As letras do Brasil estão doentes in extremis. A maior prova da decadência da intelectualidade brasileira é o fato de a última grande controvérsia literária datar de 1994, sem nenhum fato novo no ínterim. Trata-se da disputa entre os poetas Bruno Tolentino (1940-2007) e Augusto de Campos (1931-). O objeto da controvérsia foi uma tradução do poema Praise for an Urn, do neoformalista americano Hart Crane (1899-1932).
Tolentino levanta-se como figura paradoxal das letras pátrias. De origem aristocrática, desapareceu do seu amado Rio de Janeiro nos anos 60 por razões pouco claras. Ressurgiu na Europa como homem bem conectado. Sua vida era dúplice: littérateur renomado de dia e atacadista de haxixe pela noite. Beckett, Starobinski, Ungaretti e Bonnefoy tinham-no como amigo próximo. Seu tráfico de entorpecentes lhe fez passar anos nas implacáveis prisões inglesas. Era homossexual assumido e foi o primeiro intelectual brasileiro a admitir ter AIDS, doença que ceifou sua vida cedo. Não obstante, teve inúmeros filhos espalhados pelo mundo. Para mais espantar, era homem da direita e chegou a ser articulador do Opus Dei.
Ao retornar à pátria, foi grande a sua consternação ao descobrir o estado das letras. Viu-se diante da difusão de pragas nas letras brasileiras. O concretismo estava a todo o vapor e o infame Caetano Veloso começava a ser tratado como poeta sério. A sofística acadêmica impusera o método como substituto do conhecimento. A poesia cedia lugar a estéreis poéticas.
A versão de Praise for an Urn pelo badalado Augusto de Campos levou o egresso de Albion ao seu nec plus ultra. A elegia do poète maudit americano foi transformada em poema parnasiano fora de época. Tolentino sentiu-se ofendido pela agressão poética. Crane e seu defensor tiveram muito em comum. Ambos foram semelhantes nas vidas ambíguas e mortes precoces. Ao dano da forma seguiu-se a destruição do conteúdo. O resultado foi grotesco ao ponto de mudar por completo o sentido original.
O suplemento literário do Estado de São Paulo viu a demolição mais brutal da história da poesia brasileira. A tradução da estrofe final como feita por Campos foi exposta a ridículo. O original é claro o suficiente:
Scatter these well-meant idioms
Into the smoky spring that fills
The suburbs, where they will be lost.
They are to trophies of the sun.
O monstro engendrado pelo bandeirante foi:
Espalha a cinza destes versos
Pelos subúrbios, no arrebol
Onde se perderão, dispersos.
Estes não são troféus do sol.
A elipse quanto às cinzas foi quebrada, e o recurso poético obliterado. Os well-meant idioms, no sentido de fórmulas litúrgicas bem-intencionadas, sumiram do texto e houve a inclusão de um monstruoso arrebol parnasiano sem equivalente no texto. A fonte fumacenta, ou smoky spring, foi deixada de fora. No verso final, o pronome they (eles) foi traduzido como estes.
Augusto de Campos foi incapaz de responder às acusações e pediu aos executivos do Estadão a cabeça do editor João Moura Jr. Com a ajuda de seu sequaz Caetano Veloso, conclamou um exército de intelectuais a um abaixo-assinado de vilipêndio ao carioca. O tiro saiu pela culatra e a reputação do movimento concretista sofreu um sério abalo.
Tolentino selou a polêmica para sempre no livro Os sapos de ontem (1995). Os ensaios críticos foram seguidos por hilários poemas contra seus inimigos. Marilena Chauí era comparada a uma prostituta polaca epicurista. Entre ambas, a meretriz seria a melhor filósofa! Todos tiveram de engolir o choro. Se vida do poeta foi trágica, a controvérsia terminou em comédia.