Soraia – por Douglas Lobo

Quando Bernardo Marinho se mudou para um novo apartamento, fazia nove meses que ele assassinara a esposa.

Gregório e três capangas haviam jogado o cadáver em alto mar.

Não houvera inquérito. Bernardo disse aos policiais que Selma havia pego roupas e sapatos e ido embora, após anos de conflitos.

A família dela pressionou por uma investigação. Bernardo convenceu o Secretário de Segurança, seu amigo, a barrar a ideia.

A família de Selma procurara as televisões e os jornais. Nenhum cobrira o assassinato. Bernardo tinha acesso aos empresários de comunicação — todos clientes de sua rede de restaurantes, com matriz ali, em Fortaleza, e filiais em outras sete capitais brasileiras.

Agora, um ano após a noite em que asfixiara a mulher nas águas da piscina, Bernardo se mudava para um apartamento de três quartos, em um condomínio de frente à praia. Ele gostava de mergulhar em seus empreendimentos e o próximo seria naquela área, onde a Prefeitura investiria milhões nos anos seguintes. Não havia concorrentes: nenhum investidor queria arriscar em um projeto anunciado há anos, mas que não recebera ainda um único centavo. Só Bernardo e alguns poucos empresários bem relacionados sabiam — por meio do próprio prefeito — que o investimento começaria para valer no ano seguinte.

Bernardo planejava construir outra filial da rede de restaurantes, na avenida que perlongava o mar.

Daí a mudança. Queria acordar e dormir ali; sentir o ambiente, o clima; colocar-se no lugar dos que passavam férias ou moravam ali — seus futuros clientes.

E assim o fez.

Começava o dia com um café-da-manhã, em um hotel cinco estrelas de frente ao portão do condomínio. Depois percorria o calçadão, de ponta a ponta. No trajeto, sentava às mesas das palhoças, debaixo dos coqueiros, os pés enterrados na areia, o mar de águas esverdeadas à frente. Pedia as comidas com mais saída nos cardápios — caranguejo, ostras, peixe. Conversava com garçons e atendentes de hotéis.

À noite, jogava pôquer com os amigos ou, em casa, bebia uísque e ouvia MPB até a madrugada.

Essa foi sua rotina durante os primeiros oito meses.

O dia-a-dia dele só mudou quando conheceu Soraia.

***

Bernardo a viu pela primeira vez no café-da-manhã, no restaurante do hotel.

Soraia sentava-se à mesa à frente dele. Ela tinha a pele branca e cabelos lisos pretos até a cintura. Vestia biquíni verde, sob uma saída-de-praia rendada. Os olhos, negros, fitavam Bernardo desde o momento em que ele se sentara.

Não era o tipo de mulher que o atraísse. Ele as preferia mais carnudas e de seios maiores.

Então, por que não conseguia parar de olhar para ela?

Algo nos olhos dela. Algo que ele não sabia explicar, mas que o afetava.

Tentou ignorá-la. Mas sempre acabava por voltar os olhos para os dela. E ela continuava a fitá-lo.

Depois de alguns minutos, Bernardo se levantou e foi até a mesa dela.

— Bom dia — ele disse, de pé, à frente dela. — Posso…? — ele apontou para a mesa.

Ela sorriu, com os dentes mais brilhantes que ele jamais vira. Anuiu com a cabeça, e Bernardo sentou-se.

Depois do café, foram à praia. Ele não quis entrar no mar, apesar da insistência dela.

— Estou de calça e blusa social — ele disse.

— No hotel vendem sunga.

Ele não cedeu:

— Você pode ir, se quiser.

— Sem você, prefiro ficar aqui.

Limitaram-se a se estender na areia.

À tarde, no apartamento dele, transaram.

Três meses depois, Soraia se mudou para o apartamento de Bernardo.

***

Nos meses seguintes, Bernardo teve a vida que sempre desejara.

Soraia cuidava da casa, preparava as refeições, limpava e passava as roupas. Recebia-o todos os dias com um sorriso e perguntas de preocupação, como se ele tivesse ficado fora por um ano. Quando ele chegava tarde ou saía sem avisar, ela não discutia nem fazia perguntas. (Tão diferente de Selma…)

Enquanto Soraia cuidava da casa, Bernardo se dedicava mais e mais aos negócios. O mestre-de-obras e a equipe de peões haviam começado a construir o restaurante. Todos os dias ele fiscalizava a obra e, junto com seu contador, cuidava das autorizações e taxas legais.

