Tentações do Subsolo – Dostoiévski, René Girard e a poética da imitação (#mêsdosubsolo)

– por Leonardo Quintanilha

I

Fecho Memórias do Subsolo. Ainda um pouco impressionado, poderia começar pontificando, à maneira do mais entusiasmado tipo de crítico, que Dostoiévski é um extraordinário conhecedor da alma humana. Ou que é o maior escritor de todos os tempos. Ou que a beleza salvará o mundo. Mas com um pouco mais de critério, logo dá para notar que essas enunciações fatais, hiperbólicas ou hoje apenas insuportáveis não dizem muito de nenhum livro seu. Não revelam os tais abismos da psicologia, não provam a sua acuidade de expressão, nem lhe realçam as potências do drama.

Claro, não proponho o banimento das adjetivações apaixonadas. Nem incentivo a ocupação principal daquela espécie de tarados que, em linguagem muito própria, fala de uma obra de literatura como de um experimento de laboratório. Devemos passar do mero impressionismo, essa puberdade da crítica, sem renunciar ao bom gosto que orienta o que de melhor produziram os impressionistas — que eram muito mais do que uma gente culta deslumbrada com livros.

Assim, logo de cara sejamos honestos com as nossas impressões: Dostoiévski é sempre encantador; faz com que nos sintamos profundos, assombrados, desmoralizados. Sua verdade, que é sempre uma acusação, se transmite numa prosa tão instável quanto o espírito que frequentemente descreve, e talvez até possa ser incorporada à técnica que lhe dizem faltar. (Vamos deixar para depois as ressalvas de estilo feitas por Nabokov e as comparações de seus romances com os de Tolstói.)

Largados numa verborragia liberta, os personagens de Dostoiévski, em geral, surpreendem pela capacidade de se revelar e se dissimular ao mesmo tempo, encantando pela variedade de ideias, pela suspicácia com que as abandonam, ofendendo pela audácia com que olham, para fora do livro, como um risonho Baudelaire: Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!

O que ele faz de melhor é guiar o público, com a perícia de um ilusionista, por entrelaçadas rotas de pensamento e justificação, enquanto vemos se moverem por trás, à mordaça do títere, todos os mecanismos do orgulho e do desejo, do ressentimento e da idolatria, que às vezes irrompem sob a forma dos mais deliciosos paradoxos. Desmascara o leitor, e com isso o enobrece; seu insulto é sobretudo lisonja. E de torpeza em torpeza, trazendo à luz o mais subterrâneo cinismo, no final das contas Dostoiévski agrada e até faz rir.

Memórias do Subsolo é uma amostra de 150 páginas do que Augusto dos Anjos chamou de “a gargalhada da última derrota”; um riso altivo, despeitado e nada alegre. É o diário de um homem em quem até a honestidade é uma mentira; que confessa baixezas, inventa ódios e rancores, apenas para mascarar a sua humana indigência em relação aos que estima, ama e idolatra.

II

O livro se divide em duas partes: a primeira é uma espécie de apresentação do homem do subsolo, o teatrinho inicial, sua dissimulação primeira; a segunda é a mais propriamente novelística, com história, acontecimentos, conflitos, fundo dramático.

A rigor, seria uma novela bem estranha, de poética impura, se os seus continuadores, no século seguinte, não tivessem feito todo o esforço para normalizá-la. Ou melhor: se o próprio Dostoiévski não tivesse sido um dos precursores da revolução formal cujo ápice seria atingido por Proust, Gide e Joyce.

Alguém pode objetar que a primeira parte, por simples falta de enredo, poderia apenas não existir. Seria um defeito de concepção?

Se as clássicas convenções romanescas (ou mais propriamente românticas) do século XIX forem o modelo oculto, talvez. Mas o romance, a novela e o conto mudaram bastante. Álvaro Lins vai dizer que o enredo simplesmente cedeu o posto central para o personagem. A história passou a ser pretexto, ou pressuposto, para desenvolvê-lo, para explorá-lo no espaço, e, principalmente, no tempo; seja ele linear, psicológico, ou por fluxo de consciência.

