Sonetos para um anjo caído – por Henrique Nascimento

Eu vos revelo um grande mistério. Vós estais entre o abismo da altura e o abismo da profundeza. Em ambos vos aguarda um Companheiro; e esse Companheiro sois vós mesmos.

Liber Tzaddi vel hamvs hermeticvs sub figura XC

I.

E só depois que ouvi de tua avó:
Bruno, Bruno. Eu, que só te conhecia
como esse uno alvo rei de um nome só,
Ivan, Sol Negro da melancolia.

Rei? Príncipe, é melhor; porque, olha, o Dia
se arrasta atrás de um mar de astros e só
virá muito depois, na companhia 
desse que és, que serás, do Anjo Maior

com alvíssima trombeta sobre o colo,
o Noivo Desejado e a Luz Total —
sangue do Leão de Jade, pois vitriolo.

E por ser tanta a Luz, ao Seu redor
as sombras são mais profundas, e mal
vê-se algo além da Luz: dual e uma só.

II.

Eu não sabia bem se íncubo ou silfo
aquela aparição de luz ambígua:
alvo raio de luz, raio mortiço
que intenso brilhou porque breve é a vida.

E veio vindo, silfo ou raio caído 
da aljava de Zeus, na brusca subida 
com Ganimedes? Veio vindo, o íncubo
que, de cabeça baixa, ao redor tinha

um tipo de névoa, enxofre ou fumaça
dando a impressão de etéreo par de asas.
E enfim me disse a aparição ambígua,

pertinho de mim: — Tenho uma parada
pra contar… — Mas só me abraçou, do nada,
e feito um raio me beijou de língua.

III.

É feito a luz. É feito a luz que se 
divide ainda mais exuberante
e, em novas cores, múltipla e distante
de si, ainda é una. Você se esquece

e se deixa levar… E essa manhã
que encanta e envolve, mas logo se afasta
só porque sobe o sol, revela vasta
a sua luz na luz do ocaso, Ivan.

E enquanto vai flanando no rolê
qual se flutuasse e a outros deslumbrando,
fico de longe e só vejo você,

você que, como a luz, é livre e leva 
consigo a cor que desejar e quando
se cansa, não faz mal: sabe ser treva.

IV.

Natural que te afastes, silencies
que nem os animais miúdos que têm
receio e somem só porque alento,
luz ou rocio roça na planície.

O que dizer então quando a hora nula
suspende o espaço, e o tempo passa como
passa pra quem prende a respiração;
quando é dia, mas do nada vira noite,

e, olhos cegos, ouvem-se mil pássaros
cantarem ainda mais, porque mais noite?
É do instinto temer a Maravilha.

Coração na garganta, a Noiva foge
ao ouvir: “Venha!” – Enquanto a luz se embrenha
no breu e no céu brilha Ígnea Aliança.

V.

Fecha os olhos, se roça em tua face
a brisa matinal, a luz das dez.
Com um riso bobo, sente esse trespasse
doce da luz, penetrando através

das pálpebras, da mesma luz que quase
te corta em dois, se é tarde, e dos teus pés
deita um outro corpo: o umbroso disfarce
desse Anjo Negro que também tu és.

Pura condensação da treva, sobre
a terra ele se arrasta, e então vanesce
pra te espreitar enquanto a noite o cobre.
Mas abre os olhos, porque resplandece

o sol das onze e logo estará a pino:
hora em que a extrema luz faz tudo uno –
e, eclipsando-a, à tua sombra vai te unindo
e o duplo tornando em Um, Ivan Bruno.