Bernardo tentava ignorar alguns aspectos estranhos de Soraia. Como o fato de que ela mudasse de assunto toda vez que ele lhe perguntava sobre a família; ou que ela não tivesse nenhuma amizade; ou que falasse com um sotaque que ele jamais ouvira em suas inúmeras viagens pelo Brasil.

Um dia Bernardo lhe perguntara de onde vinha aquele sotaque.

— Meus pais eram europeus que emigraram pra cá — ela disse. — Eles falavam assim e eu acabei pegando.

Ele desconfiava que fosse mentira. Não tinha como confirmar com os pais dela: Soraia dizia que eles haviam falecido em um acidente de trânsito.

Bernardo também tentava ignorar a insistência dela — quase uma obsessão — de convencê-lo a tomarem banho de mar juntos.

— Eu não gosto — ele dizia.

Bernardo não entrava no mar desde os 10 anos. Nessa idade, quase havia se afogado na maré vazante. Passara a ter fobia. Um dia disse isso a Soraia, e ela deixou de insistir.

Ele tentava ignorar também os olhos dela.

Algo naqueles olhos escuros o atraíra no início. Agora, algo neles o perturbava.

Talvez a sensação de que já os vira em algum lugar…

***

Oito meses após terem se conhecido, Bernardo chegou um dia mais cedo do que o normal.

Soraia não estava.

Ele enviou mensagem no celular dela. Em segundos, ela respondeu que estava a caminho.

Soraia chegou meia hora depois. Carregava uma sacolinha de plástico cheia de frutas.

— Fui no mercado — disse, enquanto punha a sacolinha sobre a mesa da sala. Erguendo-se nos pés, ela beijou Bernardo nos lábios.

— Pensei que eu tinha comprado tudo na lista — disse ele.

— Eu fiquei com vontade de comer ata e pêssego.

Bernardo notou que os lábios dela tremiam de leve enquanto ela falava.

Quando Soraia terminou de tirar as frutas da sacola, uma a uma, e de pô-las em uma fruteira sobre a mesa, Bernardo já desconfiava de que ela o traía.

***

Três dias depois, teve a certeza.

Um detetive que ele sempre contratava em situações assim lhe entregou fotos: Soraia a uma mesa de restaurante, acompanhada de um rapaz de cabeça raspada, camiseta e óculos escuros.

— Aquela…. — Sentado à frente da escrivaninha do investigador, Bernardo reprimiu o palavrão.

— Aciono Gregório? — perguntou o detetive.

— Pague 20% a mais.

— O alvo é ele? ela? ou os dois?

Bernardo pensou alguns segundos, antes de responder:

— O canalha.

Na semana seguinte, o investigador pediu a Bernardo que viesse ao escritório. Mal o empresário se sentara e o detetive já dizia:

— Gregório concluiu o serviço.

— Por que você me chamou? Só conversamos sobre esse tipo de trabalho quando algo dá errado.

— Antes de ele… terminar o serviço… o rapaz jurou que não tinha um caso com Soraia.

— E ele diria algo diferente? — perguntou Bernardo.

— Ele disse que trabalhava pra ela.

— Como assim?

— É aqui que o negócio fica estranho…

— Diga logo, homem!

— Soraia contratou ele pra jogar você no mar — disse o investigador. — Ele e mais dois iam pegar você e despejar na água. Eu não entendo…

A contragosto — não gostava de parecer fraco para os que trabalhavam para ele —, Bernardo explicou sobre a fobia dele com água do mar.

— E o que ela ganharia com você em pânico? — perguntou o detetive.

— Isso ela vai me dizer.

— Aciono Gregório de novo?

— De mulher cuido eu.

***

O primeiro murro derrubou Soraia de costas no chão.

Ela mal se levantara, a cambalear, quando um segundo murro a jogou de novo ao piso, de bruços.

Desta vez, ela continuou no chão. O sangue escorria de seus lábios e caía sobre o tapete verde.

— Por que você quis me jogar no mar?! — perguntou Bernardo.

Ela começou a se arrastar rumo à varanda.

Ele se debruçou sobre ela e virou-a. Esmurrou-a:

— Responda!

Ela se lamuriava.

Bernardo esmurrou-a de novo.

— Responda! Ou eu mato você!

Ela continuava a se lamuriar.

Ele pôs-se a esmurrá-la.

Alguns minutos depois, quando ele parou, Soraia estava morta.

***

Naquela noite, Gregório e mais três capangas vieram ao apartamento buscar o cadáver de Soraia.

— Joguem no mar — disse Bernardo.