Ao montar as cenas e dividi-las com o público, o romancista moderno brinca com as personalidades que assimilou pela inspeção dolorosa do deserto interior. No seu gênio criador as reúne, fundidas, e à medida que descreve o contato que se inaugura entre elas, vai realçando, pelo contraste em que a técnica infunde luz, todo o potencial dramático da história, toda a moralidade que surge em meio aos desejos que se batem, às ambições que se esmagam, aos homens que se matam.

Essa ficção, porém, não funciona mais como um agrupamento de tipos humanos que a malha burguesa dispôs aqui e ali, em arrivistas, comerciantes, adúlteras e talentos sabotados por uma sociedade cretina. Essas figuras, é óbvio, não deixaram de existir nem hoje; mas no lugar do retrato dos costumes, do que normalmente se faz e se reprova, essa arte, que já tem em Dostoiévski o seu germe, prefere voltar para si, focar em seu próprio caráter simbólico e a partir daí revelar, como num espelho verbal, toda a vida psicológica de quem o lê.

E isso até explica por que o romance moderno não depende exclusivamente de eventos físicos. Os personagens não precisam fazer coisas; pelo menos não toda hora. Podem apenas pensá-las, senti-las, sofrer por elas, e deixar que a vida transcorra numa antologia de eventos mentais. Afinal, essa não deixa de ser uma realidade de muita gente, ensimesmada por orgulho, retraída do mundo em que gostaria de viver, se lhe oferecessem a amizade da qual diz não precisar.

Mas mesmo a solidão mais glacial é uma forma de convívio humano. Quem foge para o meio do mato, atrás daquele ideal meio hippie de liberdade, ignora que a sociedade continua existindo nos que a abandonam; como o filho que, para não repetir o fracasso dos pais, faz deles um ideal às avessas, e ao elegê-los como objeto de obsessão — daquele simulacro de ódio que é sempre uma retorcida declaração de amor —, talvez esteja se tornando o mesmo antimodelo que os inspirou.

Às vezes, para se mostrar, o personagem precisa daquilo que parecem ser ensaios inteiros, cheios de filosofia, teorias, ciências, política. É estranho dizer isso quando o que mais existe por aí, entre esquerdas e direitas, são deformações do que James Joyce (ou Dedalus, seu personagem) chamava de arte própria, ou do que entendia por finalidade estética. No entanto, todos esses elementos, em si mesmos exteriores à arte, podem ser incorporados a ela, desde que mediados pela sensatez da imaginação e necessários para envolver o leitor na atmosfera do sonho. Um romance filosófico não é mais romance por ser filosófico; nem há intuito edificante que justifique um fracasso estético.

Com base nisso, digo: não me parece que Memórias do Subsolo seja daquelas obras que sucumbem à própria profundidade. Quer dizer, pode não ser o melhor exemplo do ideal flaubertiano, do escritor que, à semelhança de Deus na criação, está em toda parte mas não é visto em parte alguma; as tais teorias, todavia, também não são um acréscimo injustificado a uma história que passaria muito bem sem elas.

Embora lhe faltem fatos, a primeira parte do livro, que em aparência seria a mais formalmente problemática, não carece de personagens. Eles apenas não são de uma imediata humanidade; são ideias que, pela boca do narrador, apresentam-se, atracam-se, refutam-se. Num momento as proposições matemáticas, por exemplo, ostentando firmeza e rigor, caem por terra aos ataques de uma obstinação perfeita e acabada; noutro, o mais convicto utilitarismo se prova como o principal motor da realidade para, no instante seguinte, se ver pisado pelo mais humano capricho.

Isso parece depor contra a minha tese. Mas, a uma boa olhada, depois de uma leitura e outra releitura, chegamos à conclusão de que mesmo essas criaturas feitas de vento não denunciam uma proposta do escritor; no máximo comprometem o narrador, que com o primeiro não se confunde. Não sabemos, ao menos a partir desse livretinho, o que Dostoiévski pensa sobre o sentimento cristão ou o anseio revolucionário — e dá uma vontade imensa de se ofender se perguntam a sua posição política.

O que é mais curioso é que sabemos muito pouco daquilo em que acredita o próprio habitante do subsolo. Quando não está se odiando por precisar daqueles que lhe parecem inferiores, ele costuma se entregar a um tipo de prazer bem peculiar, uma volúpia que consiste em ficar esmagando, com o mais dialético sadismo, todas as convicções, inclusive as dele próprio. Mas até aí cada um com suas manias. Tudo ainda está dentro do personagem que é. Ou que se esforça em parecer.

