Primeira biblioteca
Houve em um passado otomano uma biblioteca de teologia com dois mil volumes voltados para um único assunto, os noventa e nove nomes de Alá. Repousava nos domínios de um mulá muito poderoso, senhor de posses e saberes, que durante as noites se refugiava entre os nomes e os declamava com diferentes entonações e em sequências particulares, ensaiando melodias ainda desconhecidas, emulando profundidade de sentimento. Em sua ganância e heresia, este teólogo queria ascender para além das estantes e das paredes e da casa, para além da cidade, dos minaretes, dos olhos brancos do muezim e das estrelas, pois cobiçava ver o rosto de Deus. Sua cidade, um burgo fortificado no coração da Casa do capítulo, não ficava muito longe da costa e foi atacada e invadida pelos piratas de um paxá do norte, mais poderoso, mais sábio que dez ulemás. As casas e edifícios foram pilhados, destruídos. O mulá e as potestades acabaram em grande parte degolados e partidos, ou no mínimo arruinados. A biblioteca, roubaram-na inteira. Os livros foram confinados em arcas de couro e eram tantos que acabaram ocupando dois navios da frota.
Somente alguns dias depois, quando os piratas estavam bem longe de Al-Quds, a cidade saqueada, o seu capitão, o paxá Rais Malik, teve algum tempo para avaliar meticulosamente o apurado e registrar cada objeto em seu diário de notas. Deparou-se com a vasta biblioteca amputada como estava, com os livros isolados uns dos outros, calados, no escuro. Para computá-los, pensou o paxá, não fazia sentido rabiscar os títulos aleatoriamente, nem os itens mais simples do butim registrava dessa maneira, fazia assim, separava-os inicialmente por natureza e origem, lustre tal, roubado dos rabinos piratas de Al-Andalus, tapeçaria, dos dervixes da Ordem das borboletas amarelas, coparia, dos desprezíveis Canatos credores do Sultão, e daí em diante. Depois classificava todos os objetos por características marcantes, e nesse momento os lustres entravam como octópodes, a tapeçaria ganhava borlas, a coparia surgia com um brilho dourado, e por fim, se estivesse ocioso, ou sóbrio, engrossava o caldo das categorias à sua maneira, preocupando-se com o tamanho, com a cor e com o material.
Essa biblioteca secreta, agora selada como um tesouro antigo em arcas muito grandes e severas, pertencera a Ibn Abd al-Rahman, um importante mulá de Al-Quds. Os piratas, de memória mais curta que a folha de suas adagas, não recordavam se o haviam matado durante o assalto, afinal, tantas cabeças tinham feito rodar que a de um mulá a mais ou a menos não lhes fazia diferença. O paxá acabou não se importando tanto com o assunto, deixou o interesse de lado e prosseguiu. Começou a investigar a natureza dos livros e se impressionou quando descobriu estar diante de descrições, esclarecimentos e louvores referentes aos noventa e nove nomes. Pensou em estudá-los, dedicar-se afetuosamente a eles, pensou valer a pena livrar-se de suas naus vendendo-as a preços módicos em bancas genovesas, libertar seus escravos, encerrar a vida de senhor do grande mar para tornar-se um rato dos pátios estreitos das madraças e estudar até se tornar um teólogo e jurista da Casa do capítulo, um exímio mulá.
A fantasia e a vaidade tomaram somente alguns segundos da inclinação de Rais Malik, que logo soprou a areia dos olhos e voltou ao trabalho. Passou a examinar o título e a primeira página de cada um dos livros para saber sobre qual dos nomes versava, e notando a sua completa desordem decidiu dividir cada nome por arca e enumerá-los, de modo que acabasse com exatas noventa e nove arcas distribuídas em dois navios, ou talvez, sugeriram-no seus secretários, dois teologuinhos amadores que o auxiliavam no ofício bibliotecário, talvez devessem acomodar todos aqueles baús enumerados em uma nau só, a capitânia, assim poderiam ter a benção de Alá consigo para o próximo saque. Os secretários enunciaram ainda o nome do profeta Musa ibn Imran e lembraram que, sobre as suas travessias pelo deserto, nenhum escoliasta poderia ter dito não haver ali com ele uma pequena biblioteca também guardada dentro de uma arca, biblioteca que veio a calhar como a sua principal arma contra os faraós do mundo antigo.
Esses grãos de areia o paxá não quis remover. Passou a ver na biblioteca o que nenhum homem de letras ou de armas jamais havia visto, uma grande e imponente máquina de guerra, maior, mais pesada e mais poderosa que aríetes, catapultas, torres de assalto. Pensou logo em armá-la por todo o navio, ao lado dos canhões e dos mosquetes, assim que estivesse terminado o trabalho de catalogação e de reorganização dos livros em seus devidos lugares.
