A Casa do Vermelho – por David Carvalho

“Os coloristas são poetas épicos”

Charles Baudelaire

“Em nome da Santíssima Trindade, quero pôr-te a colorir”

Cennino Cennini

No escritório comercial de Baltazar Salomão, o grande mercador de tecidos e cortinas de Jerusalém, e um reputado apreciador de boas histórias, sentavam-se três fornecedores concorrentes distribuídos pelos sofás e poltronas. Um não olhava para o outro. Eram tintureiros advindos do Bairro Judaico e em tudo se pareciam, magreza, sujeira, polidez, até os pequenos baús que traziam em mãos, e que tiveram de colocar no chão ou em mesinhas de apoio para se servirem do café oferecido, eram do mesmo tipo e tamanho. Distinguiam-se somente pela cor das roupas e do barrete sobre suas cabeças e foi o de amarelo que se apresentou primeiro. Aproximou-se do anfitrião enquanto abria o baú e, a fim de impressioná-lo, narrou o mito grego-fenício da tinturaria. Descreveu um céu aberto como um vasto descampado, sem nuvem alguma por se ver, e também uma extensa praia ensolarada abaixo, areal de grânulos muito claros, sem sinal algum de pedregulhos para cortar os pés, o que repetiu uma, duas vezes, e talvez insistir nesse detalhe fosse apenas a sua maneira de banir o sangue da composição, de dizer que nada tinha ou queria com as tinturas vermelhas. E depois de descrever o cenário, tingiu-o todo de uma mesma cor, o amarelo pálido, como se estivesse vertendo de um lugar muito alto barris e mais barris de urina sobre o mar revolto, a praia, o próprio céu, e também sobre a figura central, um tipo rude, grosseirão, desgrenhado todo, que caminha faceiro pela praia, indo em direção à silhueta da antiga cidade de Tiro. De longe já consegue ver, para além de vastos campos de trigo, o portão de entrada aberto sob a arcada e também o movimento de carroceiros, agricultores, garimpeiros, moedeiros, ourives, e gente de toda laia, andando atrapalhados uns perto dos outros como galinhas. Segue-o um cão qualquer, ocioso, faminto, um ser escanifrado a saltar apressado pela areia no receio de ficar para trás do seu mais recente mestre, visto que o Semideus indo adiante tem pernas longas e em duas dúzias de pisadas é capaz de varar qualquer campo de um horizonte ao outro, do Sol à Lua.

As ondas agitadas e de espuma borbulhante rebentam sobre a costa e abandonam uma porção de folhas de algas, medusas, estrelas e também peculiares caramujos e suas conchas multiformes, e todos são diferentes amarelos, amarelo canário, mostarda, abacaxi, limão. O homem, de mãos grandes como pedras e troncos bojudos no lugar dos braços, nota o lento depositar daquelas coisas e formas na praia e medita por um raio de minuto, porque mais não conseguiria, e um minuto neste intento é já um colosso, na inapelável diversidade de tudo que existe no mundo, não havendo uma só folha obovada que se assemelhe verdadeiramente a uma segunda folha obovada, e que todas as coisas existem ao mesmo tempo, coloridas de acordo com os subtons mais convenientes em uma mesma e única superfície. Eis tudo o que há, desenhos entre desenhos e o Amarelo a preenchê-los. Afinal dá de ombros e continua o seu caminho, sete passadas largas a mais e já estaria pisando em um paralelepípedo tírio se não fosse pela sua inesperada curiosidade em saber o que chama a atenção de seu seguidor, o cão de costelas à mostra, que acaba de avançar arfando rumo ao mar. O Semideus é o senhor das cidades e dos homens e das batalhas, não o nega a sua indumentária iconográfica, uma clava enorme que carrega com uma mão só, ora apoiando-a no ombro esquerdo e trapézio, ora tentando equilibrá-la sobre o indicador, e uma pele de leão como manto, amarelada pelo mais nobre açafrão das cubas da oficina do tintureiro, cuja mandíbula superior e dentes lhe cobrem a testa, interessa-se, portanto, pelos assuntos humanos, quer saber quem inventou o fogo grego, que faz dos barcos bárbaros fogueiras das mais macabras em pleno mar, Falem-lhe de torneios de força, Falem-lhe dos campeões invictos, Digam pouco sobre mulheres, sobre crianças, sobre loucos e doentes, e nada falem de animais, essas criaturas incréus e imundas. É com pausa dramática, portanto, pensada para gerar surpresa no ilustre ouvinte de Jerusalém, a se servir das uvas emaranhadas em uma travessa à sua frente, que foi narrada a seguinte passagem, Vira-se e caminha em direção ao mar, em direção ao cão o Hércules-tírio.

