– por Bernardo Lins Brandão
Falar em mística e poesia pode parecer, à primeira vista, uma contradição. É que a poesia é a arte da palavra e a mística, já em seu sentido etimológico – definido pelo verbo grego myo, que significa fechar os olhos, silenciar -, diz respeito a experiências sobre as quais deveríamos nos calar. De um lado, o deleite da palavra; do outro, experiências inefáveis. Como conciliar?
Esse também é um problema para a teologia: é que, se o Deus do nominalismo, de Ockham à filosofia analítica, é um ente perfeitíssimo, isto é, algo que existe com uma essência determinada, onisciente, onipresente e onipotente, para a tradição do teísmo clássico, por ser o criador de todas as coisas, Ele está para além de todas elas e, por isso, não pode ser compreendido como um ente nem nomeado como as coisas deste mundo.
Filósofos como Plotino o chamavam de Um, indicando que é a unidade para além de toda alteridade; outros, como Dionísio Areopagita, não hesitavam em caracterizá-lo como não-ser, indicando que é superior ao ente. S. Tomás, buscando uma linguagem mais precisa, o entendia como o ato de ser subsistente, isto é, o fundamento do ser em toda a sua plenitude.
É a partir do pseudo-Dionísio Areopagita, que parece ter vivido em algum momento entre os séc. V e VI d.C., que se começa a falar na complementaridade entre teologia afirmativa e teologia negativa: quando se faz teologia afirmativa, ou seja, quando esboçamos um discurso propositivo a respeito de Deus, não estamos descrevendo-o de modo preciso, mas construindo, a partir das coisas deste mundo, analogias sobre Ele; estamos empregando símbolos para falar sobre o que nenhum conceito é capaz de abarcar. Por isso, se não querem se tornar um ídolo, as afirmações devem ser corrigidas por negações, que lhes darão peso e medida. A teologia negativa discorre sobre Deus dizendo o que Ele não é; ela nega os atributos da teologia afirmativa, manifestando seus limites. Quando falamos que “Deus é bom”, “Deus é uno”, “Deus é causa”, estamos fazendo analogias: a bondade de Deus não é igual a bondade das coisas deste mundo; ainda que guarde alguma semelhança com o que conhecemos, não sabemos direito, no fim das contas, o que ela é; a unidade divina não é como a unidade dos entes criados, sempre múltiplos; não entendemos o que é ser causa primeira – criar, desde toda eternidade, o universo do nada.
Mas qual a relação entre teologia e poesia? Ao contrário da teologia, cuja finalidade é o entendimento, a poesia é uma arte; sua intenção primária é o deleite, não a instrução. Os textos de Tomás de Aquino e Bento XVI estão mais próximos da filosofia que da literatura. No entanto, acredito que a poesia, por sua própria natureza, se encontra em uma posição especial para dizer o inefável e, assim, para falar sobre Deus tal como Ele é experimentado pelo homem. E isso, de duas maneiras: por seu poder anagógico e por sua relação com o fenômeno saturado.
Entendo aqui o fenômeno saturado como o definiu Jean-Luc Marion: é o fenômeno que manifesta à consciência um tal excesso de intuição que nenhum conceito, nenhuma significação é capaz de abarcar. Nossa experiência é perpassada por ele: um mundo que se reduza aos meus conceitos não pode ser o mundo real. Marion, em alguns textos, dá o exemplo do 11 de setembro: ninguém esperava aquele ataque nem imaginava que as Torres Gêmeas poderiam ser derrubadas; enquanto o atentado acontecia, o mundo parou em frente à televisão; víamos as imagens, mas não conseguíamos captar o seu significado; só depois de muito tempo, aos poucos, aquela experiência traumática se tornou inteligível.
Poderíamos também, no momento presente, pensar na pandemia: no começo, ninguém parecia entender nada e, ainda hoje, não captamos plenamente as suas implicações; não sabemos ainda como o mundo, por causa dela, irá se transformar; complexa demais, presente demais em nossa vida, ela é, para nós, fenômeno saturado.
Marion, a partir de Levinas, afirma que a face do outro, inabarcável por nossos conceitos, é também um fenômeno assim; o outro é, para nós, aquele que, em sua liberdade, é sempre capaz de nos surpreender, de subverter as ideias que construímos a seu respeito, de nos decepcionar e nos entusiasmar. Encontramos ainda, em seus escritos reflexões a respeito da carne que somos, do ídolo que configura nossa visão e ainda, se aproximando da teologia, da Revelação – tudo isso, fenômeno saturado.
