Seu Arlindo – por Gabriel Coelho Teixeira

Foi no deslocamento de alguns poucos minutos de bonde elétrico, num trecho da Avenida Rio Branco, que me deparei com a figura de Seu Arlindo. Era início de tarde, faltava pouco pro meio-dia, o calor do Sol ainda era agradável. Tomei o bonde na Cinelândia, querendo apenas evitar a caminhada até a Presidente Vargas, onde eu desceria, três pontos à frente. Sentei próximo a uma das entradas, no canto da janela, o assento ao lado ficando vago.

                    O bonde rumou pela Avenida, cruzou duas ou três ruas transversais e parou no ponto seguinte, o da Carioca. No sobe-desce ligeiro de passageiros, notei uma figura mais vagarosa que as demais adentrando o bonde com dificuldade no andar, toda encurvada, amparada num braço por uma moça, e no outro carregando uma bengala. Era um senhor que julguei de idade extremamente avançada. Apesar do calor, o velho estava todo agasalhado com um moletom cinza, a boca e o nariz tampados por uma máscara médica descartável, um boné preto na cabeça e os olhos cobertos por um robusto par de óculos escuros. Seria cego? Tantos eram os ornamentos sobre o seu rosto que não pude identificar nenhum aspecto particular das suas feições, só uma camada da pele branca descoberta aqui e ali, e o grisalho do cabelo próximo à nuca, fora do alcance do boné — nada, enfim, que identificasse o velho.

                    Com dificuldade, ele alcançou o banco ao meu lado e se sentou, sempre amparado pela moça.

— Quando chegar no seu ponto, é só o senhor me chamar — disse ela e se retirou.

                    Nisso voltei a vista para fora da janela, fitando distraído as fachadas de prédios que começavam a se arrastar para trás, divagando, já quase esquecido daquela cena banal.

— Tá movimentado hoje, né, garoto?

                    Num rompante, minha atenção se voltou de novo para o velho, que dessa vez puxava uma conversa descomprometida. E era tal o alheamento em que me encontrava que precisei conferir os arredores antes de responder. Então, pela primeira vez até ali, olhei com atenção os bancos do interior do bonde, todos ocupados, e o corredor salpicado de gente em pé ao longo da sua extensão. Lá nos fundos, o pessoal estava mais concentrado. Parecia ser o grupo de amigos que subiu na mesma estação que eu. Não tinha certeza, apenas me parecia ter visto um ou outro dos que estavam no grupo. Mas de fato estava mais cheio do que de costume para um fim de semana.

— Deve ser por causa da maratona. — O velho concluiu antes que eu pudesse responder.

— Maratona?

— É, tá tendo uma maratona hoje. Partindo lá do Leblon até ali na Glória. É hoje e amanhã. São vinte quilômetros de corrida, é mole?

— É, vinte quilômetros só dá pra eu fazer andando, correndo não.

                    E o velho riu com graça desse meu comentário. Olhei-o e, contagiado, esbocei um leve sorriso.

                    Ele estava sentado numa posição firme. A coluna ereta o máximo que lhe era possível, as pernas seguindo a linha do prolongamento do corpo, postas lado a lado e dobradas num ângulo bem definido de noventa graus. Sobre as pernas, os braços apoiados, e entre elas, a bengala posicionada. O velho ria e falava olhando sempre para a frente. Seria mesmo cego? A pele branca do rosto, nas pequenas camadas descobertas, estava com uma leve vermelhidão decorrente da risada. Não me era possível ver seus olhos nem de perfil, dada a espessura da armação dos óculos escuros, mas eu podia supor que estivessem repuxados, com as rugas do canto dos olhos ressaltadas pelo riso. Na nuca e na costeleta se prolongavam, para além da cobertura do boné, o grisalho do cabelo raspado baixinho.

— É, andando dá, mas correndo é duro. — Respondeu, se recuperando.

                    Então decidi emendar na conversa:

— Nunca fui até o Leblon.