Um par de grossas coxas virginais, sentadas e confiantes, lhe aguardam em uma das camas de Tiro, por trás de duas ou três paredes de alguma casa, em algum lugar além das arcadas na entrada e do galinheiro de gente barulhenta tentando ganhar a vida pelas ruas. Os Tírios não são preocupados como os Jebuseus da Jerusalém pré-davídica, ainda não construíram muralhas para proteger as suas fortunas, apesar de já haver muito ouro girando pela cidade incrustado em blocos de pedra, mas também brilhando em pepitas e moedas de trincar os dentes. Mas ainda que Tiro fosse uma cidadela sem poternas e houvesse grossas muralhas construídas ao redor dela, nada poderia impedir o Semideus de entrar e sequestrar a sua tão passiva namorada, pois bastaria um giro de clava e toda a pedraria, aqueles retângulos amarelos tão brilhantes, viria abaixo.

É se lembrando da mulher e do rapto planejado que se aproxima do cão, enfim receoso de estar levando mais tempo do que deveria para chegar à cidade, e até mesmo arrependido de voltar seus olhos com interesse para uma cena tão reles quanto aquela, o animal feroz devorando com muita baba, entre grunhidos e solavancos, uma das pobres criaturas depositadas pelas águas inconstantes na areia. Observa-o romper com os próprios dentes afiados, e há uma terrível beleza de vida e morte naquilo tudo, uma grande concha de caramujo, a mais comprida dali, parecida com um chifre de azeite, um corno partido de touro, e beber o líquido aspergido e comer avidamente tudo que estiver entalado nas entranhas do gastrópode. E só então os outros dois tintureiros, a concorrência, que também ouviam a história sentados ao lado, entenderam o motivo de o seu companheiro de ofício trazer tantos amarelos apagados para a história. Seu objetivo era o de destacar com mais ênfase, desde o momento em que surgisse molhado e quentinho no focinho do cão, e depois na mão do Semideus a tocar no rosto do bicho, um óleo dourado muito brilhante em sua forma mais natural, extraído do muco visceral do caramujo marinho, de modo que no meio de toda aquela massa de sombras orquestradas refulgisse enfim uma luz mais amarela do que todos os amarelos.

