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– por Bernardo Lins Brandão
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Os gregos conceberam dois tipos de educação superior, a retórica, voltada para a prudência, e a filosófica, que buscava a sabedoria. Esse foi um dos grandes legados da Grécia, o legado de Isócrates e de Platão.
O caminho da sabedoria se perdeu no fim da Idade Média, apesar da tentativa de sua recuperação na Florença renascentista. O caminho da prudência atingiu o seu ápice com o sistema escolar jesuíta e sobreviveu até o séc. XIX, dando seu último suspiro com a lberal education dos EUA da primeira metade do séc. XX, quando foi finalmente vencido pelas seduções da técnica.
Em nossos tempos, a philosophía foi substituída pelo ensino técnico-científico e a educação para a prudência, pela formação para a cidadania. Mas a ciência sem a sabedoria é cega e a cidadania sem prudência é vazia. O resultado foi a fragmentação do conhecimento, um senso geral de desorientação e a substituição do bom senso pela onipresença da lei.
Nossa crise contemporânea, no fim das contas, é uma crise da educação e é por isso que devemos redescobrir, com urgência, o que a esse respeito tinham os antigos a dizer.
A base da educação grega, como indicou Platão nos primeiros livros da República, era ginastica e música: primeiro, treinar o corpo, torná-lo forte e capaz; depois, fazer o mesmo com a alma, através mousiké, que não é bem o que hoje entendemos por música.
Originariamente, o termo indicava “o que era relativo às musas”, ou seja, às divindades protetoras da cultura; ele dizia respeito à arte dos sons, mas também da performance de poemas, muitos deles cantados com o acompanhamento do áulos (um instrumento de sopro de som estridente) ou da lira (é por isso que falamos, até hoje, em poesia lírica). Por isso, o estudo da mousiké envolvia o contato com as obras dos grandes poetas e a sua memorização.
Os gregos chamavam essa educação literária de grammatiké. Não era simplesmente o que entendemos por gramática: em grego, grammata significa letras; grammatiké, o que é relativo às letras. Nas aulas de gramática, os alunos estudavam a língua e suas sutilezas, mas também os poetas. O manual didático por excelência era a Ilíada e a Odisseia; a partir da leitura de Homero, o professor falava dos fenômenos linguísticos (daí que a grammatiké grega se tornou a nossa gramática), mas também dos mitos, da geografia, da história; em suma, de tudo o que ajudasse o estudante a entender o poema.
Essa educação básica ia até a adolescência. Depois, o que havia era um ensino informal, obtido através do convívio com os adultos, no qual o jovem aprendia o que se esperava dele enquanto cidadão. Mas, no século V a.C., começaram aparecer professores que propunham uma continuação nos estudos, isto é, uma educação superior que completaria e aprofundaria a educação tradicional: os sofistas. Com efeito, o movimento sofistico é principalmente um movimento pedagógico.
E o que eles ensinavam?
Quando analisamos as fontes, percebemos que existiam variadas propostas; mas, antes de tudo, o que se ensinava era como ser um cidadão de destaque. Para isso, o essencial era o domínio da retórica – a arte de falar bem e de persuadir -, conhecimento essencial nas assembleias políticas.
Mas a educação sofística não se resumia à eloquência. No Protágoras de Platão, o sofista Protágoras dizia que o que ele ensinava era a virtude. Que virtude? Lendo com atenção o que ele diz no texto, podemos compreender: é aquela que torna a pessoa capaz de deliberar e agir bem em sua comunidade; em outras palavras, a phrónesis, termo que poderíamos traduzir por prudência. No entanto, tal como as palavras música e gramática, também prudência tem, em grego, um sentido mais específico: ela não indica simplesmente cautela, mas sabedoria prática, isto é, uma sabedoria de vida, que nos permite fazer a coisa certa no momento certo.
A phrónesis é uma sabedoria do concreto e, por isso, não pode ser codificada. Hoje, temos como ideal o conhecimento teórico: aprender é estudar teorias. É claro que a sabedoria prática tem um elemento teórico: a pessoa sabe o que faz e sabe por que faz o que faz – eis a diferença, para Aristóteles, entre experiência e conhecimento. Mas só a teoria não basta; as circunstâncias concretas são complexas demais para que um conjunto de ideias as possa abarcar.
