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Eis que coube a mim, faixa branca com um mísero grau na ponteira; um creonte, capaz de mudar de academia por três vezes em apenas um ano; um passador incapaz de escapar de uma guarda aranha, a imerecida honra de contar sobre a maior e mais longa luta da história. Um duelo de honra, entre homens de diferentes gerações, raças, classes sociais, formações e crenças; um combate à morte, que os tornou imortais.
Os antecedentes
Não me deterei nos ínfimos e íntimos detalhes da desavença entre os dois homens, Hélio Gracie, de 42 anos, aposentado dos rings havia três, proprietário de uma badalada academia de Jiu-Jitsu em Copacabana e maior ídolo do esporte nacional, e Waldemar Santana, 22 anos, forte como um garrote de invernada, seu antigo funcionário, que ali aprendeu a lutar e ombreou, na condição de sparring, com os maiores lutadores daquela escola.
Hélio e Waldemar repetiram o cansado tema descrito em todas as artes e em tantos capítulos comoventes da história: o conflito entre mestre e aprendiz. Alguns dizem que a malquerença começou porque Waldemar esqueceu torneiras abertas e foi esculachado na manhã seguinte; outros culpam a luta contra Biriba, vencida por Waldemar, que havia sido proibido, por Hélio, de participar.
Os supostos motivos, hoje irrelevantes, são delicados tons de uma mesma e universal melodia: o mestre impondo a Lei e o discípulo sonhando-se liberto. De imitador a rival, de fã a inimigo, pode ter certeza de que em algum lugar do mundo, exatamente nesse momento, há um Jesse James humilhando um Robert Ford e um Robert Ford se preparando para atirar na cabeça de seu Jesse James. Em toda parte, onde quer que algo esteja sendo ensinado, há um discípulo querendo superar seu mestre, e um mestre querendo aplicar uma derradeira lição.
O espaço
O choque se deu no ginásio da Associação Cristã de Moços (sim, na YMCA!), na Lapa. A enorme procura pelo combate recomendaria um local mais amplo, como o Maracanãzinho, que à época comportava 40 mil pessoas. Porém, as regras de “vale tudo”, ainda um pouco escandalosas para a época, sugeriam um local discreto. No entanto, uma enorme quantidade de pessoas compareceu convertendo o local em uma genuína gaiola de rinha. Não se sabe exatamente o número de espectadores. As modestas estimativas falam em 4 mil, as exageradas e provavelmente mentirosas, em 10 mil. O fato é que a maior parte da malta torcia por Hélio, e um princípio de tumulto foi controlado com grande dificuldade pela Polícia Militar.
A matéria
Waldemar Santana tinha 22 anos no fatídico dia, ou 24 ou ainda 25. Pelas minhas contas, estava muito perto de completar 26 anos. Tinha, à época, 70 kgs, ou 801, ou 100. Fontes da internet falam em 94 kg. Em uma memorável entrevista, o Grande Mestre Crézio Chaves2diz que Waldemar tinha 70, depois diz que tinha entre 90 e 100 kgs. Era negro e tido por alguns, que desconhecem, ou fingem desconhecer, ícones como Ademar Ferreira da Silva e Leônidas da Silva, como o primeiro herói negro do esporte nacional3.
Já Hélio Gracie tinha 42 anos, ou 454 ou mais de 505. Segundo nossos cálculos, o mestre estava próximo de completar 43 anos e estava aposentado havia três anos de combates profissionais, como dito. Seu peso era de 64 kgs, segundo Arthur Virgílio, 67, ou 80, segundo Luis Nassif6. Hélio era então o grande ídolo do nosso esporte, que ainda não tinha Pelé, nem Éder Jofre, nem Maria Esther Bueno.
Não há notícia de pesagem oficial, já que a luta era de peso livre. Porém, a questão do peso e da idade são fundamentais na memória do confronto. Quanto mais velho e fraco fosse Hélio, mais forte sua arte. Quanto mais jovem e forte fosse Waldemar, tanto mais forte seria o jiu-jitsu, que, embora fosse praticado pelos dois, parecia pertencer unicamente ao primeiro.
O tempo
Os heróis se bateram em 24 de maio de 1955. O certo é que nunca, em nenhum tempo, desde que o ser humano aperfeiçoou o hábito de trocar sopapos, sudengas e pescoções, nunca, em tempo algum, desde que Caim esmagou o crânio de Abel ou que Rômulo partiu Remo ao meio por conta de uma brincadeira, ou que Santo Nicolau meteu um bofete no herege santarrão Ário (no tempo em que as disputas teológicas ocorriam nas Igrejas e não nos fóruns), nunca uma luta corporal durou 3 horas e 45 minutos (e acredito que nenhuma outra jamais durará).
Se você, leitor, lutou um por um round de 3 minutos, ou rolou por 5 minutos em um tatame de Jiu-jitsu, sabe exatamente como isso é impossível. Se você nunca lutou, imagine uma maratona, duas horas correndo a pé, e saiba que duas horas tentando se defender de apanhar, e tentando bater, são muito mais cansativas. Sim, correr uma maratona, com enormes canelas quenianas, em ruas planas, cansa menos que combater. Porém, a luta entre Hélio e Waldemar não durou o mesmo que uma maratona, mas sim o mesmo que duas!
