Poetinha, o cantor das multidões: da lira ao violão, do violão à lira – por Jessé de Almeida Primo

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“Tomorrow and tomorrow and tomorrow”, diz Macbeth ao ouvir que sua esposa se matou; “Eurídice… Eurídice… Eurídice”, suspira Orfeu, tocando violão, não lira, pela sua amada. A doce aspereza das vibrantes deste caminha embalada pela música daquele, não em todos os acentos, mas nos principais, impulsionada pelo iambo de abertura (EuRÍdice/toMOrow). Mera coincidência? Duvido. Há mais: “When I do count the clock that tells the time”, diz o Bardo; “De tudo ao meu amor serei atento”, declara o poetinha. Dir-se-ia, com acerto, que o último exemplo é um decassílabo heroico, afinal os acentos que mais se destacam são o da cesura (aMOr) e o que encerra o verso (aTENTO); depois, o segundo (TUdo). Porém há outros acentuados que se tornam mais perceptíveis numa declamação mais lenta, a que se faz acompanhar dos movimentos métricos dos dedos, o quarto (MEU) e o oitavo (seREI), aos quais o professor Said Ali chamaria de semifortes. Tem-se, então, cinco iambos (átono seguido de tônico). Ou, por outra, um pentâmetro iâmbico. Há outra sombra inglesa, dessa vez em declaração explícita, deliberada, que é o do poema infantil, da série que compõe a Arca de Noé: “O Leão” (Leão! Leão! Leão!/Rugindo como o trovão). Abaixo do título e entre parênteses lemos: “Inspirado em William Blake” (Tyger! Tyger! burning bright/in the forest at night)

Acrescente-se a isso que em 1938, com a bolsa do Conselho Britânico, Vinícius de Moraes parte para a Inglaterra com objetivo de estudar língua e literatura inglesas em Oxford, no Magdalen College, onde também estudou Oscar Wilde. Como exercício, traduziu alguns sonetos de Shakespeare e, dessa maneira, nada mais natural que os ritmos da poesia inglesa, uma vez enraizados, participem da sua própria poesia.

Vinícius de Moraes, graças ao incentivo de Otávio de Faria, publica seu primeiro livro, O caminho para distância, em 1933, composto de poemas de dicção bíblico-salmídica, de intensa carga mística, que abandonaria depois (No tempo em que o Espírito habitava a terra/ e em que os homens sentiam na carne a beleza da arte/ eu ainda não tinha aparecido). Não foi, contudo, pela poesia que ele se apresentou ao público. Em 1928 compõe, em parceria com os irmãos Tapajós, o delicioso fox-trot “Loura ou morena” (Se por uma acaaso o amor me agarraar/quero uma looura pra namoraar), que se torna sucesso. É preciso reconhecer que antes disso Vinícius de Moraes já tinha envolvimento com a poesia, chegando até mesmo, na adolescência, a roubar um poema ao pai, seu Clodoaldo, para oferecê-lo a uma mulher que se tornaria sua namorada (…A mim me deste/o primeiro verso à namorada. Furtei-o/ de entre teus papéis….)

