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CENA 1 – Externa: praia, fora da casa / pôr do sol / neblina e vento / começo do fim / um caminho
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Uma praia sem nome ou localidade, em que o homem e a mulher caminham em direção à casa. A praia é extensa, árvores, palmeiras, venta muito, o céu nublado, garoa um pouco, neblina. A praia é de areia fofa e branca, o mar é agitado. Os dois, homem e mulher, caminham em direção à única casa dali, onde se pode ver, a única casa dali. A restinga, baixa, a casa está na restinga, nem mar nem areia ou estrada. Tudo cinza por causa da neblina, é fim de tarde, não o fim propriamente dito, mas o começo do fim.
O homem conduz a mulher segurando-a pelos ombros, devagar, muito devagar, e então é possível compreender por quê: a mulher tem os olhos vendados, e o homem, os movimentos do homem têm uma expectativa. Não é possível saber a expressão de ambos sem chegar mais perto, e então vê-se a mulher em silêncio e lábios semicerrados, e o homem em silêncio e lábios semicerrados. Sem palavras, só o som assoviado do vento. O homem e a mulher caminham juntos em direção à casa, como se tivessem saído do mar, perpendicularmente, saídos da neblina. Os braços da mulher estão meio esticados para a frente, ela tenta encontrar algo para segurar mas a neblina lhe escapa. O homem segura-lhe os ombros por trás, os dois formam uma fila indiana insignificante, e vai também devagar, impossível saber se ele vai devagar para acalmar ou assustar a mulher.
A mulher pensa e tenta escolher as palavras, escolher as palavras é difícil, venda nos olhos e a neblina.
Mulher – E então?
Homem – Quase.
Mulher – Vamos logo.
Homem – Sem correr. Pra quê correr.
Mulher – Para chegar.
Mulher – Quero tirar essa venda.
Homem – Estamos chegando.
Mulher – Por que demora tanto?
Homem – Porque você está vendada, porque é uma surpresa.
Mulher – …
Homem – Falta pouco mesmo, deixa eu te levar, solta esses ombros.
(a mulher faz força para relaxar os ombros)
De fato, chegavam, e parecia um castelo aumentando, uma fotografia, um filme.
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CENA 2 – Interna/ cabeça da mulher / o seu coração
Não se controla uma surpresa. Se for… desagradável. O que esperar, a chegada. Até lá um fastio comprido, duas mãos em meus ombros, uma voz sussurrada, esse vento úmido, o esforço nas costas. Eu poderia ir embora.
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CENA 3 – Interna/ cabeça do homem / o seu coração
Estar calmo e não demonstrar que é difícil, ela não solta esses ombros, a neblina. Ela não deve ver nada, uma surpresa. Daqui, ausente, espero que não veja por baixo, os próprios pés. Ela não pode ver nem os próprios pés: é isso que quero agora.
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CENA 4 – Externa/ praia, fora da casa / quase noite
Homem – Bem, agora temos uns degraus.
Mulher – Chegamos?
Homens – Temos uns degraus.
Mulher – Depois acaba?
Homem – Começa.
Mulher – Então vamos. Me segura.
Homem – Vai, levanta a perna.
Degrau após degrau o homem segura a mulher em direção à casa já próxima, e degrau após degrau ela suspira cautelosa, a velocidade curta e os braços abertos para os lados, tentando.
Não há corrimão, apenas degraus que lembram os degraus de um cais; um cais de madeira, mas é uma casa.
A mulher tem medo e alívio: é bom chegar, mas não sabe onde, ou como. Na verdade ela não sabe o porquê da chegada: aceitou um convite. Nem o silêncio do caminho, nem o homem ausente, por não ser possível vê-lo, nem o que ficou para trás. Ela queria imaginar o resultado da viagem no escuro.
O homem tampouco conseguia. Sabia, desde que fizera o convite, que precisava fazer. Ele precisava vendar a mulher, ele precisava ir até a casa, ele precisava guiá-la segurando seus ombros. Criar a expectativa, ele precisava assustá-la. Agora haveria a reação. A venda, uma expectativa. O temor do homem não o impediu de segurar, numa mão, a mão da mulher, e nem de segurar com a outra mão a maçaneta da porta velha. A casa era velha, abandonada há muito tempo. Nessa hora, os dois já estavam parados na porta da casa, lado a lado.
Mulher – Chegamos.
Homem – Sim.
Mulher, soltando a mão do homem – Posso tirar?
Homem, segurando de volta – Ainda não. Só mais um pouco só.
A mão do homem que está na maçaneta força a abertura, em vão. Força novamente e uma vez mais, tentando girar para os dois lados. A porta está trancada. Tenta novamente.
Mulher – Você esqueceu a chave?
Homem – Não.
