Fé e Sacrifício em “Tenet”(2020)

Time present and time past
Are both perhaps present in time future
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.

– T.S. Eliot, Four Quartets

Tenet, a mais recente obra de Cristopher Nolan, foi anunciado como o filme que traria as massas de volta ao cinema após meses de confinamento. E, depois de ver o filme, a impressão que fica é a de que o objetivo de Nolan era, mais do que isso, fazer com que as pessoas tivessem de repetir a experiência. Tenet é um filme intricado e, embora tenha um enredo relativamente simples, a sua construção complexifica-o a ponto de se tornar difícil seguir o fio da meada numa primeira visualização. No meio de explosões, perseguições de carro em tempo reverso e física teórica ditada a alta velocidade, espera-se que o espectador acompanhe as versões duplicadas de cada um dos personagens, que viajam em direções opostas do fluxo temporal para, no final, impedir o fim do mundo.

E foi muito devido a esta ininteligibilidade que Tenet foi amplamente criticado assim que saiu. Contudo, nas semanas que se seguiram à sua estreia, as recensões críticas do filme tornaram-se cada vez mais positivas. Após ter sido unanimemente considerado o pior filme do realizador até hoje, Tenet tornou-se o filme do 2020.

Os críticos de Nolan acusam-no de glamourizar o blockbuster (neste caso, o filme de ação) com o uso de teorias físicas e narrativas complexas para dar uma impressão de pseudo-erudição ao espetador médio (que ainda estou para descobrir quem é). No fundo, acusam-no de esteticismo: de colocar o Belo acima do Bom e do Verdadeiro, criando obras vazias, em que a beleza apenas serve ao espetáculo. Nada poderia, contudo, estar mais longe da verdade. Uma das marcas do artista é a obsessão, a volta constante aos mesmos temas, vistos de diversos ângulos e perspectivas. E Tenet, embora não seja o melhor filme de Nolan, insere-se perfeitamente na sua filmografia, recuperando temas que são caros ao realizador, desde o autossacrifício, o fim de uma civilização, a inapreensibilidade do tempo e, acima de tudo, o respeito pela realidade (a “fé nos mecanismos do mundo”). Muito mais do que uma glamourização vazia do espetáculo, os truques de montagem, as narrativas complexas e os aviões de 12 milhões de dólares em colisão são as ferramentas que o realizador britânico utiliza para levar cada uma das suas obsessões às últimas consequências.

Com Tenet, é o problema do tempo, mais precisamente o problema da sua possível inversão, que será dissecado. Inspirado na experiência mental do Demônio de Maxwell, Nolan imagina um mundo em que, no futuro, cientistas descobriram uma maneira de reverter a entropia de qualquer sistema, tornando, assim, possível inverter o tempo. O cientista que criou este algoritmo, assustado com as possíveis consequências de tal tecnologia, codificou-o em nove partes e, invertendo-as no tempo, escondeu-as em locais radioativos. Porém, acontece que, aquando do fim da União Soviética, um trabalhador de uma escavação de plutônio, Andrei Sator, encontra uma das peças do algoritmo. Assim, Sator passa a trabalhar para uma geração de homens num futuro distante de modo a que estes, tendo as nove peças do algoritmo em mãos, possam continuar o trabalho do primeiro cientista. Tudo isto na fé de inverter os legados destrutivos das gerações passadas, como o aquecimento global, salvando o seu futuro ao destruir o nosso presente (o seu passado). Ainda que possa parecer uma loucura, estes seres futuros julgam que esta é a sua única chance e, para levar o seu plano adiante, contam com a ajuda de um suicida obsessivo. Acontece que aquilo que deu a Sator a sua fortuna trazia consigo também a sua morte. Ao descobrir o algoritmo num local radioativo, Sator contrai um cancro incurável e é através do seu suicídio que esses seres futuros serão noticiados acerca do sucesso de toda a missão.