Se esta biblioteca, contudo, era mesmo um engenho de poder, não se sabia por que motivo não teria valido o seu antigo proprietário o mulá Ibn Abd al-Rahman na noite da pilhagem. A esta possível objeção, que nenhum dos secretários ousou mencionar depois de terem conferido o entusiasmo do paxá, teólogos menos criativos poderiam ter respondido,
— Os livros não estavam devidamente enfileirados, divididos segundo os nomes e atributos divinos,
— Não havia um catálogo e nem mesmo um índice para apontar o conteúdo dos nomes em algumas poucas páginas, por isso, quando abrigada em sua antiga acomodação, não se tratava de uma biblioteca, mas sim de um amontoado de livros, de nomes ao léu, pilhas inúteis para a urgência da humanidade, servis somente ao manejo dos sábios, esses monstros da placidez e da memória.
Também se poderia adotar uma segunda linha de argumentação,
— A biblioteca escolhia secretamente os seus novos mestres e condenava os anteriores,
— Naquela noite a máquina se deixou partir propositalmente com o paxá entregando o mulá e o burgo às chamas.
Para dizê-lo à maneira dos teólogos juristas,
— A biblioteca sentenciava mais que os juízes, sabia mais que os sábios (como pode o livro não saber mais que o seu leitor?), julgava a qualidade dos homens e de suas teologias conforme critérios muito antigos e capitulava ou não, penalizava ou não.
Desse modo não se podia dizer por quanto tempo a sabedoria de Rais Malik gozaria de um juízo favorável diante dos desígnios deste mecanismo.
A próxima escala dos piratas, a propósito, era a Sicília. O paxá queria tomar as províncias italianas uma a uma das mãos dos emissários da Casa da batalha e desalojar a cabeça de seus almirantes, por isso apressou o trabalho de catalogação e reacomodação dos noventa e nove nomes e, enfim, ao cabo de alguns meses, depois de terminada a montagem das arcas, abalou para Siracusa. Dessa vez, contudo, os inimigos estavam preparados e surpreenderam a frota em pleno mar. Começaram a disparar contra os navios estrangeiros, mas, por uma estranha circunstância, as balas de canhão desviaram-se todas a meio caminho e foram dar com a nau do capitão, destroçando muito rapidamente e no mesmo fogo a tripulação, o convés, o mastro, as velas. O navio afundou rapidamente e com ele, confinado em seus escombros, desapareceram todos os nomes de Alá, contidos em noventa e nove arcas de madeira e couro.
Segunda biblioteca
Não, não foi assim. Os siracusanos fabularam este remate, os florentinos ouviram, apreciaram, reproduziram, também os pisanos, e os romanos, tudo a fim de desmerecer as armas turcas. Para tentar compensar o tamanho daquelas bombardas de nomes terríveis que os otomanos carregavam a bordo, os mercadores italianos alargaram a mentira e esperaram que entretivesse e durasse mais que o vinho. As balas mudaram de destino em pleno ar, é verdade, houve um naufrágio, o paxá Rais Malik e os piratas teólogos morreram, o restante da frota dispersou-se sem tocar uma praia sequer, sim, mas as arcas, em boa parte, foram resgatadas. Dos noventa e nove nomes de Alá não mais do que quarenta e três regressaram secos à superfície. Não houve razão que explicasse a reviravolta pirobalística e nem o milagre das arcas flutuantes. Tampouco o número quarenta e três possuía qualquer significado especial para os mulás da Casa do capítulo, de modo que os sábios que tenham chegado até este ponto do Itinerário talvez duvidem da contagem e sugiram erroneamente se tratar de quarenta, sessenta e seis ou setenta arcas, grandezas mais conformes à matemática sagrada.
A biblioteca, ou ao menos o que restou dela, foi adquirida por livreiros italianos curiosos que por muitos anos não souberam o que fazer com seus exemplares e, mais importante, não lhes conseguiram levantar um preço razoável para revenda. Escreviam o latim, liam o grego, mas o árabe, língua na qual as palavras escritas lhes pareciam serpentes de olhos múltiplos e vibrantes, nem sequer sussurravam, por isso não souberam valorizar a biblioteca, sequer sabiam haver por trás daqueles livros os nomes, e por trás dos nomes, acima, embaixo, estanque, inefável, uma engrenagem. Não foi difícil, portanto, para Yusuf efendi, um viajante e mercador otomano, letrado, paciente e supersticioso o bastante para o trabalho, percorrer as terras italianas, negando o mesmo cálice de vinho em Siracusa, em Pisa, Roma, Florença, para comprar todos os textos a preço de letra. Acomodou-os em carroças guiadas por cavalos para atravessar a Casa da batalha, depois distribuiu-os em albardas no lombo de duzentos camelos, para percorrer os desertos levantinos e subir aos capítulos.
