Do primeiro leão a viver e morrer na Suécia e do seu guardião.
I
O ansioso Ebraim teve de cruzar quatro pátios do palácio para encontrar o Bei de Argel. Em sua caminhada viu ciprestes se alongarem até o céu, oliveiras de folhas quase brancas, além de limoeiros e figueiras e tamareiras. Agradou-se por um momento do murmúrio da água operária correndo pelas acéquias em direção aos jardins mais baixos, mas não quis desviar a sua atenção para os canais, portanto não os seguiu com o olhar até as fontes geométricas de onde provinham e não se maravilhou com os pavões que nelas armavam a sua bulha.
Adentrou o último pátio após ter atravessado dezenas de arcos túmidos monumentais, pelos quais poderiam passar elefantes montados. Sentou-se sob a copa de uma laranjeira indicada pelos guardas e aguardou enfadado pelo seu senhor. Estava com sorte, não teve de esperar muito.
Os dois despacharam ali mesmo enquanto sentiam o aroma imarcescível da folha de laranja e se surpreendiam com o voejar dos pavões de um jardim ao outro. O escravo, magrinho e impaciente, pisando com os pés descalços e sujos na superfície de azulejos multicoloridos dos passeios, ao seu lado o Bei de Argel, um veterano das pilhagens pelo mar mediterrâneo, grande como um bisão, completamente alheio à teologia por trás das figuras representadas nessas cerâmicas.
Tratava-se de uma incumbência, presentear o Bei de um país distante do Norte com uma pequena porção do que no Sul já havia de sobra, um bestiário de feras: três hienas, três gatos bravos e um leão. Ebraim deveria não só levá-los em segurança até o novo destino, mas também permanecer por lá como guardião dessas criaturas, cuidar delas enquanto vivessem.
Foi observando a cauda de um gato que patrulhava as roseiras, rija e apontada ao alto, como uma espada, que Ebraim aceitou, sem querer aceitar, o que o governante demandava dele. Retirou-se enfim e rangeu os dentes por três semanas tendo sonhos terríveis a respeito do seu futuro. Depois de resignar-se com sua sina, iniciou os preparativos oficiais da viagem. Ao cabo de alguns meses zarpou com as sete feras para as águas da Escandinávia.
II
Fora de seu mundo, imersas em uma neblina de tristeza irreparável, não demorou muito para que os bichos começassem a ruir. Os primeiros a se rebelarem contra a nova vida, adoecendo e perdendo as carnes continuamente, foram os pequenos gatos, bravios até o último sopro. Morreram um após o outro em um mesmo silêncio, seguidos depois pelas hienas. O leão foi o único a não protestar. Aceitou, persistiu, deu sinal de que resistiria por muitos anos, tanto quanto se podia esperar de uma besta.
Ebraim, não mais um mero serviçal do Palácio, atuava então, de algum modo, como seu representante. Ao contrário dos bichos que faleciam, alheios a toda sorte de mudança, acabou por gostar do novo estado de coisas. Conseguiu adaptar-se e, a seu modo, prosperar, por isso não guardava saudades de sua vida anterior e, para não ser obrigado a regressar a ela, tratava de executar com o maior esmero o seu trabalho de cuidador e guardião. Preocupava-se com o leão como se tratasse de um filho, tomando todo o tempo necessário para entretê-lo e alimentá-lo, segredando-lhe planos e causos, escovando a sua juba até que dormisse.
Com o tempo, adotou um novo repertório de hábitos e gostos. Usava chapéus e roupas muito largas, gargalhava efusivamente, maldizia os russos com frequência, mesmo sem nunca tê-los visto. Nas horas vagas bebia qualquer vinho europeu que lhe caísse à mão, frequentava todo tipo de grupo que lhe abrisse as portas e, antes de se deitar, estudava por duas horas os caminhos da língua sueca. Andava a passos vagarosos pela cidade de Gripsholm como se tivesse não engordado, mas enriquecido. Já não buscava notícias do Sul, aquele antro de velhos piratas, e não ouvia mais o nome do Bei, que costumava difamar abertamente aos seus comensais de chistes.
Levou essa vidinha por anos, até o dia em que, cumprindo a rotina da manhã, entrou na jaula onde o leão vivia e encontrou-o estirado no chão, imóvel, o rosto malhado de dor, com um cancro enterrado nas vísceras.
III
Comoveram-se os aristocratas com o súbito falecimento da sétima besta. Aquela curiosa criatura luminosa e dourada de rosto alongado era a primeira e única existente em toda a Escandinávia. Costumavam levá-la ao Castelo nas noites de festa, deixá-la exposta dentro de sua jaula no meio de algum salão enquanto bebiam e dançavam ao seu redor na esperança de ouvir algum rugido de protesto. Decididos a não perderem aquela extravagância, mandaram juntar os seus restos e enviaram à taxidermia exigindo uma réplica perfeita do animal.