Dizendo isso, e sem soltar a mão da mulher, o homem jogou seu corpo, forçando o ombro na porta, a porta abriu.
Mulher – Você arrombou a porta. Posso tirar?
Homem – Pode, mas calma. Vem aqui.
O homem a empurrou um pouco para trás. Ficou atrás dela. A porta na frente de ambos, escancarada e tudo escuro dentro. De onde estava, o homem desamarrou a venda.
Homem – Abre os olhos devagar.
Enquanto baixa a venda, a mulher cobre os próprios olhos para abri-los devagar, mesmo que a cabeça implorasse o fim daquilo. Horas de viagem, abrir os olhos devagar agora.
Mulher – É uma casa.
Homem – Uma casa.
Mulher – Uma casa velha, muito.
Homem – Uma cabana.
Mulher – Você não vai dizer mais nada?
Homem – Você não gostou?
Mulher – Posso gostar, se você disser algo.
Homem – Vamos ficar aqui.
Mulher – A surpresa. Férias.
Homem – …
Mulher, sorrindo sem-graça e segurando a mão do homem – Vamos entrar, vem.
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CENA 5 – Entrada / cabana / noite
Não levam muita coisa. O homem carrega uma grande mochila com o que precisam: lanterna, bebidas, alguns enlatados, pães. Velas, fósforos, água. Sairiam quando terminassem, a cabana era pequena, não deve durar muito.
A cabana estava abandonada há muito tempo. A porta de entrada abre para uma sala, dois sofás, em L, mesa de centro, mesa de canto com abajur. Sofás sujos debaixo de lençóis, os móveis espalhados pelo assoalho. No teto, lâmpadas penduradas sem funcionar, e na parede tapeçarias de paisagens desbotadas. Veem o que a lanterna ilumina, a sala se abre pela esquerda, onde ficam o quarto, aos fundos, o banheiro, no meio e a cozinha, logo ao lado.
As correntes nas janelas, as folhas secas no chão que caíram entre as telhas sem forro, teias e teias de aranha, insetos mortos. Sons de insetos vivos. Os dois passam grudados atrás da lanterna e o pior silêncio é esse, o pior silêncio assim rodeado de mar, selvagem, vento.
Mulher – Melhor não abrir as janelas agora.
Homem – As velas. Olha, eu trouxe todas essas coisas. É melhor ficarmos juntos.
Mulher – Se já estamos.
Homem – Vamos encontrar um canto para colocar as coisas, montar o colchonete. Está difícil mesmo enxergar. E frio. Vou colocar as velas pela cas. Assim poderemos.
Mulher – Eu vou também.
Homem – Não, fica aqui, descansa. Vamos deixar as coisas. Depois arrumamos.
Mulher – Eu também vou.
Distribuem as velas pela casa, o que aumenta ainda mais o silêncio. Deixam duas velas na sala, onde estavam, uma no banheiro e duas na cozinha. Foi suficiente para que pudessem se olhar. E para que pudessem caminhar em semicírculos pelo espaço da cabana, era noite, escuro demais para sair.
O homem arruma os pertences no quarto. Em cima do colchão frágil ele estende o cobertor, e sobre a cômoda alinha objetos e alimentos.
Melhor deixar aqui no quarto mesmo. Será breve, deixamos tudo perto. Preparar o jantar.
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CENA 7 – Interna / cozinha / enquanto isso
Mulher, falando alto – Não tem mais nada aqui. Olha esses armários. Só poeira. Nem a pia funciona. Nada, nada – um barulho alto, fórmica no chão.
— Ai, devia estar podre já. Você escutou?
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CENA 8 – Interna / quarto / depois
A mulher entra no quarto com a porta de um armário na mão.
Mulher – Olha, caiu. Toda roída olha.
Homem – Deixa lá… Não vamos mexer agora – olha meio sem querer, e sem querer orgulhoso, para o jantar.
Mulher – Tá, vou deixar – foi e voltou. — Ficou bonita a mesa.
Homem – Vem, vamos jantar. Deixamos pra amanhã, certo.
Mulher, esfrega as mãos – Melhor. Não dá pra ver.
(A mulher e o homem jantam como caçadores.)
Homem – Por você tudo bem?
Mulher – Tudo. Vai ser difícil terminar.
Homem – Vai ser difícil começar.
Mulher – Também.
Homem – Amanhã…
Mulher – Essa viagem: longa.
Homem – Se for difícil dormir, posso vendar seus olhos outra vez.
Mulher – Não, eu quero ver. A gente faz um plano para começar. Já vamos saber para onde ir, e como.
Homem – O plano é esperar amanhã. Tinha imaginado isso.
Mulher – É isso.
O homem e a mulher dormem.