Esta cor da mitologia era na verdade o Púrpura, ou deveria ser o Púrpura, mas o mestre de barrete amarelo não podia enunciá-lo, pois, como todos o sabiam, o tintureiro, por lei de seu próprio Estamento, só podia se referir a cores que pudesse usar para tingir, do contrário, seria visto como um artesão sem criatividade e apelativo, incapaz de manejar habilmente o que lhe houvesse sido confiado, ainda que fosse pouco, uma cor somente, um pigmento. Um tintureiro do Verde, por exemplo, que não conseguisse tingir toda a vida de uma floresta partindo somente de alguns corantes como a casca de amieiro ou a limalha de cobre macerada em vinagre não poderia ser considerado um bom artesão, e se acabasse recorrendo a outras cores complementares fora de sua alçada seria expulso da profissão e da cidade, teria os bens apreendidos, cairia em desgraça, deixando o Verde órfão, sem casa, até que lhe fosse incumbida a guarda de um novo mestre. Baltazar Salomão, proprietário da melhor alfaiataria de Jerusalém, passada de pai para filho há gerações, localizada no Bazar do Bairro Árabe, por trás dos rabinos em vagalhões e das bancas dos mercadores de romã, gengibre, canela, tabaco, jornais estrangeiros, ímãs de geladeira e dos indianos traficantes de haxixe, enfim, deu-se por satisfeito. Viu desinteressadamente amostras de todos os tecidos tingidos pelo mestre e ouviu a sua versão da história, ainda que não tenha havido tecido o suficiente para conduzi-lo até o final. Decepcionado por não ter encontrado nada que sequer remetesse ao glorioso Púrpura, recentemente encomendado a um alto preço por um de seus clientes mais antigos e importantes, mandou-o recolher de volta ao baú todas as faixas de seda, linho, algodão e cambraia, e voltou-se para o homem de barrete azul, sentado na poltrona ao lado, segurando um pires branquinho de porcelana com as mãos ainda sujas de óleo de pastel-dos-tintureiros e índigo e também de resquícios de gordura do Kebab que almoçara mais cedo em um quiosque turco. O tintureiro servia-se ainda de sua primeira xícara de café, mas apressou-se para sorver um último gole bem barulhento e depois, com os dentes manchados, abriu o baú para expor os seus tingimentos e narrou a sua própria versão dos eventos do mito.

A caminhada na praia, a distração vulgar, a descoberta de um óleo mágico, colorido, desta vez, de um azul profundo como um poço, mas que logo desbotou para um tom clarinho. Quando falou do mar, do céu, e até do Semideus e da besta, falou em azuis sóbrios. Até a cidade antiga de Tiro, se amarelada pela luz do Sol segundo o mestre de barrete amarelo, inspirado na Cidade Velha de Jerusalém, a mesma que via para além da janela do gabinete do comerciante, em seus prédios de blocos amanteigados, e, portanto, comestíveis, acabou nessa nova versão toda tingida do mesmo azul suave que os judeus imigrantes usavam para pintar os edifícios na cidade galileia de Safed e em Xexuão, a joia do Marrocos. Os seus limites espraiavam-se pelos rochedos de uma ilha separada da costa por uma espada de água e os seus habitantes compunham desde já uma singela e humilde colônia de pescadores. Não muito longe desses casebres, na praia, à beira do mar, um Hércules-tírio algo mais sensível toca, em alguns segundos de comiseração pela fome acumulada de dias do animal, em sua cabeça e em seu focinho manchado, quase acarinhando-os, é a maneira que encontra de se despedir. Mas não deixa o cão serelepe render-se ao afago de suas manoplas ou esfregar-se carinhoso na clava, não lhe concede tempo para ternuras. Põe-se de pé novamente, retoma o caminho da entrada da cidade, salta o estreito e no lugar das arcadas e das vias de passagem para carroças abastecidas de ouro bruto e dos prodígios do trigo não há nada senão o vão do caminho a ser sugerido pela terra pisada e pelo aparte das pedras. Só olha para trás quando a praia e o mar estão substituídos por ruas e banquinhas com caranguejos azuis em baldes, tentáculos de polvo, peixes-espadas e tubarões dependurados, todos à venda, a se debater de frente para os compradores vindos das vilas do interior, de Baalbeque, e até de grandes cidades costeiras como Biblos e Beritos. E no lugar das estrelas e das algas, homens e mulheres, ranzinzas, sorridentes, falantes, em uma profusão de ébanos muito azulados para os tons de pele humana. Após andar por quase todas as ruelas encontra a sua virgem à espera, uma negrinha de coxas cruzadas, sentada aborrecida sobre uma canoa virada a servir de banco. Nada lhe diz ou ouve. Joga-a sobre o ombro esquerdo, o direito está reservado à clava, e encena o teatrinho do rapto, no qual finge estar roubando uma dama absolutamente insubstituível para os cidadãos, uma princesa Europa, uma princesa Helena, e os Tírios simulam constrangimento, fingem-se fundibulários e furiosos diante do saque terrível e de longe, com mãos inermes, gritam-lhe injúrias no calão mais sujo e vertem escandalosamente ao chão caldeirões de ferro ainda cheios até a tampa de ensopados de peixe.