III

A propósito de Dostoiévski escreveu Hemingway certa vez: “Como um homem pode escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e despertar sentimentos tão profundos?”

Num primeiro momento essa constatação poderá surpreender o leitor feliz e inocente. Alguma humildade o faria pensar que, embora pudesse lhe escapar uma escrita ruim, certamente notaria uma escrita péssima. Mas nenhum desses adjetivos, que as pessoas prodigalizam em postagens de Facebook ou Instagram tão empenhadas em merecê-los, parece combinar muito com o nome de Dostoiévski. Tudo bem, a maior parte dos méritos pode ser de outra natureza, filosófica talvez; admitamos como hipótese. Mas como alguém escrevendo tão mal poderia ter uma glória tão duradoura?

A esse mesmo leitor tudo parecerá subitamente exagerado, hiperbólico, sacana. O incômodo lhe subirá ao rosto, que ferverá ao duplo insulto: a uma causa de prazer intelectual e ao timbre do homem cultivado. Pode ser que o exprima num “nossa, que absurdo”, e vá tomar café, tirar o lixo, cuidar da vida. Pode ser que, ofendido e curioso, se veja impelido a reagir, em nome da autoridade dos clássicos, dos quais se fará defensor contra a pretensão blasfema dos que atacam um pilar do Ocidente; ou que, sendo escritores, não lhe chegam aos pés e por isso o invejam; ou que apenas não gozam do mesmo crédito na praça literária e deveriam se recolher ao próprio ridículo.

Mas Hemingway não é o único. Críticas do tipo se replicam com sinistra facilidade em Gorki, Nabokov, Tolstói e tantos outros. E é verdade que as pessoas apreciam a ideia de gostar de Dostoiévski um pouco mais do que realmente gostam dele. Caso aceitemos, porém, que não seja unanimidade, e que não tenha safadeza ou intriga no meio, impõe-se a pergunta: o que faz as pessoas voltarem tanto a essas obras imperfeitas e as leva a amá-las com um amor tão complacente?

A resposta mais fácil seria: o público não liga para essas coisas. Quer se divertir com a história, se identificar com os personagens, se sentir entretido e exultante, no choro ou no riso. Pouco lhe importam as minúcias sintáticas, espalhadas em construções cuja impropriedade até os seus tradutores censuram, junto de uma fauna verbal de “eis que”, “então”, “e daí” que um indignado manual de escrita trataria de repelir. Nem se incomodam essas pessoas com uma poética fissurada em figuras invariavelmente neuróticas, pecadoras, criminosas; talvez até o procurem por essas razões. Acabarão pensando por fim: que os críticos se ocupem dessas antipáticas formalidades e não nos encham o saco.

Da mesma forma, porém, que o sucesso de público não quer dizer êxito estético, a honestidade da crítica não significa isenção soberana. Nunca vão parecer suficientemente justificados os encantos das obras de Dostoiévski se, diante delas, instituirmos um tribunal em cujo critério invariavelmente se fundirão o domínio da técnica com as preferências de autor, numa confusão que os preconceitos de escola, sobretudo quando alçados à dogmática do processo criativo, produzem entre o essencial a manter e o acidental a mudar. Claro, a adoração quase religiosa que muitos devotam ao velho russo, ressaltando sua capacidade de inspirar conversões, também não ajuda nessa tarefa, porque dissolve o eixo da discussão. De todo modo, seria fácil condenar Dostoiévski por não ter a imagética de Tolstói ou a elegância de Turguêniev.

Alguém poderia até objetar que, se fosse tão rico quanto os dois, não faltaria tempo para talhar a prosa ao cinzel do estilo. E logo se chegaria à conclusão de que a estilística é uma frivolidade burguesa, que as desigualdades sociais precisam acabar etc.

Não é o que importa discutir agora (ao menos para este texto), porque talvez haja um método, não isento de técnica, que veja no sucesso público do escritor o reflexo de uma poética mais ou menos coerente.

****

O aspecto penetrante da obra de Dostoiévski não surge como resultado de um experimento de psicologia alegórica, nem depende o seu êxito de exposição teórica do sacrifício de toda técnica de arte.

