O balde transborda, derramando água nos degraus. “Eu carrego pra você”. Ele sobe a escada sem deixar cair uma gota. Quando a visitava, parava um instante a dor na palma das mãos dela; ele ia embora, e Verônica já tinha se acostumado um pouco mais com aquela dor.
Sangue e água, da chaga aberta de Cristo; ela pedia ajoelhada na capela um pouco de toda aquela dor — sabia que ainda lhe faltava alguma lembrança contínua, ferida aberta, vínculo perpétuo. Pedia que fosse ali mesmo, no coração, a maior das dores: que sentisse na carne da aurora ao pôr do sol. Ela traria no peito a mão e, quando estivesse trabalhando, ouvindo-o saberia de fato o quanto os dois juntos sofreram. Mas da pequena Úrsula, Jesus não escutaria murmúrios. Os gemidos dolorosos da cela não seriam ouvidos de dia. Mas ele ainda não o faria, não era a hora. Somente quando Verônica se recordasse da última palavra que escutara do pai. Não se referia àquela balbuciada à beira do leito em que passou doente, quando cada olhar de seu pai parecia o último que ela veria. Naqueles dias, permaneceu terrivelmente debilitada, sendo resgatada da agonia só quando lhe falavam sobre vida religiosa.
Seria agraciada apenas quando se lembrasse do adeus à porta do convento. Da despedida, só conservava o melancólico sorriso do pai, sua anuência forçada e duas lágrimas que, assim que brotaram, ele enxugou do rosto.
Abriu os olhos, a luz vermelha tremeluzia na lamparina acima do altar, a capela conservava o cheiro de incenso. Ela acordou a aurora. Fez o sinal da cruz, e levantou num longo suspiro.
Os vinte anos de claustro pesavam docemente sobre ela; os carregava a cada passo, contando as pedrinhas do caminho em direção às laudes, e calculando a duração daquela vigília, como fazia a cada manhã. Desde que tomou o hábito, aos dezessete anos, não dormiu mais.
No começo, as paredes do mosteiro causavam náusea, a aprisionavam num torpor constante, e quando soavam as horas a cabeça dela queria explodir. Tinha certeza que aquela era a sua vocação, tentava explicar ao corpo e ele não entendia de jeito nenhum, queria correr dali, voltar para casa. O tempo a absolveu, e logo o fervor voltou ao coração, o corpo e a alma fizeram as pazes. “Voltar? Meu Deus. Casa?”, ela ria lembrando da jovem Verônica, que apesar das tentações do início, era fogo, ardente e inestinguível. Como são frágeis as vontades de moça. Pensava que se na adolescência não tivesse ido tantas vezes àqueles bailes provincianos, não sofreria nos primeiros anos de vida religiosa. Não acompanhava o pai a contragosto, mas chegando lá sentava num canto, segurava o copo sem jamais o levar à boca, ouvindo nas músicas e danças do mundo o chamado de Deus.
Uma brisa fria e suave a envolveu. Ela media a ira ou o amor do Altíssimo pela força do vento, e o concerto do Reino pelo canto dos pássaros.
Na primeira visita dele, algumas plantas foram destruídas pelas rajadas de vento no jardim, onde ela permaneceu imóvel no chão, de pernas cruzadas, implorando a vinda do Menino. Tinha três anos de idade. Ouviu primeiro um riso, tão puro, tão alegre, que a fez chorar. Um pouco depois, ela viu os pés descalços, o cabelo castanho bem claro, em que se refletia a luz do sol iluminando todas as flores e secando a fonte de água. E todos os vasos se partiram ao meio quando o Menino foi ao encontro de Verônica caminhando nas pedras. Pediu que ela não se levantasse, trazia um lírio e pôs atrás da orelha dela; fazendo cócegas, percorria de leve seu rosto com a ponta dos dedinhos macios. “Virá ao jardim todos os dias?”, ela perguntava. “Nos dias em que este teu fogo não arder até os ossos”, ele ria.
As irmãs a esperavam sonolentas, entoaram o Ofício e Verônica fez as leituras. Tinha menos paciência com as tíbias do que tinha para lidar com o maligno.
Chegou na cela, numa noite, e sentiu um cheiro podre, viu as paredes pintadas de sangue, o nome dela escrito em traços doentios. Mal pôde distinguir a figura horrível. A um canto, agachada de costas, parecia engolir com muita força um pedaço de carne bem maior do que a garganta podia suportar. Nua, os chifres eram dois pequenos tocos de vela negra. Da pele pardacenta, que tinha a mesma textura da pele de um sapo, pelo qual nós temos repulsa e no qual nunca pensaríamos em encostar, exalava um cheiro de enxofre e fezes, e a couraça refletia a luz da vela branca, que a um canto cintilava fazendo pulsar o sangue da parede: “Úrsula, a prostituta”. Num eflúvio satânico, espalhava ao mundo todo a intenção obscura e a ofensa explícita. Sujava os pés de Verônica, que não saiu dali; olhou o corredor e não viu ninguém. Com toda a calma, familiarizada com as visitas do inferno que aconteciam algumas vezes por semana, ela trancou a porta. Tirou do bolso o rosário, nos lábios a saudação angélica. Andou em passos firmes, agarrou o demônio pelas costas, enforcando-o e repetindo: “Não terás as almas que viestes buscar!”.
O horrível enviado de Lúcifer, bem mais forte e corpulento, a jogou no chão e chutou a cabeça dela. A santa desmaiou por uns momentos, e pôde ver o rosto daquele demônio, olhos de fogo; o sorriso zombeteiro, através do qual se via a morte; os dentes podres e a expressão desfigurada de quem sente prazer em ver o sofrimento. Mas Verônica levanta, devolve o chute, e dessa vez consegue ferir o representante do inferno. “Dê-me o diário”, ele pedia. Nem que me mate terás apagado uma só linha do que a Virgem me ditou, ela gritava, e nessa hora a Mãe de Deus o expulsava, os anjos deixavam a cela irretocável, as palmas das mãos e a coroa de espinhos eram dores lancinantes, mas o amor de mãe vencia todas as dores.
O que me prepara, o que verei, meu Senhor? A água lava a escada e as irmãs continuam o trabalho sem notar a presença dele. Verônica foi à capela, tremia de frio, a última palavra do pai veio com os os feixes no peito: filha.
Marc Enrique Bernardo é escritor ficcional e está concluindo sua primeira coletânea de contos.