Quando aprendemos piano, não basta estudar um manual; é preciso muita prática, – empeiría, para falar como Aristóteles -, que nos dá a percepção das sutilezas da arte: a intensidade, o ritmo, o modo de tocar. Saber essas coisas é ter um outro tipo de compreensão, que chamo de conhecimento encarnado. Ele diz respeito ao ser humano por inteiro: a imaginação, a memória do corpo, a inteligência.
É também assim que se alcança a phrónesis. Na vida, não basta um conjunto de princípios teóricos; precisamos de experiência. Mas só ela não basta: necessitamos com ela querer aprender. É por meio da reflexão sobre a experiência, que os gregos chamavam de meléte, que, aos poucos, vamos nos tornando prudentes, se, concomitantemente, vamos desenvolvendo outras virtudes como a coragem, a temperança e a justiça. Eis, então, os três fundamentos da phrónesis: a experiência (empeiría), a meditação (meléte) e a virtude (areté).
Um outro ponto comum à proposta dos grandes sofistas: o aprofundamento da educação literária. Ela fornecia ao aluno modelos de eloquência, mas também completava o que faltava à experiência. Nenhuma vida é capaz de esgotar a existência humana, mas, por meio da literatura, podemos viver mil vidas e, assim, compreender melhor a nossa condição. No caminho da prudência, a educação literária completa o que falta à empeiría, ampliando as perspectivas de nossa meditação. Nem todo mundo esteve em uma guerra, mas, com a leitura da Ilíada, ao meditar no drama de Aquiles, podemos captar algo da experiência, típica de uma batalha, de ter, a cada momento, tudo a perder.
Muitos acolheram a nova educação dos sofistas, pagando caro por elas. Outros viam-na com maus olhos, como Aristófanes (por exemplo, nas Nuvens), que, em suas peças, se mostrava saudoso da paideia dos tempos de Maratona. Também Platão tornou-se seu crítico, censurando seu descarado aspecto econômico e seu descaso para com a verdade.
Os sofistas tinham alguma razão em serem cautelosos com a verdade. Em matemática, é fácil encontrar uma resposta correta, mas nos assuntos humanos, é uma tarefa quase impossível. Várias são as perspectivas em cada situação, vários os valores em jogo. Quando lemos com atenção o canto I da Ilíada, percebemos que, na querela entre Aquiles e Agamêmnon, ambos e nenhum deles têm razão: Agamêmnon exerceu, de modo tirânico, o seu poder contra Aquiles, mas Aquiles não soube compreender as inseguranças de Agamêmnon, trazendo, aos gregos, por causa dessa disputa, grandes perdas.
Sócrates, no entanto, não se contentava com a mera opinião; ele buscava, mesmo na complexidade das situações, princípios incontroversos. Essa também era a intenção de Platão, quando elaborou seu pensamento, no que também foi influenciado pelos pitagóricos. A meu ver, foi no contato com eles, em suas viagens à Itália, que ele formulou seu ideal pedagógico, mais profundo e exigente que o dos sofistas, que ele chamou de philosophía.
Para quem se dedica a à filosofia, o ideal da virtude política, de uma phrónesis que se resume aos assuntos humanos, não é o bastante. A sabedoria que busca o filósofo é uma visão ampla e profunda da totalidade, em seus aspectos gerais e primeiros princípios. A philosophía não se esquece dos assuntos humanos, mas pensa-os em uma perspectiva maior. É por isso que Platão considerava que ela seria uma educação superior mais útil à pólis que a sofística, pois, a partir da sabedoria, uma prudência mais elevada seria possível. Se conhecemos a verdade das coisas, se temos a perspectiva do Todo, sabemos melhor como agir. Com efeito, a philosophía platônica não se reduz a um ideal teorético, desligado da existência concreta, mas era também um modo de vida – uma existência segundo a verdade das coisas.