Voltemos a Orfeu da Conceição, que é de 1954. Enquanto a personagem título, no primeiro ato, beija Eurídice calorosamente entoa-lhe o inspiradíssimo: “Lágrimas do meu imenso amor, lágrimas/ tão puras… sobre a tua pele escura/ lembram estrelas de noite…” Só um grande poeta para propor esses símiles tão poderosos, tão exatos. Por outro lado, antes de encontrá-la, ele profere seu nome três vezes, dessa vez em tom mais angustiado (Eurídice! Eurídice! Eurídice!), sem nada que lembre a serenidade sombria de tomorrow…, e em seguida começa a tocar o violão e ouvimos a letra de um samba que começa a compor: “Um nome de mulher/um nome só e nada mais…/ E um homem que se preza/ em prantos se desfaz…”  Banal? Talvez. Antes de fazer algum juízo, leiamos o que Bruno Tolentino expôs a respeito do poetinha: “Era um grande poeta e um excelente letrista. Primeiro foi uma coisa, depois foi ser a outra. Estúpido seria misturar os dois níveis, as duas ‘intenções’ que teve…” (A balada do cárcere, p. 129). Dito isso, não será difícil de perceber que Vinícius diminui drasticamente a densidade lírica, a ponto de fazê-la desaparecer, para que o “texto” não se sobressaia ao samba que o embala. O curioso é que justamente na passagem das letras, se o leitor desconhece a canção que as veste, a atenção tem de ser redobrada, porque só a melodia é que lhes dá visibilidade. A “facilidade” escorregadia de “um nome e nada mais” que se comunica rítmica e redundantemente com “em prantos se desfaz”, formando um conjunto quase impalpável como as letras de canções, demonstra discernimento e, dessa maneira, corrobora outra coisa que Tolentino diz: “Nenhum texto musical, erudito ou popular, precisa realmente de um grande texto verbal para comover ninguém. Ao contrário, o mais das vezes o poeta letrista pode atrapalhar.” (p. 128).

Talvez seja que a simples emoção impele ao canto e ao traduzir-se nele necessariamente simplifica seus termos, limita-os ao entendimento imediato; a emoção pensada e transformada em linguagem, por sua vez, compele à operação de poesia, bem mais complexa, àquela que por sua própria natureza vai mais longe, a um tempo mais ao alto e mais ao fundo, e resulta no poema, esse marco inamovível na trajetória espiritual de um povo.[1]

Não preciso dizer que essas declarações causaram escândalo. Acontece, porém, que o trecho “ao traduzir-se nele [no canto] necessariamente simplifica seus termos” dito por Tolentino está em perfeito acordo com o que Chico Buarque respondeu em agosto de 1978 a um deslumbrado entrevistador da revista Veja que lhe disse que suas letras são verdadeira poesia, resposta essa que vai parafraseada, por eu não dispor da revista em mãos: “Quando vejo minhas letras num jornal, aquilo me parece uma estampa obscena. Elas não têm nada de poesia. Eu procuro ao máximo desliteraturizar o que escrevo para que se conforme à melodia.”

O curioso, e certo por também atuar na música, é que Vinícius é um dos casos mais didáticos nessa discussão, ele tem um senso muito apurado a respeito da diferença entre uma coisa e outra, não porque em algum momento apontou essa diferença, e sim por deixar clara qual é a intenção: se vai escrever letra, o procedimento dele é um; se poesia, outro, adensando ainda mais o registro desta e banalizando, por assim dizer, o daquela para que se conforme à melodia. Isso também é perceptível na peça Orfeu, cuja poesia dramática é mais cheia de camadas e as partes cantadas são despidas delas.

Orfeu da Conceição, uma tragédia interpolada com música, é a perfeita ilustração desse discernimento e, por isso, desempenha uma função pedagógica de grande importância. Tem algo de shakespeareano, em que o solene e o grotesco, o prosaico e o poético, a lírica e a canção popular se misturam sem nenhum pudor, melhor dizendo, dividem o mesmo espaço na trama. Lembremos, por exemplo, que nas peças históricas, as tramas histórico-palaciais de Henrique V ocorrem paralelamente com as intrigas domésticas das empregadinhas, das prostitutas, dos bêbados e dos bufões. Por sinal, era um elemento em Shakespeare que irritava o narizinho fininho dos franceses, mais acostumados com o geometrismo raciniano, que se sentiam escandalizados com a falta de pureza de tais peças. Faço uso do termo discernimento para dizer que a presença de gêneros e registros tão diversos não é prova a favor da quebra das hierarquias, pelo contrário, é forte argumento em favor delas.


[1] p. 10, ed. Topbooks, 1996; p.p.29-30, Record, 2016.