– por Juliana Amato
Em 2011 escrevi um conto chamado «A casa, o sal». É a história de um casal que encontra uma cabana meio velha, meio abandonada, numa restinga. Eles limpam e arrumam a casa, deixam-na fresca, luminosa, um lar, e depois vão embora. Lembrei desse conto porque estou montando a minha casa outra vez, a casa nova na cidade que já não é tão nova, e porque montar uma casa é uma das minhas aventuras preferidas.
Monto a casa com a alegria da novidade, que vem também com a ansiedade do hábito — de a novidade passar e nos acostumarmos com as coisas no lugar em que devem estar. Porque é frequente, quando se está montando uma casa, passar longos períodos parado no meio de um cômodo, fitando um canto de parede, com o pensamento suspenso ou vacilante entre as obrigações do dia a dia, o trabalho, as tarefas, e as exigências do novo dado da realidade, limpar a casa, comprar coisas para a casa, encher os armários da casa, buscar os itens necessários para se viver numa casa. Ao mesmo tempo, aproveita-se a espontaneidade de servir uma refeição no chão, improvisando com o que se tem, acrescentando mais alguns itens à lista que parece não ter fim.
Você chega à casa sozinho, e logo chegam os novos habitantes com os quais você irá dividir o espaço por algum tempo ainda indeterminado. Até que seja a sua casa, você se sentirá um estranho entre as paredes vazias e o eco dos espaços sem móveis, sem tecidos, inacolchoados. É lento o habituar-se com as novas distâncias, com o ponto exato para fazer as curvas, com o modo de abrir e fechar as torneiras, o formato das maçanetas, a pressão da água. Você repara em tudo isso conforme se assusta — abrir a torneira só até tanto, não fechar esse armário com força —, e cada susto é como se a casa também manifestasse o estranhamento da nova presença que guarda.
Até que isso aconteça, que a casa se acostume com a sua presença, ela também dá os seus sinais de insatisfação: vaza a pia da cozinha, a porta de correr emperra, o chuveiro queima, o seu cotovelo bate naquela quina da qual ainda não desvia intuitivamente, pequenos sinais de estrago, necessidade de mínimos consertos porque uma mão nova, um novo peso, tocou a superfície e a despertou, com um susto, de seu repouso.
A casa se acostuma aos poucos com a sua presença. Você se acostuma com a própria presença dentro da casa. No entanto, até a consolidação do costume, até as palavras “minha casa” se referirem à casa nova, e não a qualquer outra, até você levantar automaticamente o pé para pisar o degrau, um degrau que você nunca precisou ultrapassar antes, você vai passar por diversas primeiras vezes — o primeiro tropeço no degrau, de muitos.
Haverá o primeiro banho, a primeira noite, a primeira refeição, a primeira lavada de roupa, a primeira visita. A primeira garrafa de vinho — bebida no copo porque você ainda não tem taças —, a primeira compra no supermercado. A primeira insônia, a primeira queda de energia. O primeiro objeto que você comprou simplesmente para enfeitá-la. Os móveis e eletrodomésticos vão chegando e entram, carregados, estacionam nos lugares reservados para eles e começam a cumprir a sua função. São as suas coisas, na casa que fica sua — que fica sua quanto mais vezes se repetem as primeiras, quanto mais ela se acostuma.
Há a ansiedade de separação. Até se acostumar com a casa nova você não quer passar muito tempo longe dela, como se algo muito importante pudesse acontecer a qualquer momento e a sua presença fosse imprescindível, e você precisasse estar ali para ver, solucionar, verificar o que quer que seja. Você se sente responsável pela casa nova e quer cuidar dela, de todos os seus cantos, detalhes, como se respirassem. Sair pela porta é uma ideia insensata, assim como é insensata a ideia de ficar na casa sem coisas, procurando o que fazer em meio a tanto que precisa ser feito.
Você sai, porque é preciso. E cada vez que você abre a porta, a sua porta, e entra, os olhos batem naquilo que você vê pela primeira vez deste ângulo diverso. Você sorri, porque não lembrava da existência do novo dado, e contempla, porque a sua casa já tem isso que lhe faltava, e que lhe caiu tão bem. Conforme os olhos encontram as coisas, vezes e vezes sucessivas, a casa torna-se sua, e os olhos da casa postos sobre você a tornam, aos poucos, mais receptiva à sua presença, igualando enfim o habitar e o ser que habita.
De repente, você se flagra simplesmente habitando a sua casa. Você não está aflito com algo que precisa comprar, fazer, ir atrás; com um móvel que está para chegar; com algum arranjo fundamental para se estar ali. Você está ali e se distrai com outra coisa — dá toda a sua atenção a outra coisa. A casa, por sua vez, passa a guardar a sua presença tranquilamente, sem reivindicações, sem caprichos. Nesse momento a casa é sua.