Uma vez longe da vila, vencida a praia, caminhando em direção à mancha azulada e indefinida que é o Sul, a jovem de belíssimas coxas, como continuavam a insistir todos os homens por cuja boca desfilavam essas pernas mitológicas, pede ao Semideus que a coloque no chão com cuidado, pois suas coxas, as duas, o colo e também os braços estão dormentes. Quando retoma as forças e vai tocar no braço de seu raptor, ouve o latido de um cão magricela, que desde o início os havia seguido à distância, e atenta para o seu focinho todo embebido naquela seiva inebriante, descoberta em um banquete de tripas e espuma, caindo imediatamente sob o feitiço da nova cor. Faz então um pedido para Hércules-tírio, sabendo que será recebido como uma grave exigência, quer providenciado o mais rápido possível um vestido naquela mesma tonalidade, do contrário nada teriam um com o outro. O primeiro impulso do Semideus após ouvi-la não pode ser outro senão o de esganar o cão e de esmagar a sua cabeça com a mão livre, mas receoso de espantar a mulher com tamanha grosseria, ou pior, de diluir o sangue do animal naquela tintura do focinho e gerar uma cor ainda mais chamativa e especial, contém sua inclinação para a matança e, depois de calmo, convida a virgem raptada a voltarem para Tiro, a mesma Tiro ilhada de onde haviam acabado de fugir, onde promete fabricar um vestido tingido com a cor mais bonita dos Mediterrâneos.

E que cor tão maravilhosa é essa, perguntou o cético Baltazar Salomão, o antigo fornecedor exclusivo de cavaletes, telas, pincéis e godês das casas reais do Catar e da Jordânia, que julgava-se um veterano dos pigmentos e pensava conhecer todas as paletas possíveis, e o mestre tintureiro, Não é uma simples cor, mas todas elas contidas em sequência na mesma, ou ao menos no mesmo tecido, podemos chamá-la de Cordão azul, porque reflete em cadeia todos os tons do céu e do mar, Durante o dia é suave e quase translúcida e às vezes turquesa como águas rasas, Durante a noite é pesada como um manto e tão opaca quanto, é o Índigo, e às vezes cai para o Azul da Prússia, escuro como o é o fundo do mar, Durante a madrugada colore o sono dos fiéis e entretém os insones com os seus violáceos em feixes imprevisíveis. O tintureiro ainda, a fim de apelar para alguma religiosidade possível no coração do comerciante, por baixo de quanta ganância e gulosice, concluiu assim, Esta cor foi indicada por IHWH aos antigos homens hebraicos para colorir as vestes dos sacerdotes e as tapeçarias do Tabernáculo, é uma cor bíblica, sagrada. Depois, sem ouvir retorno algum, nada além do som molhado da mastigação de cascas e sementes, calou-se e voltou a beber do café, então frio e ainda mais amargo.