Nos cadernos que restaram do romancista, surgem com frequência, à margem de textos na horizontal, na vertical, na diagonal, estranhas faces rabiscadas, numa seriedade austera e metafísica, donde se projetam trilhas, santuários, anjos e demônios. Ficam esses esboços de guerra primitiva aos pés de cada história, na antessala do surgimento do fator humano, como que no protótipo da estrutura de eventos que a narrativa vai ligar. Mas mesmo essa origem da inspiração antes sugere um conflito ao dramaturgo do que um plano ao moralista. Por trás dos pecados e das conversões, da corrupção ocidental e da salvação russa, existe técnica. Ela diverge em grau da que o realismo clássico emprega, e à luz do qual costuma ser julgada, porém impulsiona as escolhas dos personagens, a indignação que sentem em relação aos outros e a si mesmos, a feição do delírio que faz do ritmo de um romance de Dostoiévski tão alucinante e desolador.

Memórias do Subsolo é um bom exemplo de livros assim, e seu personagem poderia facilmente se encaixar no exemplo humano que os justifica, se o entendêssemos melhor.

No começo da segunda parte do livro, o homem do subsolo (ou homem-rato, como Nabokov o chama) conta que aos vinte e quatro anos trabalhava numa repartição pública. E lá não se dava com ninguém. Os colegas pareciam olhá-lo com uma aversão que, para ele, era incompreensível; ora, havia à sua volta gente muito mais digna de desdém. Um colega, por exemplo, com o rosto todo picado de varíola, já seria repulsivo ao extremo, se para além disso não ostentasse também uma formidável expressão de bandido. Por outro lado, nosso homem do subsolo era muito mais culto, muito mais inteligente que os demais. Apenas não compreendia por que não lhe notavam as qualidades, tão excelsas e óbvias, sem que ele precisasse afirmá-las (o que significaria ser desprezado de imediato), ou por que ele mesmo não conseguia deixar de esperar pelo reconhecimento delas:

Está claro que odiava todos os funcionários da nossa repartição, do primeiro ao último, e desprezava-os a todos, mas, simultaneamente, como que os temia. Acontecia-me até colocá-los acima de mim. Sucedia o seguinte: ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim.”

Aos burocratas da literatura, há inúmeras formas de catalogar o homem do subsolo: ressentido, revoltado, irracionalista, infeliz, imaturo. É certo que daria para jogá-lo numa certa camada da personalidade, e assim tê-lo por explicado, sob um honorável olhar de superioridade e complacência. Nenhuma dessas características é, no entanto, capaz de enquadrá-lo em definitivo, de reduzi-lo a conceito, e dele tirar só consequências edificantes; e se fica sempre à cata de mais adjetivos para despejar sobre o desgraçado, sem que ele contribua com o esforço.

É preciso então mapear a origem de tudo isso, sua motivação perene. Mas não consigo enunciá-la a partir de estudos biográficos, ou mesmo dos rascunhos de Dostoiévski, do que parece ser o nascedouro do processo criativo; este, como vai dizer Northrop Frye, costuma ser mero impulso, sujeito a mudanças futuras, que se encontram no meio do ato de redação, naquilo que ele vai revelando com o passar do tempo. E por isso tenho de pedir ajuda a um dos grandes, ou pelo menos dos mais originais, intérpretes do romancista russo: René Girard.

Em Mentira Romântica, Verdade Romanesca, conta Girard que, se o romancista moderno tem um objetivo que se estende do começo ao fim da narrativa, sem se diluir com a facilidade das ambições teorizantes e panfletárias, é este: revelar o desejo metafísico.

Para explicar o que é desejo metafísico, preciso falar um pouco do desejo triangular, ou como Girard o batizou para a fama em obras posteriores: desejo mimético.

A tese desse primeiro livro é: os românticos descreviam o desejo de um jeito, um pouco ingênuo e fantasioso, os romancistas modernos, dentre os quais Dostoiévski, passam a descrever de outro, mais honesto e real. Acredita o romântico que deseja as coisas por elas mesmas; garante o romanesco que há uma terceira pessoa que as faz desejáveis. Logo a uma primeira vista, uma convenção parece estar mais próxima da experiência, principalmente quando filiada à tradição realista; outra está mais no plano dos ideais, abstraído o cotidiano pouco elevado e digno de atenção.