Tudo isto chega até nós através do Protagonista, interpretado por John David Washington, um agente da CIA, recrutado pela agência Tenet, que, para descobrir mais acerca desta tecnologia que possibilita a reversão da entropia, aproxima-se de Sator e da sua esposa, Kat. Para impedir que o plano de Sator se concretize, o protagonista e o seu companheiro, Neil, vão e voltam no tempo, lutando contra seu ser futuro ou passado, culminando num “movimento de pinça temporal”, uma batalha final que, fazendo uso deste mecanismo de inversão de entropia, impedirá que o mundo seja destruído.

O Sacrifício Palindrômico

Não é a primeira vez que Nolan faz uso de uma narrativa não linear, com uma série de contorções e distorções temporais. Há reversões temporais já em Memento, sonhos dentro de sonhos que abalam a sua estrutura em Inception, distorções gravitacionais do mesmo em Interstellar e, em Dunkirk, três linhas temporais tecidas em espiral. Em Tenet, tudo isto é elevada à enésima potência e a dinâmica de inversão temporal faz com que os personagens interajam com o seu ser passado e futuro, sendo que a própria estrutura do filme navega entre momentos passados e futuros sob diferentes perspetivas. Daí que um dos seus símbolos basilares seja o Quadrado Sator, um palíndromo cuja existência remonta ao século I, em que cada uma das suas palavras pode ser lida tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. O quadrado Sator funciona como um sistema interconectado que, não importa como seja abordado, sempre passa a mesma mensagem. A narrativa de Tenet opera exatamente da mesma maneira.

Cada Quadrado Sator conta com as palavras Sator, Arepo, Tenet, Opera e Rotas. As referências no filme são relativamente claras: Sator é o nome do vilão; Arepo é o sobrenome de um falsificador de duas pinturas de Goya; Opera, mais especificamente, uma casa de ópera, é onde começa a narrativa; e ROTAS é o nome da empresa de segurança que Sator contrata. Para além disso, é repetido ao longo do filme que o filho de Kat está com uma ama em Pompeia, o lugar onde foi descoberto o primeiro quadrado Sator.

Contudo, muito além destas referências, Nolan aplica a lógica do palíndromo a toda a narrativa do filme. Se organizarmos a sua estrutura, percebemos que Nolan criou um palíndromo cinematográfico perfeito. Ou quase. Uma das surpresas do filme é os personagens não retornarem à primeira cena na sala de Ópera, fechando assim o ciclo que iniciou a narrativa. Embora não seja um espelho literal da cena da ópera, a última cena do filme repete-a simbolicamente.

Na verdade, os primeiros minutos do filme já anunciam toda a sua estrutura simbólica e narrativa. É-nos apresentada uma casa de Ópera em que os músicos afinam os seus instrumentos, o momento de caos que antecede a ordem harmônica do concerto. Porém, este pequeno caos não é interrompido, mas, antes, exacerbado. Uma série de homens encapuçados invade a sala de Ópera, o público é adormecido com um gás e começa aquilo que parece ser um ataque terrorista. Somos, assim, apresentados ao protagonista que, no meio deste colapso, deixa claro que “Vivemos num mundo de crepúsculo. E não temos amigos na escuridão: o caos está instalado, não há mais luz, apenas uma pulsão geral de morte. Tentando impedir o ataque, o Protagonista acaba por ser capturado e torturado. Recusa-se, porém, a dar qualquer informação e, num ato de autossacrifício, toma um comprimido de cianeto para evitar revelar os seus segredos. Só que o comprimido suicida é, na verdade, um teste e, assim que acorda, o Protagonista descobre que acaba de se juntar a uma nova organização (Tenet) e, para enveredar na sua nova missão, deve deixar para trás toda a sua vida anterior, e recomeçar como um novo “Eu”.

Ou seja, há uma sequência de caos que culmina com a explosão da casa de Ópera, seguida de um autossacrifício por parte do Protagonista que, na verdade, se revela como a possibilidade de uma nova vida. Este é o padrão básico de todo o filme. É também a recusa de Kat em sacrificar o seu filho em prol do seu bem-estar (ou seja, o seu próprio autossacrifício) que, por sua vez, permite que esta tenha uma nova e restaurada vida.