                    E ele reagiu empolgado:

— Não? Passando ali por Ipanema, logo em seguida vem o Leblon.

— Até Ipanema já fui, mas nunca passei dali.

— Ah, é muito fácil. — E o velho, nesse ponto, descreveu um tão bem elaborado itinerário de ruas, túneis e avenidas do Centro até o Leblon, que me foge reproduzir de cabeça. — É de lá, da Delfim Neto que vai partir a maratona. — E de novo descreveu um itinerário, dessa vez todo o trajeto da corrida. — Passa ali pelo Aterro do Flamengo e finaliza na Marina da Glória. — Concluiu. Eu olhando para ele e ele sempre olhando para a frente.

— O senhor conhece bem a cidade. — Só pude constatar, admirado.

— Ah, garoto, eu conheço isso aqui tudo. Moro aqui há mais de trinta anos. Moro ali mais pra frente, na praça Mauá. Ando isso aqui tudo.

— O senhor anda sozinho?

— Sozinho. Eu conheço isso tudo.

                    De repente, exaltado, olhei com urgência de volta para a janela. Havia me esquecido do rumo do bonde e não sabia mais em que estação estava. O bonde iniciava uma nova partida e pela fachada dos prédios identifiquei ser a parada da Sete de Setembro.

— Vou descer na próxima. – Avisei.

— Ah, na Candelária?

— Isso.

— Tá certo.

                    O velho ficou em silêncio. Aparentemente a conversa estava finalizada. Mas decidi emendar, preocupado por não cair em falta de educação ao não lhe dizer também onde eu morava:

— Moro na Lapa.

                    E o velho retomou a conversa:

— Ah, ali na Frei Caneca?

— Não, na Riachuelo.

— Ah, sei. Eu já morei ali na Senador Dantas, conhece? Pertinho dos Arcos.

— Conheço, sim.

                    E, com pesar, notei que minha estação se aproximava. Foi quando me lembrei de perguntar:

— Qual o nome do senhor?

— Arlindo. — Respondeu. — E o seu? — E eu lhe disse.

Em seguida levantei-me enquanto o bonde freava na estação.

— Vou ter que descer aqui. — Informei, pesadamente.

— Tá bom, garoto. Vai lá.

                    Mas o velho não se mexeu. Ele precisava se mexer um pouco para liberar o espaço bloqueado pelas suas pernas, mas eu me levantei e ele não se mexeu. Seria realmente cego? Mas como andava assim, sozinho, pela cidade, e nessa idade? Não teria família?

— Posso dar uma passada?

— Ah, sim, claro. — E ele se arrastou para o banco em que eu estava enquanto eu o contornava pela frente. — Vá com Deus, garoto. Deus o abençoe.

— Deus abençoe o senhor também, Seu Arlindo. — E desci.

                    Do lado de fora, na estação, tomei passo rumo ao meu destino. Mas quando o bonde iniciou a partida, parei e olhei na direção da janela onde eu estava anteriormente, o lugar agora ocupado pelo perfil do velho, que vagarosamente passava diante de mim na velocidade do bonde, eu acompanhando com a cabeça e ele sempre olhando para a frente.

                    Seria mesmo cego? Mas como andava pela cidade assim sozinho? Não teria família? A família o deixava assim? — A velocidade do bonde aumentava progressivamente. — Talvez não seja cego, mas provavelmente tenha a visão muito debilitada. Ele todo parecia muito debilitado. Encurvado, andando com dificuldade, todo coberto. E sozinho. A família não se preocupa? — Eu acompanhava com a cabeça. — Mas tão lúcido, tão bem memoriado, tão atento, esperto, animado, bom de conversa. — Sua silhueta era agora um tênue fio à frente. — O que o senhor faz da vida? O quanto o senhor sabe? O que mais sabe? — Minha vista não o alcançava mais. — Eu tornarei a vê-lo? — O bonde embalou e se foi.

                    Deus o abençoe também, Seu Arlindo.