Isócrates, contemporâneo de Platão, fundou uma escola baseada nos ensinamentos dos sofistas, que ele sistematizou. Seu ideal pedagógico se tornou a base para toda educação retórica posterior, na Grécia e em Roma. Tratava-se, antes de tudo, uma educação para a prudência, na qual o estudante não se dedicava apenas à eloquência, mas também cultivava os estudos literários, a cultura geral, a deliberação e a virtude, etc.
Pouco tempo após Isócrates, Platão fundou sua Academia, que se também tornou um modelo, a inspiração de toda escola filosófica posterior – o Liceu, a Stoa, o Jardim de Epicuro. De um certo modo, os diálogos que Platão escreveu são uma refinada forma de propaganda e é por isso que nunca esgotam os assuntos, muitas vezes, terminando em aporia. É por isso também que neles, os sofistas, mesmo os melhores entre eles, são, em geral, vistos de maneira desfavorável. Quando ataca Górgias ou Protágoras, é Isócrates que Platão tem em mira.
Mas, para falar com Henri Marrou, no embate entre Isócrates e Platão, o primeiro foi o vencedor: a educação superior por excelência na Antiguidade foi a retórica; é que a filosofia era complexa e rigorosa demais para que fosse acolhida pela multidão.
Esses dois ideais pedagógicos correspondem aos dois modelos de eudaimonía explorados na Ética a Nicômaco por Aristóteles. A vida virtuosa dedicada à pólis corresponde ao ideal da phrónesis; a vida que se consuma na contemplação é fruto da philosophía. O caminho filosófico pode ser mais exigente e seus benefícios, menos aparentes; mas a felicidade que promete é superior. Aristóteles, no livro X da Ética, afirma que é a vida divina do homem, mais autossuficiente que outros modos de vida, recompensada com um prazer mais elevado, puro e duradouro.
A theoría da qual fala Aristóteles, alcançada após muitos anos de dedicação, é a contemplação, em assombro, do Todo – o vislumbre da ordem do mundo, no qual, para falar com Aryeh Kosman, o percebemos como um kósmos no qual todas as coisas realizam os fins determinados por suas essências. Mas é também a compreensão de que esse kósmos exige um fundamento, o Primeiro Motor, que não é conhecido em si, mas que alcançamos indiretamente, por meio da argumentação filosófica. Em outras palavras, para o filósofo aristotélico, o ápice da experiência humana é a visão do divino, contemplado no espelho do mundo.
Esses dois projetos, o de Isócrates e o de Platão, não eram, contudo, mutuamente excludentes. A escola retórica abria espaço para algum estudo da filosofia, como parte da cultura geral que o homem prudente deveria possuir. O filósofo, por sua vez, entendendo a retórica como forma de psicagogia – como a arte de conduzir as almas -, encontrava nela algum valor, desde que não descuidasse da verdade.
Roma absorve primeiro a educação retórica, mas, no séc. I a.C., vê crescer o interesse pela filosofia. Cícero, o maior dos oradores da Antiguidade, concebe um projeto de uma filosofia em latim, escrevendo importantes diálogos filosóficos; nisso é seguido por Sêneca e outros. Mas é só com Agostinho que a filosofia latina chegará a altura de Platão e Aristóteles.
Agostinho, no entanto, como Cícero, foi, primeiro, professor de retórica. Foi, aliás, com a leitura do Hortênsio de Cícero, que ele, aos dezoito anos, decidiu dedicar-se à filosofia. E, de fato, será a educação retórica aquela seguida pela maioria dos cristãos cultivados. Mesmo os Padres capadócios – Basílio, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa -, mais que a filosofia, haviam absorvido a paideia retórica. É com Justino e Orígenes que, lentamente, o ideal filosófico será absorvido pelo cristianismo, continuando a existir, por influência de Agostinho, durante a Idade Média, ainda que como um caminho de poucos, até se institucionalizar na universidade medieval.