Abandonara a Itália como proprietário de algumas centenas de livros esotéricos e somente de algumas poucas mercadorias a mais. Nem os camelos lhe pertenciam, nem os cameleiros eram seus escravos. Durante o longo trajeto teve de se graduar ele mesmo a teólogo para poder estudar minuciosamente os nomes. Se o finado paxá Rais Malik arriscou e perdeu tudo por querer enumerar e aglomerar os nomes todos ao redor de si, o efendi foi obrigado a retraçar a rota, como as balas dos canhões siracusanos. Definiu, cada nome só poderia trazer uma benção de Alá se estivesse rodeado pelo seu próprio cânone, ou seja, se estivesse sozinho em meio a uma biblioteca independente devotada somente a ele. Isto ocorreria porque não havia uma ordem dos nomes, não havia um primeiro e nem um nonagésimo nono. Cada um deles carregava, entre os seus significados possíveis, todos os outros nas costas, como um caramujo que dentro de sua concha leva o mar inteiro, de modo que enunciar um deles era meio caminho para enunciar mais noventa e oito e ordená-los seria um exercício de tamanha redundância, um passatempo para tolos e infiéis.
Orgulhoso de si como nunca, vaidoso, indiscreto, estatuiu-se senhor das quarenta e três bibliotecas sagradas, portanto de quarenta e três maquinarias diferentes. Expediu um vasto epistolário tratando delas e fez escalas estratégicas em entrepostos comerciais encravados nos confins do mundo entre a Casa da batalha e a Casa do capítulo para anunciá-las efusivamente.
Emires e atabegues do Egito compraram para as suas bibliotecas de cartas náuticas e planisférios todos os nomes cujas qualidades pudessem abençoar a guerra, como aquele da criação da morte, aquele do olho que tudo vê, aquele da onisciência, aquele da constrição, e demitiram cartógrafos e contrataram teólogos para decifrá-los e declamá-los nos pavilhões de guerra a cornetadas. Um príncipe da Síria, devorado por uma paixão antiga e pelos treponemas de um mal secreto, comprou os nomes que falassem de amor, aquele do coração que tudo perdoa, aquele da confiança, aquele da fonte da bondade, aquele da aceitação do arrependimento, pois queria ele mesmo estudá-los até a exaustão e se impregnar neles e, inspirado até o tutano de seus ossos, escrever cartas arrebatadoras para a princesa cujos olhos e corpo lhe tiravam o sono. Velhos reis das terras para além da Pérsia adquiriram as albardas dos nomes da perpetuidade, da doação da vida, da ressurreição, pois tinham esperança de recitá-los da maneira certa um atrás do outro, por dias, ao som de flautins e cítaras, até que das entrelinhas surgisse uma máquina do tempo, uma ampulheta de areais flutuantes, um calendário reformado com trezentos meses por ano, uma milésima primeira noite a repetir a primeira, um gênio saudosista e benfazejo que fizesse as horas caminharem para trás, junto dos anos e das rugas, como um exército que retrocede ao ver o poder do inimigo, e fizesse esses reis serem jovens novamente, como eram-no a esta altura os seus bisnetos.
Yusuf efendi vendeu todas as bibliotecas uma depois da outra e levantou grande fortuna. Chegou em Al-Quds vestido como um grande Cã, alguns até pensaram se tratar do Sultão ou de algum candidato a Califa. Comprou uma colina em cujo topo se espraiava um velho castelo abandonado construído no tempo dos Francos, as antigas pontas de lança da Casa da batalha. Acomodou sua cáfila na entrada da cidade e doou o último livro restante ao primeiro homem que descobriu capacidade para ler. Viu-se livre dos nomes de Alá e nunca mais teve de se preocupar com eles novamente, a não ser pelos motivos nada comerciais da religião.