Em outras palavras, dizem os românticos que desejamos uma mulher, compramos uma camisa ou escrevemos um livro porque aquela mulher, aquela camisa e aquele livro são bons e atraentes em si, como reflexos platônicos de um valor ideal e eterno, e pronto. Ao passo que, para os romanescos (ou romancistas mais modernos), todas essas coisas nos chegam filtradas por um modelo, que antes elegemos para nós, consciente ou inconscientemente. Foi esse exemplo vital que conferiu a todos os bens o valor que nos atrai o interesse.

Esse modelo é chamado mediador.

Em algumas ocasiões, dá para dizer que o desejo parece irradiar do próprio objeto. Se tenho sede, vou à cozinha e tomo um copo d’água. Seria meio ridículo supor que alguém precisasse me influenciar para isso. Mas como negar em absoluto que as pessoas não desejam tantas coisas porque outra pessoa as fez desejar? Como dizer que as súbitas simpatias pela alta cultura não tenham sido reproduzidas de alguém bastante autorizado, que primeiro as designou como desejáveis?

Daria para fazer a Girard e a Freud a mesma objeção: essa é a mentalidade da massa. Contudo, esquecido o fato de que mesmo os homens superiores ainda sejam homens de necessidades menos nobres que a vida impõe, esse é um só tipo de imitação, a mediação interna. A mediação externa é a que permite a imitação de modelos mais belos e sublimes; Cristo, Aristóteles, Santo Tomás. Na primeira o mediador está próximo, e pode haver competição, na segunda ele está a uma saudável distância de seus admiradores, e ninguém quer realmente tomar o seu lugar.

Ninguém, por exemplo, compete a sério com Platão. O que não muda o fato de que ele pode ser modelo de alguém. Eis a mediação externa. Mas o sujeito compete com um primo que pareça mais rico, mais orgulhoso e mais burro. Eis a mediação interna. A mediação externa é foco de romances como Dom Quixote e Madame Bovary. A interna, fruto de mais problemas, é bem retratada nas obras de Stendhal, Dostoiévski, Proust e tantos outros.

O principal problema da mediação interna é a rivalidade com o mediador.

Se desejo a mulher da casa ao lado, e ela é casada, o objeto do meu desejo é escasso, não pode ser repartido; o marido já o detém. Se me falta vocação para amante ou sobra escrúpulo de moralidade, posso tentar me contentar com uma que não tenha tantos empecilhos matrimoniais. Ou posso passar o restante dos meus dias a invejar o seu marido, ressentindo-me de não a ter.

Se quero ser o mais inteligente da firma, porque alguém que assim me pareceu demonstrava um tipo de liberdade que eu mesmo almejo, essa pessoa se tornará o meu mediador. E farei de tudo para que, sendo tão senhor de tudo, ele confira um pouco dessa graça divina às minhas escolhas. Quero, no final das contas, ser como ele; ou melhor, tomar para mim o ser dele.

Esse é o desejo metafísico.

O desejo metafísico se origina de um fato: todo homem sofre de uma deficiência constitutiva que o impede de nomear, por si mesmo, o que é um bem desejável. Precisa que um terceiro designe as coisas que são dignas de valor, e lhe diga que são preferíveis a outras. Girard chama isso de mal ontológico. O mediador desperta fascínio porque não parece desejar a partir de ninguém. Sua soberania produz um encanto que nos arrebata e cria em nós o desejo de imitá-lo, o que implica por reflexo escolher os bens que ele mesmo escolhe para si. 

Acontece que, se o mediador é um entrave à posse do bem que fez desejar, ele acaba produzindo uma relação ambígua com o eu desejante: uma repulsiva admiração. Se o último, por qualquer razão que seja, está seguro da própria superioridade — ou acredita que é preciso estar para não apanhar do mundo, ou do mediador — e o primeiro parece não se importar muito, nem por isso aquele deixará de precisar deste. A diferença é que, para não se mostrar condenável aos próprios olhos, o idólatra passará a encenar o desprezo pelo ídolo. O que não o impede de se manter à espreita de um aceno favorável, da aprovação que desdenha.