Assim, a batalha final, espelhando a cena da ópera, também conta com duas equipes de assalto, ambas com agentes infiltrados, que têm dez minutos para evitar que o plano de Sator seja bem-sucedido. Enquanto uma das equipes procede no fluxo temporal normal, a outra está invertida (daí um dos significados de “Tenet”, dez (ten) minutos para a frente e dez minutos invertidos) e é uma explosão final que, tal como na cena da ópera, representa o caos consumado, marca o final de um ciclo e o início de uma nova vida — neste caso, a própria possibilidade de perpetuar a vida como a conhecemos. Contudo, aquilo que liga esse caos com a salvação do mundo é, mais uma vez, um autossacrifício. O protagonista é salvo de uma bala por um agente da equipe invertida que, descobriremos no fim, é ninguém menos que Neil. Este padrão, que se repete ao longo de Tenet, para além de revelar a mensagem básica do filme, é o nó que ata as duas pontas do seu arco narrativo.

A “Fé Nos Mecanismos do Mundo”

Um dos pontos mais interessantes da batalha final é, porém, a perceção de que tudo o que está a ocorrer é necessário. Assim que o Protagonista percebe o sacrifício de Neil, tenta persuadi-lo a não voltar atrás para se inverter e, assim, no passado do Protagonista, salvá-lo de uma bala. Mas, ao mesmo tempo, ele tem noção de que é assim que o ciclo se deve fechar. Como Neil deixa claro: “O que aconteceu, aconteceu” (“What’s happened, happened”). Mesmo num universo em que podemos inverter o tempo, a mensagem de Nolan continua a ecoar o verso de T.S. Eliot: “todo o tempo é irredimível” (“All time is unredeemable”).

Ao apresentar o tempo de forma palindrômica, possibilitando a sua inversão, Nolan coloca em cima da mesa duas possibilidades de relação com o mesmo: a vingança e a fé. A vingança é perfeitamente simbolizada pelos seres futuros e Sator, tendo como consequência última a destruição da própria humanidade. Já a fé, mais precisamente, a “fé nos mecanismos do mundo”, é uma expressão do Protagonista que revela uma postura de esperança perante a condição humana.

Um dos significados literais da palavra “tenet” é princípio ou dogma, ou seja, mais do que uma ideia, algo que guia a nossa própria ação no mundo. Em Tenet, Nolan apresenta esses dois “tenets”, essas duas formas de estar no mundo que, na verdade, nada mais são que optar pela morte ou pela vida. A vingança de Sator é, na verdade, uma vingança contra a própria realidade. Como o próprio deixa claro, ele fez uma “aposta com o Diabo” e esta nada mais é do que uma tentativa inveterada de controlar a realidade, de viver a sua fantasia totalitária, de se tornar um deus.

A verdade, entretanto, é que o desejo totalitário diabólico de Sator só é possível porque, antes de ser tirano dos outros, Sator é tirano de si mesmo. A sua esposa, o seu filho, tudo o que Sator poderia amar, são meras ferramentas da sua vontade. Como o Protagonista deixa claro: “Tu não acreditas em Deus, ou num futuro, ou em qualquer coisa fora de tua própria experiência”. O futuro que se tenta vingar do seu passado na esperança de mudar a história é, aos olhos de Nolan, o mais básico desejo totalitário, a tentativa de alterar a realidade segundo a sua vontade que, na verdade, mina a própria possibilidade de um futuro real. Daí a incapacidade de Sator de lidar com aquilo que foge do seu controle, com a contingência, as assimetrias do mundo real, precisando de, ou viver no mundo ideia, ou destruir o próprio mundo.