Terceira biblioteca
Sim, os eventos finais da vida de Yusuf efendi poderiam ter corrido assim, encadeados a uma coroação lambuzada de mel, como narraram os livreiros prosaicos do bairro árabe aos seus clientes. Poderiam, se este viajante não houvesse divulgado tanta riqueza e poder para todos os cantos e se estas estradas percorridas não conduzissem ao sangrento e triste burgo de Al-Quds, bigorna dos piratas. Na verdade, os próprios guias cameleiros cortaram a cabeça do comerciante a sangue frio, guardaram-na com cuidado, como se fosse um precioso rubi, roubaram o dinheiro adquirido com as vendas, dividiram entre si, despediram-se e dispersaram-se pela Terra Santa e, enfim, como não poderia ser de outra maneira, passaram a se perseguir uns aos outros. Foram se degolando um a um, concentrando cada vez mais o espólio apurado ao livreiro, colecionando barbaramente as cabeças dos companheiros assassinados, até sobrarem somente duas por se coletar, dentre as quais estava a do verdugo, cujo nome não interessa a este Itinerário, e a do jovem Dawud, que se bandeou com um livro somente, o único que sobrara, a Al-Quds para procurar o lendário mulá proprietário da biblioteca originária. Presumia-se perseguido ele mesmo pelo simples fato de não estar perseguindo nenhum de seus antigos companheiros.
Este último livro em especial não se encaixava nas coleções formadas pelo efendi, por isso não fora despachado junto com elas. Em verdade ele seria um corpo estranho em seu meio, ou bem mais do que isso, segundo o raciocínio do livreiro, quando ainda tinha uma cabeça para recitar o salá, aquele volume seria uma força desagregadora, pois tratava-se de um catálogo, mais precisamente o redigido por Rais Malik antes do naufrágio. Trazia em suas páginas não os nomes, visto que não poderia conter outros livros entre suas capas e lombada, mas o nome dos nomes, todos listados em um mesmo índice. Ele, portanto, era inferior ao conteúdo textual de cada exemplar das quarenta e três bibliotecas, mas superava amplamente o seu horizonte referencial, abrindo uma janela que Yussuf Efendi preferia manter fechada. Era um volume muito grande e pesado de capa verde, todo manuscrito por dentro. Ao longo de todas as folhas a caligrafia do paxá se revelava algo tortuosa, porque o balanço do navio fazia os seus dedos sacolejarem e o cálamo derrapar como um batel desgovernado pelas páginas enquanto enlaçava serpentários que pareciam vivos de tão trêmulos. O título prometia, Biblioteca do Mulá.
O jovem Dawud não sabia que este livro não compunha originalmente a coleção da biblioteca do mulá Ibn Abd al-Rahman, também não sabia se este ainda vivia. Enquanto o buscava pelas ruas do souk, descrevendo-o segundo a lenda, descobriu que nunca o encontraria, pois falava de um ancião teólogo, arruinado pelo saque dos piratas, e percebeu que cada um de seus interlocutores poderia ser o tal mulá. Al-Quds era uma imensa madraça onde todos eram velhos e sábios, alunos e mestres, tristes e esfarrapados, todos temiam o retorno dos piratas e todos discutiam teologia enquanto compravam e vendiam no mercado. O conhecimento da literatura sagrada chegava às vezes a valer como moeda de troca, os mercadores davam-se por satisfeitos após ouvir alguma boa lição sobre os desígnios do profeta e cediam gratuitamente em troca o que quer que estivessem vendendo ao comprador. Caso não tirassem proveito do ensinamento dobravam o preço dos produtos.
Alguns dias depois de ter chegado a Al-Quds, cidade dos teólogos, Dawud passou a ter a estranha sensação de estar sendo observado. Impacientou-se. Queria livrar-se o mais rápido possível do catálogo para passar à frente o imenso alvo que se encontrava sobre a sua cabeça e que parecia acompanhá-lo pelas ruelas do mercado. Por algum motivo, talvez por ter se contagiado da febre bibliófila dos mulás, acabou menosprezando o fato de ter vindo de uma trupe de bárbaros e suspeitou que o seu possível algoz tivesse mais interesse naquela última biblioteca que em lhe partir o pescoço, por isso deixou o largo volume sobre a banca de um dos teólogos mercadores e fugiu para sempre da cidade.
Dizem as línguas dos livreiros, estalando como folhas de livros carcomidos e ressecados, que este mesmo teólogo examinou o catálogo abandonado, descobriu tratar-se dos nomes dos nomes de Alá, mas era um homem humilde e não quis tirar proveito pessoal deles, concedendo assim algum tempo de repouso à máquina antes de surgirem, como não poderiam deixar de surgir, a quarta, a quinta, a sexta biblioteca e daí em diante, através da falsificação dos livros perdidos e da pura imaginação e ganância dos mulás. Dizem ainda, não se sabe o quão besuntadas pelo mel, sobre o estrangeiro, o jovem Dawud, que correu aparentemente muito apressado para o Oriente, Casa do capítulo adentro, e atrás dele um outro homem, dizem que partiu sem pressa e que regressou dois dias depois com um rubi brilhante nas mãos.