Baltazar Salomão, o ímpio, cujos vestidos de seda foram vendidos em troca de pequenas fortunas para atrizes de filmes americanos e europeus, deixou enfim a travessa de lado e começou a mexer e remexer nos azuis do tintureiro, mas não se agradou do que viu, nada ali tinha quilate para se passar pelo Púrpura imperial. Mesmo o majestoso Cordão Azul, que parecia fabricado pelos deuses tintureiros de todos os panteões, tingido naquele momento por um cerúleo muito suave, cor do céu da manhã, durou pouco em suas mãos. O comerciante expulsou-os de sua mesa, despachou-os todos de volta para o baú correspondente e virou-se enfim para a sua última esperança, o terceiro fornecedor, o tintureiro de barrete vermelho, que já descia pelo segundo café e dividia-o com bolachas. O mestre notou a deixa. Puxou prontamente de seu baú uma longa manta escarlate de linho e estendeu-a sobre os próprios ombros, cobrindo o peitoral e os braços, até cair-lhe como uma toga. O seu drapeado modulava o vermelho conforme a movimentação do corpo, de modo que o tecido parecia respirar. O mestre tintureiro notou o interesse do mercador pelo efeito, e também a inveja de seus concorrentes, mordidos por cima dos alvos pires de porcelana chinesa, e retomou com gosto o mito, mas não do início. Partiu de onde o haviam abandonado, ou melhor, de um ponto cronológico um pouco posterior, pintou o Semideus retornando ao cenário com uma matilha de meia dúzia de cães farejadores enlaçada em cada mão para depois soltá-las pela praia branca deserta, esperando que encontrassem e trouxessem a ele, de miolos ainda frescos e cascas entre roídas e semidevoradas, os mesmos caramujos cujo sangue e muco visceral eram capazes de compor a nova tintura.

O amanhecer surge avermelhado todos os dias nessa terceira versão e todos os dias são para a caça. Raposas, javalis, veados, todos bichos de pelagem fulva escura e arruivada, os Tírios caçadores perseguem e capturam-nos com a ajuda dos cães para depois comer a carne e pendurar os couros nas paredes de suas salas, por isso esses leais companheiros estão acostumados a apontar para carcaças, a carregar na boca bichos se debatendo entre a vida e a morte, mas não a recolher animais estranhos e inermes espirrados para fora do mar. Hércules-tírio, portanto, não se surpreende inicialmente quando recebe em suas mãos pedras, lascas de madeira, arcos partidos, cachimbos, cabos de facão, estrelas e pequenos peixes, além de somente algumas das conchas certas. Mais de uma vez tem de corrigir os cães pacientemente, adestrá-los para a presa correta, e ao fim da manhã se vê rodeado de pilhas e mais pilhas de sua matéria-prima, o caramujo comprido. Leva-os em uma carroça à cidade antiga de Tiro, cujas casas são pintadas de branco, para arrefecer a incidência do Sol e do calor, e rodeadas por cercas de marfim, extraído das presas de terríveis elefantes. Descarrega em um pavilhão cedido temporariamente a ele, onde também algumas mesas, baldes, cubas e instrumentos de ofícios diversos. O Semideus, cantarolando uma desconhecida canção em fenício que narrava a sua vida gloriosa, acomoda-se em uma cadeira e inicia o trabalho tal qual vinha pensando em como fazer durante o caminho de volta à cidade. Com um martelo de ferreiro rompe a superfície da concha, com uma faca coreadeira de curtidor puxa para fora as glândulas do animal, coloca-as em um jarro de água para que fermentem e depois deixa a solução em um depósito escuro por uma semana, para proteger a cor de destino da luz. Ao fim do processo, é o caso de mergulhar o tecido inteiramente na mistura e depois retirá-lo para verificar se alcançou o vermelho desejado. Por muitas semanas ele tem de repetir a mesma rotina de trabalho durante as manhãs, desde a caçada pela praia com os cães até o ofício manual sentado em seu pavilhão. Chega mesmo a aprimorar os procedimentos e também a fabricar instrumentos adequados para esta atividade, o que faz com muito engenho, e depois demonstra-os em eventos públicos aos Tírios, logo depois das competições de falcoaria e das sangrias dos galos de briga em arenas improvisadas.