Eis a questão: a filosofia pode discorrer sobre o fenômeno saturado; pode nomear, em linguagem clara e distinta, o amor e a guerra, o homem e Deus; pode servir de base para uma teologia afirmativa e ressignificá-la com a teologia negativa. Mas esse é sempre um empreendimento arriscado. É que a filosofia segue um caminho conceitual; o seu olhar para a realidade se faz por noções delimitadas, teses e argumentos. O fenômeno saturado, entretanto, não pode ser capturado por definições nem compreendido por uma ordem de razões. Sobre a filosofia, paira o perene risco da confusão entre a ideia e o real. Aqui a poesia se encontra em vantagem: sua intenção é tornar belas as palavras, não defini-las; ela não tem o compromisso com o rigor e, por isso mesmo, é mais rigorosa para falar daquilo que continuamente nos escapa.
A poesia está em uma constante busca por resistir ao desgaste da língua, o que ela faz pela subversão das palavras e pela maneira como as emprega de maneira inaudita. Ela está sempre a levar a linguagem ao limite e é por isso que cresce quando trata daquilo que o sentido referencial, diante de um excesso do ser, não é capaz de abarcar. Esse foi, por exemplo, o projeto da poesia dos românticos, quando escreviam sobre emoções que, de tão intensas, escapavam ao domínio da razão, e de Paul Celan, ao lidar com a experiência do holocausto, grande fenômeno saturado do século XX, cujo horror nenhuma palavra é capaz de prestar contas.
Mas mística, enquanto experiência humana de Deus a ultrapassar todo entendimento, é também fenômeno saturado; na verdade, o fenômeno saturado
por excelência, já que diz respeito à mais inabarcável das realidades, fundamento de todas as outras. Por isso, a poesia que diz a seu respeito, com todos os riscos que corre, quando bem-sucedida, se torna a arte mais elevada, como vemos no Cântico dos Cânticos, na obra de Dante, Rumi e Hafez, Hidelgard von Bingen, Teresa de Ávila e João da Cruz.
Nesses autores, vemos que o sentido do poema é maior que a significação literal. Para entender como isso se dá – e para entender a poesia que se põe diante do fenômeno saturado -, gostaria de apontar para uma experiência que acredito ser universal: quando éramos crianças e estávamos aprendendo a falar, o poder encantatório da linguagem nos era evidente; e, enquanto ainda a estranhávamos, a língua era, para nós, constante fonte de deleite; o tempo passou e ela, se tornando cada vez mais familiar, acabou por se retirar a um segundo plano. Mas a poesia, ao ressignificá-la, tem a capacidade de torná-la novamente encantada. Eis, com efeito, uma outra definição possível de poesia: a arte do reencantamento da linguagem.
Isso ela faz de duas maneiras: pelos jogos linguísticos que constrói, isto é, pelo modo inaudito como as palavras são empregadas – nas imagens, na
sonoridade e no uso pouco comum – e pelo reencantamento do mundo. No primeiro caso, estamos diante da linguagem em sua pura imanência; é um belo ofício e existem autores que o empreenderam com maestria. Mas é quando alcança o reencantamento da linguagem por meio do reencantamento do mundo que o poeta exerce sua arte em pleno poder. Cito aqui Rumi, na tradução de Coleman
Barks 1Secret Places. BARKS, C. Rumi: bridge to the soul, 2009, p. 48.
amantes encontram lugares secretos
neste mundo violento
onde fazem acordos com a beleza
Quando éramos crianças, não era apenas a língua, mas o mundo que experimentávamos com assombro; o mistério se revelava facilmente a nós e a imanência das coisas parecia sempre apontar para além. A poesia, em sua busca por reencantar a linguagem, tem o poder de nos levar novamente para este lugar, este espaço interior, oculto neste mundo violento, onde aqueles que amam podem experimentar, em silêncio, a manifestação da beleza. Continuando o poema:
a razão nega – absurdo
vasculhei e medi as muralhas
não existem tais lugareso amor diz – eles existem
O reencantamento poético do mundo se dá quando o poema aponta para o fenômeno saturado, quando mostra que nossos conceitos não dão conta de nossa experiência do ser, mesmo naquilo que parece existir de insignificante, mas, sobretudo, no que há de mais grandioso – na manifestação do divino. Nos versos finais do poema, Rumi escreve:
todo dia o sol se levanta
das nuvens de palavras baixas
às chamas do silêncio
O poder da poesia dos místicos está em nos levar das palavras cotidianas ao silêncio no qual a experiência do Princípio se torna possível. É nesse silêncio que o mistério do mundo se manifesta mais intensamente: é que o mundo é encantado para nós sobretudo quando aponta, tal como a melhor poesia, para além de si mesmo, quando se torna teofania.