O taxidermista incumbido da execução recebeu um amontoado de pele e ossos, mas não sabia o que fazer com aquilo, pois nunca vira um felino daquele tamanho. Procurou um modelo que lhe servisse de guia a partir das descrições desencontradas de quem conheceu a criatura, dos brasões de armas onde esses bichos surgiam coroados por asas, das letras capitulares tripuladas por todo gênero de criatura mágica e dos desenhos de gatos humanóides presentes nas iluminuras medievais. Com muita dificuldade, conseguiu fisgar detalhes diferentes de cada uma dessas fontes para costurá-las em um modelo final.
O processo todo demorou muitos meses e o resultado foi uma aberração completa. Os aristocratas, que, é evidente, já não recordavam mais as feições da besta, foram chamados ao fim de tudo para avaliar a obra e rapidamente aprovaram-na, apesar de o rosto do animal, que havia saído repuxado como uma máscara, parecer cobrir um segundo rosto localizado abaixo de toda aquela pelagem morta, à espera de ser revelado, a medida do focinho lembrar a de um cão e os olhos não estarem elípticos e misteriosos, mas banalmente circulares e descoloridos, como se fossem humanos.
Esses escandinavos estavam cegos. Tocavam nos dentes retangulares e não percebiam que sua inspiração verdadeira estava na boca dos cavalos, tocavam na língua esticada para fora e não viam que ela dava um ar de pilhéria à criatura, como se esta não fosse feita para outra coisa senão rir abertamente de todos. Se o taxidermista, naquele momento corado dos elogios e aplausos, houvesse antes lembrado da Quimera das mitologias e substituído a cauda do leão pelo corpo de uma serpente, talvez nem tivessem notado.
IV
Aproximava-se o dia do retorno para Argel, e Ebraim, que a essa altura só atendia pelo nome de Erik, já não conseguia mais dormir, pois fechava os olhos e via sombras do seu passado. Sonhava com os quatro pátios em chamas, árvores com cabeças no lugar dos frutos, acéquias por onde corria fogo no lugar da água sonora. O Palácio desmoronava, o Bei de Argel saltava para o abismo do alto de um minarete de tijolos.
Temia pelo seu futuro. Abandonar a vida fácil e previsível que descobrira nesse canto do mundo pelo circuito de trabalhos servis que certamente lhe estariam reservados em seu país – ou pior, voltar e encontrar tudo revirado, desmanchado, os parentes todos falecidos ou doentes, as cidades varridas pelos turcos ou pelos espanhóis – o fazia tremer. O inseguro Ebraim receava não saber mais o que era o Sul.
Decidido a implorar por abrigo aos aristocratas, ensaiou o seu discurso até chegar a um nível de elocução que julgou impecável; marcou uma audiência no Palácio de Gripsholm com o Bei e sua corte e chegou lá com antecedência. Aguardou algo impaciente pelo horário marcado. Quando, enfim, após horas de atraso, adentrou o salão de conferências, dissimulando o cansaço com um sorriso torto e com os gestos amenos, encontrou à direita da porta, altivo, soberbo, empalhado, posando como um grande cavalo de pedra, o leão daquele bestiário de anos atrás, seu protegido, ou o fantasma dele.
V
Desde a deferência inicial de Ebraim até o fim do seu apelo enfeitado, este mesmo leão dedicou-se a uma insistente regra de galhofa. Zombou, cheio de escárnio e despeito, do sueco sofrível proferido pelo seu antigo guardião, que depois de anos continuava falando como um neófito e sequer o percebia. Sem mover um só músculo do rosto ou produzir um som que fosse gargalhou ao ouvir o pedido principal e os argumentos apresentados; ao ver as mãos desencontradas entre os bolsos e o ar, como barcos perdidos à tormenta, as pernas que tremiam, a testa franzida em gavetas.
À distância, do canto do salão de conferências, de olhos abertos e sem piscar, não perdeu um lance sequer do naufrágio daquele homem gordo e estúpido que se humilhava a troco de nada diante de tantas pessoas. Ao ouvir a resposta final do Bei, gostou, porque achou-a curta e sentenciosa, como se, em sua firme negativa, estivesse condenando o súdito à pena capital. Cheio de si, de peito estufado, queria esguichar urina pelo chão, queria lambuzar-se para comemorar, e sua língua já era mesmo uma flâmula saliente projetada para fora, mas contentou-se em saudar a decisão prudente com a simulação de um rugido que somente o místico Swedenborg poderia ter escutado. Era tudo o que podia; abrir a boca mais do que já estava aberta, só hipoteticamente.
Encarou ainda uma vez o seu antigo guardião antes de lhe dar as costas para sempre. Viu que o homem represava as lágrimas e contorcia o rosto envergonhado na esperança de entender o motivo de tantos disparos contra um velho amigo, mas o leão de Gripsholm manteve inerte a matéria retorcida, e não retrocedeu da pilhéria um centímetro.