O tintureiro de barrete vermelho narrava a história e encenava simultaneamente os papéis de seus protagonistas. Fazia as vezes de Hércules-tírio sob o pavilhão, encurvado e sisudo, depois engatinhava para simular os cães de caça correndo pela praia, latindo na direção de seus dois concorrentes, e às vezes afetava a voz se fosse para trazer a mulher ao primeiro plano, quando ela vinha assistir de longe aos progressos de seu raptor, e depois enviava-a de volta à casa de seus pais para imitá-la correndo, e Baltazar Salomão, que vendia lonas de tenda tão caras quanto camelos de corrida a Xeiques árabes, sem conseguir mais se conter, caía desesperadamente na gargalhada cuspindo sobre os engaços na travessa e sobre os documentos dispostos em sua mesa, apólices de seguro, contratos de compra e venda, a polpa mastigada das uvas. Os tintureiros rivais, contudo, desconfiados, não deixaram de implicar com nada por um segundo. Perguntavam qual era a cor das botas dos caçadores, das cortinas das casas, e dos telhados, das sombras dos poleiros nos quintais, das conchas fedorentas empilhadas ao lado da mesa de trabalho, e depararam-se com vermelhões crus, carmins, marsalas, salmões, bordôs e borgonhas, descobriram inclinações, quases, bateram em arroxeados, mas nada de Roxos puros, e nem Lavandas, Ameixas ou Violetas. E o mestre narrador, impaciente com as intromissões, lhes voltou uma indagação, Meus caros, me digam, por que vocês buscam com tanto ardor o Púrpura entre os meus Vermelhos?, e os tintureiros tremeram, tanto por terem sido confrontados abertamente quanto por terem ouvido o nome inesperado da cor, Saibam que se não o encontraram foi só porque eu não o quis ou precisei utilizar, O Púrpura não é muito mais do que um rebento da família do Vermelho, e nascido muito depois do primogênito, está contido portanto em meus vastos domínios, No fundo vocês julgam que o Vermelho é só mais um afresco pintado à base de argamassa de cal e areia na parede do Casarão, quando ele é na verdade toda a vida no Casarão, a taça dos comensais na sala do banquete, os lábios de batom dos amantes em varandas suspensas, o ferimento precoce no peito do duelista no jardim, a pelugem suada e ofegante dos cavalos no estábulo, Vocês pensam que se trata apenas de uma cor e não, na verdade é um coração que bate, É Vermelho, ou melhor, descende do Vermelho tudo aquilo que for rico, vigoroso, belo, pujante, tudo pelo qual se vale a pena viver para ver, o fogo e o sangue são filhos do Vermelho, e mesmo alguns Azuis e alguns Amarelos, mas somente os gaios, os melhores, e nenhum desses eu vi hoje nas coleções lamentáveis que vocês trouxeram.

Fincou o estandarte da Casa do Vermelho no meio do gabinete e notou os tintureiros de barretes amarelo e azul embasbacados e de certo modo até capitulados por ela, sem saber como reagir, porque também o ímpeto era vermelho, assim como a coragem e a fortaleza. Viu-os murcharem até ficar inermes e sumir atrás das xícaras importadas e de sua brancura, como caramujos da praia que regressassem ao abrigo das conchas, e não se preocupou mais com eles. Então notou Baltazar Salomão, o colecionador de velhas tesouras de alfaiataria, tomar fôlego para chamar a atenção e previu-o desdenhar de seus tecidos e da manta viva sobre os seus ombros, como não hesitara em fazer com os outros mestres, como faz qualquer comerciante de tecidos para comprar mais barato uma tintura, por isso antecipou-se para tomar a palavra e ao menos encerrar o mito. Permitiu que a virgem finalmente trajasse o novo vestido e partisse satisfeita para longe ao lado do Semideus, que assobiava uma cançoneta composta a fim de registrar o seu mais novo feito, a tinturaria de um tom desconhecido de vermelho, e deixou que a cidade antiga de Tiro, habitada por cães e caçadores, herdasse todo o saber, as ferramentas e a glória do mais novo ofício, além do direito de poder vender as suas obras pelo preço mais justo que lhes parecesse, e por isso cobraram por cada tecido tingido três vezes o seu peso em ouro.

Ilustração original e exclusiva, por David Prado