Mas, se assim é, o reencantamento do mundo, sempre urgente e necessário – pois o homem que vive da pura imanência é um bicho da terra tão pequeno -, é sobretudo tarefa do poeta que não teme escrever sobre a experiência saturada de Deus. Esta tarefa, não apenas a mais importante, mas também a mais árdua que cabe ao artista, quando bem realizada, constrói um monumento perene.
Um exemplo: a Divina Comédia é especialmente popular pelos cantos do Inferno, em sua percepção profunda dos vícios e vicissitudes do humano; mas é no Paraíso que atinge seu nível mais elevado. Para falar da experiência do céu, que está para além de todo conceito, Dante leva a linguagem ao limite: dissolve o seu sentido referencial e a transmuta em algo maior, em símbolo saturado de significação. Um empreendimento quase impossível; um milagre e uma conquista permanente da língua. Liszt, em um de suas sinfonias mais ambiciosas, compôs um Inferno e um Purgatório; a peça final do Purgatório, que representa a chegada de um Dante já purificado ao paraíso terrestre, é uma de suas mais sublimes obras; no entanto, persuadido por Wagner de que nenhum compositor terrestre poderia expressar adequadamente a alegria do céu, não ousou musicar o Paraíso. O silêncio
pareceu-lhe mais capaz que a música de apontar para a experiência que Dante transpôs em palavras. Eis o grande feito da Comédia e a razão mais profunda pela qual se tornou um dos maiores poemas de todos os tempos: ela nos trouxe – a todo leitor que a leva a sério – de volta o assombro, o que pôde fazer por dizer aquilo que, por excelência, é o fenômeno saturado.
S. João da Cruz foi outro dos grandes poetas do fenômeno saturado da contemplação de Deus. Em suas Coplas feitas sobre um êxtase de alta contemplação , ele escreveu: 2 JOÃO DA CRUZ. Poemas selecionados, 2012, p. 59.
eu não sabia onde entrava
porém quando ali me vi
ignorando onde estava
grandes coisas entendi
não direi o que senti
pois segui desconhecendo
toda ciência transcendendo
O mote do poema, o verso toda ciência transcendendo, é o seu reconhecimento de que fala sobre o que não pode ser dito, pois não pode ser compreendido. Isso, entretanto, não é apenas um foco de sua poética, mas também de sua teologia; ambos tratam da mística, mas, para ele, a poesia era o primordial, já que considerava seus tratados como glosa e explicação de seus versos. Sua intenção, contudo, não era apenas falar sobre suas experiência inefáveis, mas conduzir o leitor até elas. Era a potência anagógica o que, para ele, havia de mais importante em sua poesia. É sobre essa potência que quero agora falar. Mas, para isso, precisamos voltar à história do termo mística.
O termo mystikós, em grego, um adjetivo formado a partir do verbo myo, dizia, originariamente, a respeito dos ritos de iniciação das religiões de mistério (por exemplo, os mistérios de Elêusis); a respeito deles, diante dos não-iniciados, aquele que por eles passou deveria se calar. Com o tempo, o termo começou a ser empregado para falar do sentido profundo dos mitos e ritos; o seu sentido iniciático, que, muitas vezes, era entendido como um sentido alegórico. Em Plotino, por exemplo, o grande filósofo místico da Antiguidade grega pagã, nunca encontramos o termo mystikós ou um seu derivado indicando algum tipo de experiência suprarracional; ao contrário, na única vez que aparece, o termo (Enéada III, 6, 19), em sua forma adverbial, ele aponta para o sentido alegórico da representação dos deuses Hermes e Cibele, que ele entendia na perspectiva da sua teoria da matéria.
É também nesta acepção que os primeiros cristãos passaram a empregá-lo, quando falavam do sentido místico das Escrituras: este seria o seu sentido mais profundo, aquele que é descoberto na oração. É a partir desse uso que, com Dionísio Areopagita, o termo ganhará seu significado tradicional. Em sua Teologia Mística, Dionísio fala que, para além do sentido simbólico dos nomes divinos nas Escrituras, existe um sentido mystikós, ainda mais profundo, que as palavras não podem alcançar e que só é compreendido no êxtase contemplativo, pois é experiência de Deus. Dionísio tem em mente a prática da lectio divina, a leitura meditativa das Escrituras que se torna oração e que, começando como consideração do simbolismo dos textos sagrados, acaba por dar lugar a uma contemplação superior ao pensamento discursivo.