Tenho certeza de que dentro de alguns séculos dirão que este combate é uma lenda, que seus personagens foram inventados, ou fazem parte do folclore brasileiro. Dirão ainda que os relógios eram diferentes e que uma hora correspondia a 10 minutos. E os que defenderem sua historicidade serão motivo de chacota; talvez até se reúnam em locais específicos para tratar do assunto. Serão, então, muito ridículos os que ousarem tratar dessa luta como um fato.
O confronto
A cada ano morrem mais testemunhas do épico embate; 69 anos não são 69 dias, diria minha sogra e com a razão de quem não era ainda nascida em 1955. As crianças ali presentes contam hoje mais de 80 anos, os mais maduros, 100. Mas o fato é que, salvo alguma eventual senilidade, na lembrança de quase todos eles Waldemar fez, desde o início, valer sua superioridade física. Hélio teria apenas se defendido, bravamente, e, a custa de muita técnica, segurado o adversário mais jovem, mais pesado e impetuoso, até o desfecho apoteótico: uma bicuda, que pôs fim à maior luta da história da “arte suave”.
As fotografias do velho professor com o rosto deformado foram suficientes para fazer banir a luta livre do Distrito Federal; talvez esperassem com isso que o chute em seu rosto fosse o último chute, no último rosto, do último herói.
Uma das testemunhas do combate (que não sei se realmente estava no ginásio), das testemunhas que nunca morrem, foi o gigante Nelson Rodrigues, que, a propósito do chutão, escreveu: “O que houve ontem na ACM foi uma forra ancestral do negro sobre o branco…. E eu senti como se o golpe que liquidou Hélio Gracie fosse desferido pelo pé de um S. Benedito”8.
Como Nelson, muitos que ali estavam (e os que disseram que estavam) asseguraram que Waldemar venceu de maneira convincente; muitos, ainda como Nelson, comemoram loucamente, posto que parecia, ao povão, muito incômoda a invencibilidade dos Gracie9 e muito auspicioso que fosse quebrada por um homem comum. Era a catarse do desencantamento do mundo, da iconoclastia, era a pedestre substituição do mágico pelo possível.
No entanto, aquela luta cruenta tinha um espectador especial, um jovem, um aluno de Hélio, portanto seu torcedor, o hoje Grande Mestre Crézio Chaves. Ele, e apenas ele, viu uma luta completamente diferente. Viu um Hélio Gracie castigando Waldemar, punindo, enfim, o pupilo rebelde. Com cuidado para não o deixar apagar, Hélio batia e rebatia, espancava pacientemente, até que que o cansaço fez diminuir o ritmo e deu espaço à virada de Waldemar. Hélio, segundo viu nosso vedor, não finalizou porque não quis e acabou pagando o preço dos seus 42, 45 ou 50 anos.
Como cristãos e um pouco gregos, sabemos que a verdade pode estar sozinha contra a massa de iludidos. O Cristo no deserto, o Sócrates na Ágora, os santos ermitões do deserto, Höederlin na torre; a verdade é tão solitária quanto pura, rara e detestada pelo mundo, e por ele rejeitada. Por este motivo abraçarei aqui a versão de Crézio, o homem que, na “posição platônica”, vê seus contemporâneos enterrados na ilusão, na mentira e no sentimentalismo. Reconstruir a verdade é buscar, nas frestas e curvas do passado, a solitária e esquecida verdade. Enfim, que bela surra aplicou Hélio Gracie, que só pôde ser vencido pelo martelo do tempo esmagando seu próprio corpo!
Aos que nos leiam no futuro
E vocês, que nos leem no futuro, saibam que narrei a história com as informações que tinha e algumas poucas que não tinha. Saibam que não assisti ao combate e que não era nascido quando tais coisas aconteceram, mas que conheci alguém que conheceu alguém que esteve lá e que todos nós existimos em alguma época e que a luta realmente aconteceu. Saibam todos, ainda, que naqueles tempos, matéria, tempo e espaço se curvavam aos homens e se fundiam em uma outra e diferente substância, a que os antigos chamavam “honra”.
Imagino que talvez seja difícil, no futuro, e até em meus dias, entender o sandio sentimento que conduziu Waldemar e Hélio ao ring; mas vou tentar descrevê-lo à minha maneira, pois dele tive ainda notícia. Honra é uma “cascagrossice”, uma marra cega, um sangue no olho, é um trincar de dentes pra não soltar um gemido.
Não, não procure nos dicionários, enciclopédias ou alfarrábios, esta palavra terá sido banida dos livros, como da vida. Estará no escuro canto das coisas para sempre esquecidas, como a liberdade e o sonho; a arte e a mentira; o riso e o combate.
1 https://jornalggn.com.br/cronica-de-domingo/595654/
2 https://www.youtube.com/watch?v=LL4SxA2wgLo
3 https://www.portaldovaletudo.com.br/waldemar-santana-o-leopardo-negro/
4 Segundo Arthur Virgílio, em publicação em seu instagram, em 24 de maio de 2024.
5 https://www.youtube.com/watch?v=LL4SxA2wgLo
6 https://jornalggn.com.br/cronica-de-domingo/595654/
8 https://www.portaldovaletudo.com.br/helio-gracie-x-waldemar-santana-68-anos-da-luta-mais-longa-da-historia/
9 Tema a que Nelson retornaria em “A legenda Gracie”, publicado no “Última Hora” em outubro do mesmo 1955