Visitas

– por Daniel Batista de Siqueira

Enerminda, recolhendo tudo de sobre a mesa do café da manhã, tagarelava a respeito de coisas que não interessavam a Douglas: vizinhos, familiares, a conduta dos filhos, graçolas, fuxicos. Douglas ruminava o último bocado do pão francês.

Da sala de estar, pipocavam estrupidos e vozes dos desenhos animados preferidos da menina. A mãe clamava e reclamava, dali mesmo onde estava, que a filha abaixasse o volume da tevê, que a filha não desparramasse o achocolatado no sofá, que a filha não sei mais o quê. Douglas apalmava as bochechas descarnadas, coçava o cotoco abaixo do joelho esquerdo, Enerminda punha mais café na xícara do marido, e então retomava:

— Ah, você não sabe! Dona Marta disse que conversou com o funcionário da empresa, lembra? Ele disse que não era com ele, que só obedecia ordens… Aí a Dona Marta… tadinha da Dona Marta, eu falei do sobrinho dela? Não, né? Está com aqueles caras lá da rua de trás, andando com eles. Dona Marta fica toda preocupada… ai, ai… Ah, então, o funcionário…

Douglas chupitava o café, puro, não suportava adoçantes. Espalhara diante de si contas, faturas, boletos, os custos eram exorbitantes. Enervava-o os 5% a mais na conta de água, os 7% a mais da conta de luz, os 11% a mais do telefone — era demais! O filho perdera o emprego, pelo qual o pai tanto se esforçara em conseguir. Um moleque. Ficou só dois anos. Não se humilhara até com aqueles filhos da puta do sindicato? O gordo e o barbudinho? Pra quê? E agora, mais despesa. Ao menos aquela lambisgóia não está mais com ele… Nhém, nhém, nhém… — putinha deslambida! O moleque perde o emprego, ela o larga. Bem feito, trouxa! Assim que pegasse dos direitos dele, ia procurar trabalho. Ah, ia! Que se vire! Trabalhei a vida toda pra sustentar marmanjo? Pensa que vai ficar só coçando o saco em casa, sem fazer nada? Não, não.

— Dona Marta disse que telefonou e tudo, disseram que isso era com a prefeitura; que não tinha como, e… Eita! Quem será?

Enerminda afastou-se para atender ao telefone.

Douglas refazia as contas, espremendo os botões da calculadora. A menina — em meio a záz!, pumba! e catapimbas! — gargalhava. Intencionou mandar que ela baixasse o volume da televisão, ouviu barulho de copo de vidro a quebrar-se, vinha lá de dentro da sala. Olhou na direção do quarto, onde a mulher estava — “Desça a avenida, vire na segunda rua: uma ladeira. Isso, isso…” —, ela não ouvira nada. Arre! Voltou a encarcar as teclas da calculadora, aguardando a mulher voltar e repor o café.

Guardada a papelada, Douglas já passava a vista no jornal esportivo. Os cães, os de dentro e os de fora do quintal, latiam. Foi só o tempo de Enerminda tirar o tapete, limpar o chão na sala, Douglas embicar a xícara, e ouviu-se um bater de palmas lá fora. É aqui?

— Chegaram, disse a mulher.

Douglas cuspiu xícara adentro todas as blasfêmias que lhe ocorreram. Tremendo, enquanto a mulher escapava para o quintal, rumo ao portão, ele perguntou quem era lá fora, mas a voz embargada saiu molenga e anêmica. Fez que ia levantar-se; desabou na cadeira, impotente.

— Dolguinha, Dolguinha, há quanto tempo!

— Olha, amor, chegaram.

Mal repetiu a notícia, logo Enerminda, voltando a atenção para a esposa do visitante e seus filhinhos, abandonou o esposo afogado nos abraços familiares do primo Ricardo.

Já todos sentados à mesa, o café da manhã estava reposto. Suzinete, enésima esposa de Ricardo, papeava com Enerminda. O primo Ricardo sempre com uma graça, um dito, uma historinha a cada assunto, um tapinha na mesa, outro no ombro do anfitrião, depois na mesa novamente. De seguida, duas das quatro crianças da visita voltavam da sala disputando o puxador arrancado de algum móvel da casa, e a menor delas aos prantos. Após repreensão genérica da mãe, voltaram para a sala. Em pouco, o som de estilhaços ao chão, ulos, ais e gritos. As mulheres correram para lá. Logo a mãe dos travessos voltava à copa, beliscando e arrastando um redemoinho de meninos. A copa encerrava blablablás incessantes, berreiro de criança, dichotes impróprios e o Douglas — pelo visto, um impassível; pelo não visto, um sismo.

De algum ponto mais distante da casa, ouviu-se rilhar uma dobradiça de porta, alguém bocejar, uns passos de pés descalços. A imagem do filho parado à entrada da copa por instantes, cumprimentando todos de modo relapso, apalpando os pães para comer, sentando-se sem dizer nada, fez o pai sentir o coração ruindo. Levou a mão à boca, arquejou.

— Cumprimenta a visita direito, moleque.

O jovem, mudo, parou de mastigar o pão ensebado de margarina, pareceu refletir, voltou a mastigar.

Enerminda, um tanto confusa, olhou para o marido, depois para o filho. Ia dizer algo, mas foi interrompida.

— Foi assim que a gente ensinou você? Cumprimenta a visita, como homem, moleque!

O jovem levantou a mão e gesticulou a todos os visitantes: — E aí.

Douglas prorrompeu em fúria: catou da faca, a maior que havia na mesa, e apontou para o filho.

— Desgraçado! Maldito! Vai me desrespeitar na frente da visita? Eu vou te matar agora; é agora, desgraçado, vagabundo!

O jovem levantou-se num pulo, boquiaberto, enquanto via o pai se pegar da muleta e dar um passo à frente com faca na mão. Mas não correu, ficou ali, regelado.

— Para com isso, homem. Deixa, deixa. É seu filho. — O primo Ricardo apaziguava.

O homem, no entanto, berrava mais e mais alto, brandia a faca violentamente, em largos golpes no ar. Suzinete gritava, as crianças gritavam, a menina na sala baixara o volume da tevê, ou desligara, talvez. Enerminda, paralisada.

— Vou te matar!

— Vamos embora, vamos embora…

— Vamos, vamos…

Ricardo, arrastando a esposa, que arrastava as crianças, foi em direção à saída.

Enerminda, perdida, sem saber se ia ou ficava, correu, com a cara no lugar da nuca, até o limiar da porta que dava para o quintal. Orientou os que fugiam, despediu-se, mandou os cães calarem, desculpou-se, declinou da proposta de chamar a polícia, uma vez mais desculpou-se e despediu-se. Vendo o casal sumir-se expedito rua acima, voltou coçando as mãos para o lugar do conflito. Achou ainda o filho grudado na parede e o marido tremendo a faca de cozinha.

— Já foram embora?

A mulher, assustada, anuiu balançando a cabeça.

Douglas baixou a faca mecanicamente e sentou-se de novo. Aproximou a xícara e a garrafa de café, serviu-se, abriu e voltou a ler o jornal esportivo.

Daniel Batista de Siqueira é escritor, nasceu em pernambucano e hoje vive em São Paulo.