Dionísio pensa esse sentido místico em sua relação com a teologia afirmativa e negativa. A teologia negativa completa a afirmativa; é ela que manifesta, com suas negações, os limites do discurso propositivo a respeito de Deus: os nomes divinos que aparecem na Bíblia, ela ensina, são símbolos, formulados a partir das coisas deste mundo, da infinitude de Deus, para além de todo entendimento. Mais adequado é negá-los e é isso que o discurso apofático faz. Mas existe um terceiro caminho, uma forma de teologia superior, aquela do teólogo que não apenas fala de Deus, mas fala com Ele e, no silêncio, experimenta-o como fenômeno saturado. Tal como toda teologia cristã, este também é um caminho que parte da Bíblia: a experiência contemplativa de Deus é fruto da oração, mas a oração por excelência é a lectio divina, aquela que usa as próprias palavras reveladas por Deus para se dirigir a Ele. Aqui é possível compreender o paradoxo das Escrituras: suas palavras, para Dionísio, apontam para sua própria
superação. Seu sentido mais profundo está para além das palavras que a compõem, para além de toda palavra possível.
Com o tempo, o termo mystikós foi se afastando de seu contexto ligado à lectio divina e passou a designar qualquer tipo de experiência supra-discursiva, acabando por sofrer, nos tempos modernos, como notava Lima Vaz, uma certa deterioração semântica, empregada também para indicar “uma espécie de fanatismo, de forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade”, sinal para ele, da “inversão profunda da ordem que deve reinar em nossa atividade psíquica e espiritual”, uma das marcas de nossa época 3 . Mas a teologia mística do Areopagita, considerada a partir de seu contexto original, pode ser útil para o nosso presente propósito de refletir sobre a poesia. Ela indica que, para além do sentido referencial, a linguagem é também dotada de uma potência anagógica capaz de nos 3 VAZ, H. Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental, 2000, p. 9-10. conduzir à experiências que pedem a sua própria superação; ela não somente é capaz de nomear, ainda que de maneira precária, o fenômeno saturado, mas também de nos conduzir até ele.
No cristianismo, é a Bíblia o texto dotado, por excelência, desse poder anagógico, mas não o único; existe toda uma linhagem de livros espirituais que, usados na lectio divina, nos levam à contemplação. Também em outras tradições encontramos algo assim: na Enéada V, 3, Plotino, afirma que o seu texto pode se tornar um epodé, um encantamento, se cantado muitas vezes; sua obra, ele indica, pode ser lida a partir de seu sentido referencial, como um texto filosófico tradicional, mas também pode ser cantada, tornar-se um encantamento, e nos levar à contemplação para além das palavras (Enéada V, 3, 17).
A poesia, por empregar, na definição de Pound, as palavras em sua máxima significação, é também dotada de poder anagógico. Ela pode nos afetar a ponto de nos levar a este outro lugar, interior, onde a linguagem não nos podem alcançar. Aqui nos será útil uma outra noção da filosofia de Jean-Luc Marion, que adapto para meus propósitos, a anamórphosis 4 O termo foi primeiro empregado nas artes plásticas, para falar de uma técnica de perspectiva na qual o lugar em que estamos quando vemos uma imagem condiciona o modo como ela irá aparecer para nós. Jean-Luc
Marion adaptando-o para um contexto fenomenológico, define-o de diversas maneiras, em seus textos. Em Givenness and Revelation, 2016, p. 65, ele dá a entender que a anamórphosis é a conversão da intencionalidade que condiciona a maneira como o fenômeno aparece para nós. Minha noção de anamórphosis é inspirada em Marion, mas não tem exatamente a mesma acepção que a que aparece em seus textos. Penso o termo a partir
de seu sentido em grego antigo, uma nova conformação, mas também em um sentido contemplativo e existencial. , que defino como a conformação existencial que toma um sujeito e que determina o seu modo de contemplar. Se, contra a racionalidade desencarnada iluminista, com suas pretensões universalizantes, a razão humana é eminentemente encarnada, a profundidade do que entendo depende da posição existencial na qual me encontro, da configuração do meu ser, isto é, da minha anamórphosis.
