meus companheiros apostamos nossas fichas convictas e continuou a celebrar enquanto via o último escudeiro de pé, rei do absoluto, se levantar, enxugar o suor da testa com a palma da mão trêmula e recompor a faixa batida.


( Conto dedicado ao professor Gilberto Ribeiro e aos colegas de armas da academia GR Jiu-Jitsu)