— Talvez seja melhor despejar em outro lugar, senhor — disse um dos capangas.

— Cale a boca — disse Gregório.

— O que há? — perguntou Bernardo.

— Naquela noite, com a outra mulher — disse o capanga —, aconteceu algo esquisito.

— Cale a boca! — Gregório deu um passo em direção ao capanga. Foi contido por um gesto de mão de Bernardo, que disse:

— Ele é o único aqui que já foi pescador. Se ele não quer entrar no mar, quero saber por quê.

O capanga explicou que naquela noite, quando voltavam à costa, ele havia visto algo nas águas.

— Como assim, “algo”? — perguntou Bernardo.

— Tinha jeito de gente. Eu chamei os outros, mas quando eles chegaram já tinha desaparecido.

— O mar é cheio de animais, você sabe — disse Bernardo.

O capanga contou que logo após a visão havia caído uma tempestade. As ondas haviam triplicado de tamanho e o navio quase naufragara.

— Mulher em barco é agouro ruim — ele disse. — Os pescadores mais velhos já alertavam.

— Escute aqui — Bernardo apontou-lhe o dedo indicador em riste —, eu não pago a você pra se assustar com mulher — e, dirigindo-se a todos: — Saiam agora e se livrem dela.

***

Quando o primeiro capanga morreu, afogado em um banho de mar, Bernardo achou que havia sido só um acidente.

Quando o segundo morreu, afogado durante uma pescaria em alto-mar, ele também achou que havia sido só um acidente.

Quando o terceiro morreu, Bernardo perguntou por telefone ao detetive, que acabara de lhe informar o ocorrido:

— Como foi?

— O cara tava numa vila de pescadores tomando cachaça. Saiu pra mijar no mar e, do nada, caiu na água. Apareceu morto três horas depois.

— Diga a Gregório que me encontre na praia daqui a duas horas.

— A praia a essa hora não é perigosa?

— Você acha que tenho medo de alguns marginais?

Ele desligou o telefone e, de sunga, ergueu-se da espreguiçadeira de madeira à beira da piscina. Pegou a toalha, calçou as chinelas e, após se enxugar, vestiu camiseta e bermuda. Seguiu pela rampa que passava sobre a piscina e terminava em um passante, que levava à ala de apartamentos.

Bernardo caminhava pelo passante quando viu, no chão à sua frente, à esquerda, uma sombra mesclar-se à sua.

Uma sombra de mulher.

Ele parou e se virou.

Ninguém. Ao redor, sob o luar — as luminárias de refletor já haviam sido desligadas —, só a grama e os coqueiros anões do jardim.

Ele deu um meio sorriso. Pigarreou, virou-se e, após alguns passos, abriu a porta de vidro que levava aos apartamentos.

***

No apartamento, Bernardo tomou banho, vestiu as primeiras roupas que sua mão alcançou no armário e saiu.

No corredor dos elevadores, o sensor de luz demorou a ligar — o lugar inteiro ainda às escuras mesmo quando Bernardo já avançara alguns passos. A sombra dele, à frente, na parede à esquerda, misturava-se às do ambiente.

E logo a uma outra: a mesma que ele vira antes.

Desta vez, no ar, uma voz feminina:

Assassino.

Bernardo conhecia essa voz…

Ele parou e se virou.

De novo, ninguém.

À frente dele, a sombra desaparecera.

O coração de Bernardo começou a bater com tanta intensidade que ele parecia ouvi-lo. Apertava as mãos. Sentia pontadas no estômago.

Ele conhecia aquela voz…

(Selma.)

***

Gregório esperava por Bernardo no limite da areia com o mar. As águas às vezes chegavam-lhe até os pés, calçados em tênis esportivos. Vestia calça jeans, camisa e blazer cinza — necessário para que escondesse a arma que sempre trazia à cintura. Segurava à mão direita uma folha de papel.

Bernardo desceu do calçadão e foi ao encontro dele.

Enquanto caminhava, esfregava as mãos suadas uma na outra. Na areia ao redor, coqueiros e uma palhoça. Pedaços de madeira abandonados pelas águas. Restos de comida. No ar, o som do quebrar das ondas. 

Assim que chegou perto de Gregório — com alguma distância para que a água do mar não lhe tocasse os pés —, Bernardo percebeu que o outro cruzava e descruzava as mãos.

— Alguém matou os caras — ele disse a Bernardo.

Gregório não parava de olhar ao redor. O empresário percebeu que o outro tinha medo.

