-Por Jessé de Almeida Primo
A morte de ninguém não prova nada;
é tudo que, decerto, a todos vem,
é a coisa mais secreta e anunciada.
Não prova nada, a morte de ninguém.Seja ao seio da mãe, ou ‘pós os cem,
a morte de ninguém, teorizada,
nada pode provar. E se ninguém
morresse, isso não provaria nada.E entanto as nossas vidas, misturadas,
uma vez concluídas (mal ou bem)
serão prova bastante de que cadasegundo tem eternidade e tem
por Igor Barbosa
descanso no correr; e ainda em cada
segundo morre (e nada prova) alguém.
Um dos motores, ou senão o único motor, que põe o “mundo como ideia” em movimento, segundo Bruno Tolentino, é o medo da morte. Muito do progresso, muitas das inovações ou articulações para dominar nações não têm exatamente como motivação dominar a natureza ou controlar o destino dos povos, mas sim colocar a si mesmo como um deus e, dessa forma, o objetivo não é desafiar o Deus de Israel propriamente dito, e sim, uma vez sucedâneo de Deus, tornar-se um novo criador e, na condição de criador, tirar a morte do meio do caminho, triunfar sobre ela.
Pensem, porém, na quantidade e grau de elasticidade, de giro linguístico que o simples desejo de triunfar sobre a morte exige de alguém. Recorrendo aqui a mais uma imagem tolentiniana, ou que Tolentino frequentemente usava, padecer do mal do “conceito”, de desfigurar o objeto com abstrações, com jogos mentais na esperança de torná-lo outra coisa.
A morte, como todos já sabem, é incontornável. Como diria a sabedoria popular, para morrer basta estar vivo. É um desafio à inteligência humana, a todos os seus artifícios e já está anunciada no pó de onde viemos. O aspecto reiterativo deste soneto de Igor Barbosa, um verdadeiro triunfo rítmico-sonoro na poesia do pensamento, é uma ilustração perfeita dessa inexorabilidade. O primeiro verso reaparece com outra disposição sintática no quarto, retorna de forma estendida nos segundo e terceiro versos do segundo quarteto e o verso que encerra o poema ecoa sonoramente o primeiro e quarto versos, e essas reiterações de versos e sonoras remetem ao poema “One Art”, de Elisabeth Bishop, do qual retoma, ainda que se utilizando de forma fixa diversa (uma vez que o de Bishop é uma vilanela), um tipo de sequência em que a reiteração se articula com a intensidade crescente verso a verso até encerrar-se, como no poema da poetiza norte-americana (Though it may look like (write it!) like disaster.), com um verso constituído de uma locução parentética: “segundo morre (e nada prova) alguém.”
Há também outra ordem de comunicação entre esses dois poemas, enquanto no poema de Bishop essa inevitabilidade se mostra, além das reiterações, numa espécie de ironia, numa brincadeira que uma pessoa triste faz com algo diante do qual é impotente, um recurso jocoso para amenizar o sentimento de perda, valendo-se de um jogo de raciocínio, num verdadeiro enredamento do conceito,
The art of loosing isn’t hard to master;
so many seem filled with the intent
to be lost that their loss is not disaster.
no de Igor Barbosa, por seu turno, mas sem fincar pé numa oposição — até porque a vilanela é uma dramatização, ao passo que o soneto é uma exposição lírica que traduz de outra maneira esse drama — há uma recusa a essa intermediação conceitual, é uma afirmação de que nada pode ser feito, de que é algo tão evidente que dispensa provas e faz pouco de argumentos:
A morte de ninguém não prova nada;
é tudo que, decerto, a todos vem,
é a coisa mais secreta e anunciada.
Não prova nada, a morte de ninguém.
Como disse, não se trata de uma oposição, trata-se antes de tudo de ferramentas diferentes para se expressar algo. Talvez seja o caso de dizer que é uma oposição aparente, já que em um há alguém que tenta se convencer de algo e noutro de alguém, posto que desconcertado, já convencido desse algo.