Um conceito correlato, que pego emprestado de autores do cristianismo primitivo, é metánoia, geralmente traduzido por conversão, mas que entendendo, a partir de sua etimologia, como um ir para além com o noús (a inteligência), ou seja, como uma expansão do horizonte de consciência; a metánoia é conversão não apenas enquanto uma mudança no modo de vida; ela é o viver em um mundo mais amplo que aquele em que anteriormente nos encontrávamos. Uma metánoia causa em nós uma anamórphosis: é uma transformação que nos traz uma nova conformação. Essa configuração nos possibilita captar aspectos da realidade que nos passavam despercebidos, entender com maior profundidade o que antes nos era obscuro e admirar com intensidade o que deixávamos de lado, pois tínhamos outras preocupações. A anamórphosis condiciona a theoría; a configuração de nosso ser determina o nosso olhar.
É isto que a poesia pode fazer em nós, se a ela voltamos nossa atenção: ela pode transformar o nosso ser, expandir a nossa mente, nos levando a habitar em um mundo mais amplo. E, ao fazer isso, ao realizar em nós essa metánoia, ela pode nos conduzir a uma anamórphosis na qual passamos a ver coisas que não víamos antes, entendemos melhor certas realidades e nos tornamos capazes de nos dirigir ao fenômeno saturado.
Quando, na tradição agostiniana, fala-se em credo ut intelligam, em crer para compreender, é isto que está em jogo: a fé nos leva uma metánoia que, por sua vez, provoca em nós uma anamórphosis na qual nos tornamos capazes de entender, em alguma medida, o fenômeno saturado da Revelação. Temos de nos colocar na conformação existencial da fé para que a mensagem cristã se torne inteligível, o que não quer dizer que ela seja, por isso, irracional, mas que a razão é encarnada e parte de situações concretas. Para entendermos o cristianismo, devemos alcançar
a anamórphosis da fé.
A poesia opera algo assim; ela pode nos levar a um lugar interior ao qual não tínhamos acesso, de modo a nos tornarmos capazes de ver coisas que antes não conseguíamos; ela é capaz de nos levar a uma anamórphosis na qual o encantamento do mundo pode novamente se manifestar. Por isso, tal como a Bíblia na lectio divina, ela pode ser o suporte discursivo que nos conduzirá a uma experiência profunda de Deus. É tendo em vista o poder anagógico da linguagem poética que podemos compreender S. João da Cruz, quando escrevia, em seu poema, que “para saborear tudo, não queiras ter gosto em nada”; ele não estava apenas nos deleitando com as palavras, mas também nos dando instruções para o caminho. É também isso que considero que faz Jorge de Lima em seu Poema do cristão 5 5 LIMA, J. Túnica Inconsútil, 1997, p. 351-352. :
Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
O poeta não está aqui apenas descrevendo uma experiência possível de um fenômeno saturado, mas nos convidando a realizar, com a imaginação, aquilo que ele descreve, de modo a experimentarmos a metánoia da visão alargada pela Paixão e alcançarmos a anamórphosis da inteligência transfigurada em Cristo, capaz de nos levar à contemplação.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Seguindo a poética essencialista de Ismael Nery e Murilo Mendes, Jorge de Lima, em seus versos, quer nos levar à experiência do fenômeno saturado da totalidade. Não apenas falar sobre ela e, assim, nos trazer uma experiência poética do inefável que se aproxima do surrealismo; ele quer, por meio do poder anagógico da linguagem, que adotemos um outro modo de olhar e que, ao cantarmos seus versos, que eles se tornem para nós epodé, linguagem encantada, e nos conduzam à contemplação.
É claro que a poesia, por si mesma, pouco pode fazer. Jorge de Lima termina o poema com uma súplica: miserere mei Deus, secundum magnam misericordiam tuam. A theoría depende da conformação existencial e esta, de nossos hábitos, ações e desejos. Plotino colocava, ao lado da filosofia, a kátharsis, a purificação através da virtude, como condição para a ascensão. O mesmo pode ser dito aqui: o assombro é uma conquista da ascese do ser; para que a poesia não apenas aponte para o fenômeno saturado do Absoluto, mas nos conduza até ele, devemos estar à sua altura; deve haver, em nossa existência, espaço para o silêncio que torna possível a contemplação. O alargamento do noús que se faz pela metánoia não se reduz a um modo de vida, mas necessariamente o pressupõe. Então, uma vez que alcançamos essa ampliação do espaço interior, a poesia pode revelar seu poder
anagógico: basta então que não a leiamos como um texto dissertativo, mas que a cantemos e a executemos, como uma partitura, com a alma.