— Quem pode ter sido?

— Eu tenho uma lista de suspeitos. Dez nomes — ele entregou a folha de papel a Bernardo.

O empresário passou os olhos pela lista. Todos, nomes de homens a quem ele havia passado à frente nos negócios. Devolveu a folha de papel e disse:

— Descubra quem foi. E tire ele de circulação.

Gregório anuiu com a cabeça.

Bernardo pôs-se a caminhar de volta ao condomínio.

Desta vez, sem temor. Voltara a sentir-se no controle da situação.

Ele nem dera cinco passos quando Gregório gritou.

Bernardo se virou.

No mar, só braços e cabeça fora da água, Gregório gritava por ajuda, a voz às vezes abafada por uma onda.

Bernardo correu até o mar.

Quando parou, no limite da água, Gregório já submergira.

***

Bernardo se contraiu, dor na barriga.

Continuava na areia, em frente ao mar.

O mesmo mar que sugara Gregório há cinco minutos.

Só então ele se deu conta do traço comum na morte do outro e dos capangas: haviam sido mortos no oceano.

O mar está atrás de nós.

Ele tinha dificuldade de respirar. Pensava no que fazer.

Então, ele ouviu, atrás dele, a mesma voz de antes:

Assassino.

Virou-se.

E, desta vez, viu.

A alguns metros dele, sobre o calçadão.

Soraia.

(Ou seria Selma?)

Não podia dizer.

Só agora percebia como as duas se pareciam. Tinham o mesmo tamanho de seios e de busto; o mesmo tipo de cabelo; o mesmo tipo de olhos…

(São os mesmos olhos.)

Soraia — ou Selma — olhava para ele. Usava um vestido verde. Sorria.

Ela tinha a mesma aparência de quando se conheceram. Os machucados que ele lhe impingira pareciam ter cicatrizado — como se nunca tivessem acontecido.

Bernardo cruzou os braços, em uma tentativa de aplacar o frio que de súbito lhe percorria o corpo. O peito dele se contraía, como se o ar fora arrancado de um golpe. Os lábios haviam se enrijecido, secos.

Bernardo correu pela areia, rumo à direita.

Ele não compreendia o que ocorria. Só sabia que estava em perigo. Tinha de alcançar o posto policial, na praça a alguns metros dali.

Enquanto corria, olhava para trás.

Ninguém.

Ainda assim, continuava a correr.

Ele passava por trás de uma palhoça quando uma mão o deteve pelo bíceps esquerdo.

— Pra que a pressa, chapa? — perguntou um homem sem blusa, de bigode ralo e brincos nas orelhas, e que lhe segurava pelo braço.

Bernardo desvencilhou-se com um safanão.

O homem recuou dois passos. Só então Bernardo percebeu que ele se fazia acompanhar de mais dois.

— Ora, ora — disse o homem. — O cabra é valente.

— Vamos ver se ele tem dinheiro — disse um outro.

Os três avançaram sobre Bernardo.

O empresário esmurrou o rosto de um. Depois, a barriga de outro. O terceiro lhe deu um soco no queixo. Bernardo cambaleou. Bloqueou com o antebraço o segundo soco do homem e esmurrou-lhe a mandíbula.

Os três homens pararam o avanço.

Com o esforço da corrida e da luta, Bernardo suava. Respirava pela boca.

— O velho até que briga bem — disse um dos homens.

— Vamos ver se briga debaixo d’água — disse outro.

Eles avançaram de novo. Bernardo esmurrou mais um. Os outros dois o agarraram, um em cada braço. O terceiro lhe deu um soco no estômago. Sem forças, ele se deixou arrastar até o mar.

Com os dois homens ainda a segurá-lo pelos braços, o terceiro afundou a cabeça de Bernardo na água.

Submerso, o empresário se debatia. A água acima de sua cabeça borbulhava, à medida que ele perdia o que lhe restava de oxigênio. Os homens que o seguravam se mantinham firmes, sem perder o equilíbrio nem mesmo quando as ondas quebravam sobre eles.

Pouco a pouco, os movimentos de Bernardo cessaram. Os braços pararam de se debater. As pernas deixaram de chutar a areia. As bolhas na superfície da água desapareceram.

Súbito, uma onda com o dobro do tamanho das anteriores quebrou sobre os três homens. Sem equilíbrio, aquele que mantinha a cabeça de Bernardo submersa soltou-a, por um segundo. O empresário emergiu, inspirou o ar e, com um safanão, livrou o braço direito. Usou-o para socar o estômago do homem que lhe segurava o outro braço. O rapaz curvou-se com um grito de dor. Com o braço esquerdo livre, o empresário esmurrou o homem à direita, quebrando-lhe o nariz. Então socou o homem à frente, que caiu em meio às águas.