Após o conturbado período das invasões bárbaras, no qual a educação se restringirá aos mosteiros, no renascimento carolíngeo, é sobretudo a retórica que será redescoberta. Nas escolas catedrais dos impérios carolíngeo e otoniano, nos séc. X e XI, se desenvolverá um ensino superior, baseado em Cícero, voltado às mores et litterae (os costumes e as Letras), cuja finalidade é a nobreza e a sabedoria nos assuntos humanos.
Os filósofos também aparecem, sempre poucos e isolados. À medida que as cidades vão renascendo, a philosophía vai se expandindo. Será cultivada, no séc. XII, na escola de Chartres e no mosteiro de S. Vítor. Com a ascensão das universidades, atingirá seu ápice em Tomás de Aquino e Boaventura, para os quais, ainda que serva da teologia, é ainda um caminho para a contemplação. Em Tomás, vemos unidos o modo de vida monástico, que ele aprendeu com os beneditinos antes de se tornar dominicano, a tradição platônica, absorvida através de Agostinho e Dionísio Areopagita e o aristotelismo então em ascensão.
Mas se é na universidade que o ideal da sabedoria atinge seu ápice, é também ali que começa a desaparecer. É que um saber teorético se presta a um ensino universitário, com seus professores e disciplinas, mas um modo de vida se aprende no convívio com um mestre. O antigo espírito da filosofia será redescoberto, no Renascimento, pelos florentinos: Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e outros tentam seguir novamente o caminho, tal como ensinado pelos platônicos. Mas os seus esforços não serão levados adiante. Na modernidade, a filosofia como modo de vida é deixada de lado e a busca por uma visão integrada do Todo, apesar do legado de Descartes e Spinoza, Leibniz, Hegel e outros, vai aos poucos desaparecendo.
Por outro lado, a educação para a prudência, que permanece ativa por toda a era medieval, ganha uma nova força quando, segundo a forma que lhe fixou Quintiliano, é adotada pelos jesuítas como a base de seu método de ensino. A educação humanista praticada por eles, baseada nos autores gregos e latinos, se torna um dos grandes modelos pedagógicos da Idade Moderna, sendo assimilada, de formas variadas, por diversas instituições de ensino até o início do século XX.
Com a revolução industrial, a educação técnica ganha força. O mundo novo que surge não é mais um mundo de homens prudentes, mas de especialistas. O humanismo, assim, vai dando o lugar à educação especializada nas universidades, até deixar de ser vivido nas próprias Humanidades, que se tornam Ciências Humanas.
Nos dias de hoje, a lacuna deixada pelo desaparecimento da phrónesis não deixa de ser percebida, mas busca-se supri-la com uma formação para a cidadania. Esta, no entanto, mais superficial, reduzindo-se, muitas vezes, a umas poucas dinâmicas e frases de efeito, não consegue ser mais do que uma imagem apagada do que outrora foi a paideia humanística.
Vivemos em um mundo de especialistas, isto é, pessoas que sabem muito sobre poucas coisas. O sábio é de tal modo ausente que nem ao menos acreditamos que sua existência seja possível. Dizemos que ele pertence a uma outra era, quando o conhecimento não havia ainda avançado o suficiente e era ainda possível a uma só pessoa dominar áreas diversas.
Mas essa é uma ilusão. Já na época de Platão não era possível a um só homem abarcar todo o saber. Não se trata de estudar tudo o que se há para conhecer, mas de buscar uma visão arquitetônica: compreender os princípios, as várias esferas da realidade e o lugar que ocupam na totalidade.
Graças ao especialista, a ciência e a tecnologia viveram grandes avanços. Devemos ser gratos a eles e compreender que são necessários. No entanto, sem a sabedoria, eles são incompletos. Hoje, o que temos são economistas que abordam os problemas como se fossem uma mera questão de economia, advogados que só pensam em leis e engenheiros que não mais entendem que não se codifica o humano em uma equação. Não mais captamos a polifonia do ser nem enxergamos as complexas relações que determinam todas as coisas.
De um certo modo, saber uma coisa é saber todas as outras. É por isso que a raiz de nossa crise atual é a falta de pessoas prudentes, indivíduos que saibam, de um modo humano, conduzir os assuntos da pólis, mas, principalmente, de sábios.