Há uma cena em que o homem do subsolo envia uma carta cheia de insultos a um oficial que ele julga que o despreza, porque esbarrou nele num dia tal, mas ao mesmo tempo torce para que o rapaz lhe note as qualidades literárias, e ofereça uma amizade — que seria prontamente aceita.

Esse desprezo, que é um amor invertido, tem muitas faces. Pode ser fruto da vontade de querer dominar o mediador, de parecer-lhe independente, autônomo, capaz de designar o que é bom, belo e verdadeiro, só para produzir sobre ele o domínio que ele próprio provoca em mim; de se justificar à consciência uma superioridade da qual procuro me convencer, enquanto os outros seguem noutras direções que, pelos meus assumidos critérios, eu teria de odiar mas secretamente admiro.

Porém a pose do orgulho não dura para sempre; a pura exaltação egoísta não é suficiente para mantê-la. Precisa se confirmar no mundo real. E quando se frustra (e isso acontece com frequência), surgem as maquinações, as racionalizações, o autoengano. Nem quando esse desprezo vira hábito — e como hábito deixa de ocupar espaço na consciência — os atos que se fundam nele deixam de vir à superfície; voltam como espasmos, a descontrolar a mente e a levá-la para onde não gostaria de ir.

Há outra cena em que o homem do subsolo comparece a um jantar apenas para mostrar que despreza um antigo colega rico, bem-sucedido, admirado por todos, inclusive por ele; mas, ao mesmo tempo, um tanto estúpido, arrogante e indigno do seu apreço.

O herói do subterrâneo não se ofenderia com um fingimento de desprezo, feito de propósito para irritá-lo; o que o incomoda, e o insulta gravemente, é quem honestamente se persuade da própria superioridade, ou dá a entender que assim se veja, e se dispõe a olhá-lo como a um necessitado de proteção.

A origem de seu orgulho não é fortuita; vem em parte daquilo que Paul Diel chama de exaltação imaginativa. O homem do subsolo estuda e pensa sobre assuntos “belos e sublimes”, e pelo mero fato de ocupar-se deles já atribui a si mesmo, por uma hipertrofia da imaginação, a grandeza do ideal que representam.

Segundo Girard, “o herói subterrâneo e seu perseguidor adorável são sempre os dois lados de um mesmo desejo metafísico.” Na raiz de suas motivações, mesmo quando manifesta o ódio mais vivo, está reagindo ao próprio desejo pelo ser do outro, pela atração da qual busca se desfazer pelo orgulho, a sustentar as provas de independência e sinceridade atroz que entrega ao leitor. Na perspectiva do subsolo, o desejo é uma falha. Platão já enunciava a sua fórmula: só se deseja aquilo que não se possui. Admiti-lo já seria revelar uma carência. Mas, embora dissimulado e talvez justamente por isso, o desejo metafísico não deixa de mover o homem do subsolo, de fazê-lo cada vez mais dependente daqueles que acredita odiar.

Noutra cena, ele encontra uma prostituta e vai para a cama com ela. Assim que acorda, quer saber seu nome. Porém logo se sente enojado, indigno e indignado de que alguém aceite se prostituir. Passa a insultá-la, e ao mesmo tempo tenta convencê-la a abandonar aquela vida. Nenhuma mulher deveria aceitar tais condições; ninguém ali queria o bem dela, e tão logo envelhecesse, apanhasse uma doença, a atirariam na rua, a espancariam, a deixariam para morrer.

Seu tom logo se enternece, as palavras passam a envolvê-la como num abraço de irmão, e, cada vez menos amargo, o homem do subsolo se põe a contar a história de famílias que dão certo, que fazem nascer da aflição a felicidade, dos amores que se eternizam; logo percebe que se importa com ela.

Eis que, emergindo de um silêncio sepulcral, ela responde:

— É que você…. fala como se estivesse lendo um livro.

Ainda que não pusesse fim ao discurso, a resposta o destrói. O narrador se vê ferido, exposto ao ridículo; aquilo lhe surge como incompreensão brutal da pureza, do romantismo que o subsolo tenta mascarar, a derradeira prova de que o mundo não vale o homem que enterra.

Mas estranhamente ele decide pisar no próprio orgulho. E continua. Esmagado pelo que julga ser “o último ardil das pessoas envergonhadas e de coração virtuoso”, oferece o seu endereço, e até a sua amizade. Tenta salvá-la daquelas pessoas, daquela perdição, e vai embora.