O homem com nariz quebrado correu rumo à areia. Foi seguido pelo outro. O homem à frente de Bernardo se aprumou, punhos cerrados à frente. Ao olhar para os lados e se ver sozinho, também correu para a areia.

Bernardo deixou-se ficar em meio às águas. Não ligava para as ondas que quebravam em suas costas; nem para a areia que se mexia sob seus pés; o oceano – percebeu então – não lhe afetava mais.

Ele sorriu.

O sorriso se desfez quando viu, na areia à frente: Soraia.

Bernardo correu rumo a ela:

— Eu não tenho mais medo do mar! Nem de você!

Ele saiu das águas e correu pela areia, até Soraia:

— Você não me queria no mar?

Ele agarrou-a pelo braço e arrastou-a, atrás de si, até dentro das águas.

Uma vez no mar, Bernardo envolveu o pescoço de Soraia com as mãos e mergulhou a cabeça dela na água.

Soraia se debatia. Arranhava os antebraços dele com as unhas. Através da água, Bernardo via o rosto dela se contrair, os olhos arregalados. Só a perdia de vista, por alguns segundos, quando uma onda quebrava sobre ele, os sulcos de espuma remanescentes a lhe dificultarem a visão.

A moça agitava a esmo os braços e as pernas. Abriu a boca, que se encheu de água. A semelhança com Selma parecia maior à medida que os movimentos dela cessavam e as últimas bolhas de respiração se esvaíam… à medida que Soraia…

Sorria.

Bernardo não acreditou.

Ela passara a sorrir.

Ele também não acreditou quando as bolhas voltaram a pulular.

Antes que Bernardo pudesse entender o que ocorria, uma onda quebrou sobre ele. Por alguns segundos, ele perdeu Soraia de vista. Ao mesmo tempo, sentiu quando ela lhe escapou das mãos submersas.

De braços abertos, ele olhou ao redor.

Ninguém.

Ouviu um barulho atrás de si. Virou-se.

Dentro da água, de pé, Soraia.

— Na terra — disse ela — eu não posso ferir você. São as regras. Mas aqui…

Bernardo avançou rumo a ela. Antes que a alcançasse, Soraia submergiu.

Ele mergulhou atrás dela.

Alguns segundos depois, emergia.

Pôs-se a recuperar o fôlego. Nesse meio tempo, olhava ao redor, à procura de algum sinal dela. 

— Eu vou te matar! Ouviu? Eu vou…

No fundo, algo resvalou em sua panturrilha direita.

Logo após, algo resvalou na panturrilha esquerda.

Algo escorregadio.

Havia algo ali, nas profundezas.

(Na terra eu não posso ferir você.)

Ele precisava sair do mar.

Bernardo correu rumo à areia.

Enquanto corria, algo submerso nadava à sua esquerda, a superfície das águas em agitação com o movimento.

A água rebaixou-se à altura da cintura dele. À frente, a areia. Mais alguns passos e estaria a salvo. Só mais três — não, dois — não, agora um passo…  

A escuridão o engoliu. Algo lhe agarrara os pés e o arrastava debaixo d’água, rente à areia, rumo ao alto mar. Bernardo tentou se soltar, deu chutes, mas sentia-se preso como que por uma corrente de metal. De algum modo, ele conseguiu se acalmar e controlar a respiração. Manteve assim o oxigênio nos pulmões. Até o momento em que percebeu, por uma dor nos ouvidos, que algo o levava ao fundo do oceano, submergindo-o a uma profundidade que só os mergulhadores e a fauna marinha conheciam. O desespero o invadiu, e o que lhe restava de ar foi embora em segundos.

Minutos depois, o mar despejava na areia o corpo de Bernardo.

No oceano, algo nadava.

Ou melhor, alguém.

Soraia.

Corpo nu da cintura para cima, ela cortava as ondas como se fossem de ar.

Em segundos chegou ao alto-mar.

Então, pulou acima das águas, a silhueta de encontro à lua.

Metade mulher, metade peixe.

Por um segundo ficou parada no ar, estática como uma pintura.

Até mergulhar e sumir, no oceano que se tornara seu único lar.

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Douglas Lobo é jornalista e autor de três romances — o último deles, “Areia Movediça”, publicado pela editora Danúbio.