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CENA 9 – Interna / quarto / a manhã
A mulher desperta e ainda está cedo. Levanta. As velas esparramadas. A mulher olha a cabana mais uma vez, tenta reconhecer, tudo é diferente no claro. Passa devagar pelos cômodos, vê devagar o que é possível através das luzes das frestas: as frestas das telhas e das janelas fechadas, a fresta da porta da frente, encostada, que a mulher ainda não abriu. Determinada, avança até a porta da frente e contorna para os fundos da casa, onde pensa, e de fato encontra, num recuo de parede, um tanque com baldes cheios de bolor e areia. Só areia, mar, mato. Rodeia a casa. A mulher caminha a distância até a beira d’água, fria, enche dois baldes e caminha de volta para dentro. O homem acordou. Em pé, observa a que se aproxima, sorri.
Homem – Você.
Mulher – Trouxe água.
O homem ajuda a mulher com os baldes.
Os dois se dividem, entre as luzes das frestas. Faz um sol tímido.
Mulher – Esses pontos menores na luz. Está vendo. São satélites.
Homem – Não, são insetos.
Mulher – Os menores, eu disse.
Homem – Poeira, poeira na luz.
O homem vai até as janelas e abre uma a uma. São três, duas na sala, uma no quarto. As pequenas janelas da cozinha e do banheiro estão já esburacadas, ele não abre. Depois o homem sai da casa em busca. A mulher já começa o quarto, com um trapo de pano e água salgada. A água abre caminhos entre a poeira espessa, com força.
O homem volta com a folhagem de uma palmeira colhida. A mulher não entende.
Homem – Pra varrer.
As folhas secas e o assoalho seco do quarto, do banheiro de pedra, da cozinha, da sala. Quando tira as folhas secas do chão, usa a mesma folhagem para tirar as teias de aranhas dos cantos, a alvenaria branca irregular com o telhado sem forro. Enrola uma por uma, que derrubam consigo insetos mais ocos e seus ninhos. Varre em seguida, novamente. Arrasta o sofá para fora, tomar ar. Bate nas almofadas, a poeira.
A mulher em silêncio absoluto, o cômodo que ela cuida.
A mulher vai até o homem e segura algo imóvel enrolado no trapo.
Mulher, abre o trapo – Gosto de cinza, assim.
Homem – Um gato.
Mulher – Estava lá no fundo.
Homem – Que nojo. Joga lá fora.
A mulher vai para fora, e deixa, entra novamente em sua tarefa, muito silenciosa. A mulher passa por todos os armários, por dentro, por fora, os cantos das portas roídos, o plástico opaco
que forra cada prateleira, gavetas. Os puxadores enferrujados. Maçanetas. A mulher com seu trapo cuida de cada espaço. O homem tira da parede a tapeçaria de cavalos selvagens e vai bater lá fora, pegar sol, faz um pouco de sol. Depois a tapeçaria das jangadas, igual, para fora. A força do homem, som rouco, o pó contra a parede.
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CENA 10 – Interna com vento / casa / mais tarde
O homem e a mulher terminam. A casa tem cheiro de sal e paredes brancas, não turvas, sem mofo. Tudo está numa ordem particular, os armários estão roídos e continuam velhos. O sofá tem buracos, a tapeçaria. A ordem de uma casa abandonada.
A mulher vai ao que sobrou do jantar, pega e deixa sobre a mesa de centro enquanto espera o homem. O sol já não está a pino, as partículas de poeira. A mulher senta de pernas cruzadas no sofá, o tecido fino da roupa. A mulher chama o homem, que chega.
Mulher – É estranho a casa toda, depois dos cantos.
Homem – Deu certo.
Mulher – O que podíamos.
Homem – Muito bem.
A mulher dá um gole e passa a garrafa. O homem dá um gole.
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CENA 11 – Externa iminente / casa / tarde da tarde
A mulher e o homem se preparam para deixar a casa. Antes que o sol desça: há uma trilha que não pode estar escura. Os dois olham para dentro e guardam.
Mulher – Bem, podemos ir.
Homem – Vamos.
Mulher – Está tudo aqui. Todas as coisas – a mulher aponta uma grande mochila.
Homem – Devemos levar uma lembrança.
Mulher – Levamos.
Homem – Certo. Vamos deixar uma.
Mulher – Também.
O homem segura um porta-retrato sem retrato. Devolve-o à mesa de canto. Uma flor viva que a mulher deixou na garrafa, na mesa de centro. Busca a mão da mulher, a voz.
Homem – Vamos. Escurece. Bom trabalho. A casa, o sal.
Mulher – E agora?
Homem – Vamos pra casa.
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CENA 12 – Externa/ saindo da casa /o sol desce
Mulher – A porta.
Homem – Encostamos.