Vanitas vanitatum

– por Eliza Penna

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Deparei-me certo dia com uma situação constrangedora. Encontrei alguns de meus escritos antigos parados na gaveta do escritório, aguardando revisão antes de serem encaminhados para publicação. Confiei-os assim que pude a um amigo de longa data e escritor de ocasião, sem renome, mas que conhecia a língua portuguesa o suficiente para aparar meus deslizes.

Dois meses haviam se passado quando os textos retornaram às minhas mãos. Ansioso em razão da demora, abri os envelopes lacrados, retirei os originais e constatei, para minha desgraça, que as páginas estavam corrigidas. Detalhadamente corrigidas com caneta vermelha.

Esperava, confesso, que a correção se limitasse ao ajuste de duas ou três vírgulas, à substituição de uma palavra por um sinônimo ou à retirada de alguns verbos; enfim, feriu-me o safado. O episódio remeteu-me à primeira vez que Mathias Aires cruzou meu caminho com suas Reflexões sobre a vaidade dos homens.

Andava pelas ruas do centro a esmo, em horário de almoço, quando decidi entrar num sebo para checar as novidades. O exemplar amarelado de Reflexões estava caído no corredor destinado às humanidades. Marcou-me o fato de estar no chão, pois naquela época andava eu sempre a olhar para baixo a conferir o estado dos sapatos e pensar em como sair da lama em que estava.

Ainda era eu mero estudante do curso de Direito, prestes a me formar e sem a menor ideia do que faria munido de um arcabouço de legislação revogada e meia dúzia de jargões em desuso. Foi então que li a frase que inaugura o prólogo ao leitor de Mathias Aires: Eu que disse mal das vaidades, vim a cair na de ser autor.

Era meu destino ditado por uma página devorada pelas traças. Dirigi-me ao caixa com os únicos dez reais que ocupavam meu bolso à época, cujo destino teria sido uma coxinha no bar da esquina, e levei o exemplar surrado para casa.

Tomado pela ideia de ser autor, passei a escrever como nunca, em termos de volume, mas demorou a formar-se o estilo. Escrevia críticas literárias, ensaios, poemas e empreendia algumas tentativas de contos. Nada publicado. Levou cerca de três anos para que meu primeiro texto fosse aceito pela desconhecida revista de um conhecido. Minha crônica de cinco parágrafos figurava ao lado de uma charge da Mafalda, que me ofuscou com seu brilho.

A revista teve apenas três edições, mas foi o suficiente para que eu me entendesse como um autor publicado, embora não lido, e — por que não? — a um passo do sucesso. O entendimento é a parte mais lisonjeira que temos em nós, do que se segue que nem sempre acompanha a razão e a justiça, diria Mathias Aires que, a essa altura, caminhava comigo debaixo do braço.

Nada mais do que escrevi foi publicado nos dois anos seguintes. Atribuo meu insucesso ao fato de trabalhar num escritório acinzentado para pagar as contas. Ali inverti a ordem dos objetivos, era o sucesso que deveria esperar pela minha estabilidade financeira. E Mathias a zombar de minha resolução dizia-me que é a vaidade o que move os passos daqueles que são corrompidos: para onde quer que nos encaminhemos, é a vaidade que nos leva… Mudamos de lugar, mas não mudamos de mundo.

Aquele livrinho era uma coisa peculiar. Decidi investigar um pouco sobre a vida de Mathias Aires e descobri que sua obra foi fruto de um momento de grande introspecção. Sucede que suas Reflexões podem ter sido o resultado de uma sequência de infortúnios que se passaram por volta de 1750, como a destituição do cargo de Provedor da Casa da Moeda em Portugal, uma das medidas tomadas pelo Marques de Pombal — o mesmo que expulsou os jesuítas do Brasil e expropriou as terras da Igreja Católica na Colônia —, cujo resultado foi colocar Mathias em delicada situação financeira. Somou-se a isso o fato de ele ter perdido mais de uma contenda judiciosa contra sua irmã Teresa Margarida, evolvendo o direito à herança. Teresa, Teresa… A primeira romancista brasileira.

Não tive irmãos. Herdei tudo sozinho, embora o tudo, na prática, não tenha feito diferença. Mas entendia de aperto financeiro e, mesmo não sendo a introspecção meu ponto forte, solidarizei-me.

Lia Mathias Aires para aplacar minha solidão e resistir à banalidade dos meus dias, também porque era preferível sua companhia à do Código Civil. Apesar de, à época, não conseguir entender muito do que lia (e continuar sem entender), há passagens que sempre me arrancam sorrisos, como aquela em que o autor denuncia a vaidade até de quem escolhe a vida no claustro.

Talvez o maior azar de Mathias Aires tenha sido o de ter caído no mórbido ostracismo destinado a outros tantos escritores brasileiros. São raras as referências mais robustas à sua pessoa.

Convenci-me de que a razão da escassez bibliográfica está relacionada ao tema. Eleger a vaidade como centro de reflexão gera mal-estar, em quem lê e em quem escreve. Soberba, orgulho, amor-próprio, chame como quiser, a maldita é uma fenda no espírito pela qual se pode tocar no fundo das próprias misérias apenas para sair de lá implorando por misericórdia.

Talvez o meu maior azar tenha sido figurar ao lado de Mafalda. Quanto aos meus textos corrigidos, não foram aceitos para publicação e voltaram à gaveta de onde nunca deveriam ter saído. Diria Mathias que a confissão da culpa costuma fazer menor a pena.

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Eliza Sophia Penna é mestre em Filosofia pela PUC/SP, pesquisadora do pensamento de Matias Aires. Mãe do João e da Thereza