O Protagonista, Kat e Neil, por sua vez, representam o princípio oposto ao de Sator e dos seres futuros que trabalham em conluio com ele. Eles demonstram a “fé nos mecanismos da realidade”, ou seja, um apreço pela vida como ela é, encarando a necessidade e percebendo que é o nosso próprio sacrifício que garante a preservação do mundo. Este, porém, só é possível se estivermos firmemente fundamentados na realidade. É nesse contexto que podemos perceber o porquê de o grande motor da salvação do mundo em Nolan ser sempre a relação entre um pai e um filho. Vemos isso já em Interstellar. Doze astronautas foram enviados para encontrar um planeta capaz de sustentar a vida humana, cada um deles impecavelmente dedicado à missão, sem qualquer família ou bens na terra. Todavia, é o astronauta Cooper, o único que tinha o seu fundamento (os seus filhos) na Terra e alguma conexão emocional real, que acaba por fazer com que a missão seja bem-sucedida. Perante um mundo que está em colapso, a mensagem de Nolan é uma mensagem de fé: escolher a vida e perpetuá-la. Daí a cena final de Tenet em que Kat e o seu filho caminham de mãos dadas.

E assim voltamos ao Quadrado Sator. Uma das mensagens cifradas que, quando realinhada, mostra que aquele enigmático palíndromo guarda os dizeres “Pater Noster” (Pai Nosso), juntamente com as letras A e O, ou seja, alfa e ómega, o princípio e o fim. Na verdade, é muito provável que o Quadrado Sator fosse uma forma que os soldados romanos convertidos ao cristianismo tinham de cifrar a sua devoção a Cristo sem desafiar a autoridade imperial. E, embora não pareça haver uma relação direta entre o Pater Noster do Quadrado Sator e Tenet (pelo menos na sua versão cristológica), vale notar que há, efetivamente um “Pater” que paira sobre todo o filme: o avô, do paradoxo do avô.

O paradoxo do avô é um dos mais famosos problemas que acompanham as especulações sobre a possibilidade de viagens no tempo: se uma pessoa viaja para o passado e mata o seu avô, a existência do seu pai ou mãe torna-se impossível e, consequentemente, a sua própria existência também. Contudo, a dinâmica de Tenet não é necessariamente uma de viagens temporais, mas, antes, de inversão do mesmo. Assim, não é claro de que forma este paradoxo se aplicaria neste universo. O próprio Neil, quando menciona o paradoxo do avô, deixa claro que é possível que, ao exterminar uma geração passada invertendo o tempo, os humanos do futuro nunca tenham nascido e, portanto, tenham cavado a sua própria sepultura. Porém, isso também pode não acontecer. Os seres do futuro apenas estão dispostos a arriscar essa possibilidade. Ou seja, eles também estão a agir segundo um tenet, um dogma, porém, é um dogma de destruição, não de “fé nas mecânicas do mundo”. O futuro que luta contra o passado é o futuro que luta contra a própria realidade e, assim, contra si mesmo.

O “pater” do paradoxo do avô representa o nosso próprio passado. O nosso pai, o nosso avô, os nossos antepassados, são a representação familiar da “democracia dos mortos” de Chesterton, o contrato tácito que estabelecemos com os que já foram. Ora, Nolan parece apontar que um mundo que não respeita o seu passado não se pode perpetuar no futuro, uma mensagem particularmente relevante em tempos de cultura de cancelamento. Uma relação sadia com o passado, mesmo com os seus pecados, envolve respeito, uma tentativa  de aprender com os seus erros em vez de o exterminar. Este é o significado das fascinantes sequências coreográficas em que os personagens batalham contra os seus seres passados e futuros. Contemplar o passado é, acima de tudo, aprender com os próprios erros respeitando a sua necessidade. A grande mensagem de Tenet é que extinguir o passado é minar a própria possibilidade de futuro. E, no final de contas, aquilo que a experiência palindrômica de Nolan permite é, voltando mais uma vez a T.S Eliot, poder voltar aonde começamos e conhecer esse lugar pela primeira vez (“Will be to arrive where we started / And know the place for the first time”); confrontar a necessidade e manter-se aberto à contingência.