Admirado então de sua capacidade para tocar um espírito tão prostituído e ao mesmo tempo virginal, por dias espera reencontrá-la. Acontece que, quando enfim vai ao encontro dele, ela o vê gritar com um criado. Desenhava-se ali, aos olhos da moça para quem exibiu sua piedade e sua compaixão, uma condição infinitamente inferior à imagem moral que ele tanto se empenhara em criar. Seu coração fica em ruínas. Julga-se indigno, envergonhado, humilhado, vencido a ponto de expulsá-la para não se ver vitimado pela decepção.

***

E o que o desejo mimético, ou desejo metafísico, teria a ver com a técnica literária?

Apesar de afiançar que existe uma técnica, eu talvez não tenha dito com clareza no que ela consiste. Nem expliquei o que faria das observações de Girard mais um meio de explorar a literatura para finalidades estrangeiras a ela, ou o que René Wellek chamaria de análise extrínseca.

Para Girard, o romancista quer, mais do que tudo, revelar o desejo metafísico. Seu objetivo seria exaurir as relações possíveis entre os personagens, tirando proveito do caráter imitativo que os rege. As leis que governam os romances de Dostoiévski, e principalmente Memórias do Subsolo, se identificam com os “progressos da doença ontológica”.

Nesse sentido, o desejo não surge como simples reflexo do que acontece na vida (embora a experiência também o confirme). Por ser o meio que os personagens têm de revelar a si próprios, a inspiração que os motiva, os modelos que adotam, os ódios que cultivam: tudo isso, se não constrói o enredo, pelo menos engendra os conflitos que o fazem real.

A uma plateia de pessoas letradas, o homem do subsolo narra a primeira parte do livro num estilo de autodenúncia, autoflagelo e autoindulgência saturado de maneirismos, repetições neuróticas e generalidades cuja finalidade maior, quando vista pela óptica do desejo metafísico, é tocar essa massa de leitores hipotéticos, espectros de um público pronto para detestá-lo, e assim convencê-la, mediante numerosas provas de que não precisa dela, de quão inteligente e injustiçado ele é. Em simultâneo, apresentando a degradação que o faz sofrer, tenta seduzir o leitor com sua capacidade de suportá-la; faz teatro para ele. Mas também para si.

Com os demais personagens não é diferente. A segunda parte do livro contém algumas cenas cujo desenvolvimento também se explica pela carência fatal que o faz imitar, em contraste com o orgulho que o faz dissimular essa dependência ontológica.

De compleição fraca e propensa à irritação, numa raiva por si próprio que aumentará no decorrer da vida, o homem do subsolo admirava desde pequeno os colegas que pareciam bastar a si mesmos. No entanto, o valor que lhes atribuía ia de encontro à rejeição que acreditava obrigatória para um sujeito tão superior como ele, que cultivava tudo o que havia de mais elevado e nobre, enquanto todos aqueles medíocres não lhe dedicavam a estima que, em silêncio, esperava. Odeia o oficial porque gostaria de ter para si a glória que pensa ter sido dada ao outro. Detesta o antigo colega porque queria não se sentir desprezado por ele. Manda embora a prostituta em cujo resgate tanto se esforçou apenas para não se tornar indigno da mesma posição em que se colocou. Por isso Girard vai dizer: “O subsolo é a imagem invertida da verdade metafísica”. É a rejeição absoluta da servidão a que o homem está sujeito pelo mero fato de existir. É, no extremo do exemplo, uma alucinada, mortal e patológica obsessão por autonomia. 

Oculto, dissimulado ou exposto: é o desejo metafísico que dirige as motivações dos personagens e o drama de seu desenvolvimento até os paroxismos do conflito. Quando se desvelam as figuras, e o romancista deixa entrever a transcendência desviada, em cujo centro está a ambição de tomar para si o ser do Outro e de participar de uma vontade ideal que sustenha os próprios fins, a técnica de construção e revelação de personagens acaba revelada, solta, iluminada pela escuridão. E, sendo o romance moderno o reino do personagem, que se mostra e se esconde, e ao fundo do qual toda a história se desenrola e toda a estética se edifica, nada impede que o trabalho do romancista consista em explorar, através do tempo e do espaço, a biografia mimética de cada um.