Semana santa em Granada

– um conto de Tiago Amorim

Pela porta da frente saía um andor: dourado, cheio de flores, uma grande imagem de Nossa Senhora triste. Oito homens de preto iam carregando-o a passos curtos, o ritmo lento, os degraus da escada sendo pisados um a um, em direção à rua. De repente via-se as gentes, uma multidão de almas, todas ali em volta esperando… devia ser uma procissão. Havia música, e muito alta, tocada por instrumentistas que caminhavam logo à frente – a maioria deles fantasiados de mantas brancas e capuzes bem escuros. A noite ia caindo, o céu já não era azul, e a câmera ainda pôde mostrar, num voo rápido feito do alto, as senhoras que vinham atrás da Virgem, os vestidos iguais e rendados, os terços juntando as mãos e os véus cobrindo as cabeças.

Que horas eram? Duas? Olhou mais de uma vez para o relógio de ponteiros que ficava sobre a passagem para a cozinha. De fato, madrugada, o dia fora tão corrido e subitamente terminava assim, com ele sentado à beira do sofá, segurando um pano de prato úmido enquanto assistia, casualmente, àquele ritual transmitido pela Tv. Isso parece a Espanha, disse a meia voz, e lembrou-se do controle remoto, talvez se eu aumentar só um pouquinho o volume as crianças não acordem. Deixou o pano de lado e começou a procurar o controle, muitos brinquedos ainda para guardar, na cozinha uma panela de molho que requiriria força e esponja de aço. Onde foi que elas deixaram, ia falando consigo baixinho, o medo de pisar nalgum bicho de plástico.

Cuidadosamente, afastava com as mãos uma coisa da outra, empilhando de um só lado do tapete tudo o que ficara da brincadeira dos filhos. Depois de um tempo desistiu da busca, era impossível achar uma coisa pequena a meia luz, e se aproximou da TV, apertando com o indicador esquerdo o botão do volume até dezesseis. Afastou-se um pouco, avaliou a altura do som, julgou que estava bom assim e voltou para o sofá. Agora podia entender o que dizia o locutor. Tratava-se da Páscoa, provavelmente da Sexta-feira Santa, e aquela não era qualquer procissão, tinha um quê de coisa antiga e tradicional, as melodias, trajes e ruas, tudo levava a crer que fosse na Espanha – e por alguma razão isso o animou, mas continuou em silêncio, prestando atenção.

Foco nas velas, uma infinidade delas em volta dos andores (havia mais um agora, Jesus Cristo debaixo de sua cruz pesada), também nas mãos da multidão, e entrelaçadas com os dedos pequenos dos coroinhas. As chamas eram todas iguais, mas algumas velas eram cinzas, outras douradas, e muitas outras brancas. Duas ou três ruas depois e o segundo andor, maior do que o primeiro, mais rodeado de gente, parou sob um casarão ocre e, da janela do quarto andar, viu-se uma chuva de papéis prateados, que como uma brincadeira do alto caíam quase todos sobre aquele Cristo em sofrimento, e apenas nele. Estava mais escuro, a noite era uma realidade, e da esquina seguinte surgiu um novo grupo de encapuzados, estes com vestes amarelas. Puseram-se entre os dois andores, o da mãe e o do Filho, e pouco a pouco ditaram o ritmo das passadas, um pouquinho mais rápidas do que antes, e o modo de caminharem dava a impressão de que navegavam, na parte de baixo as suas túnicas fazendo ondas, para a direita, para a esquerda, e Jesus um quê mais triste, chegando ao fim de uma viagem.

É Granada!, exclamou, e isso saiu tão natural que lhe escapou mais intenso, decibéis acima da televisão. Então foi sendo tomado por evocações, a aula em que o Padre Silmar falara da tradição andaluz, a Semana Santa em Granada, a afluência de católicos de toda a Espanha para a cidade, a beleza dessas celebrações que antecediam a Ressurreição – devia ser o primeiro ano do Seminário, e pensando nisso pôs o queixo inteiro sobre as palmas das mãos.

Nós vimos fotos, era bem assim mesmo, falava diretamente com a televisão, como quem discutia com alguém da família a respeito do nome do restaurante a que foram durante a viagem de férias. Se visto de longe, vivia um arrebatamento, as cenas que iam sendo transmitidas, cada vez mais cheias de cores, de gente, de músicas, de velas, capuzes, santos, das Dores e Crucificado. Então deu-se conta: numa espécie misteriosa de simbiose, movia a câmera com seus olhos. Querendo saber quem vinha atrás das mulheres de véus, bastou inclinar a cabeça para o lado e, aleluia, dois améns, os personagens revelados no mesmo instante, o locutor do programa em silêncio, nada mais se interpondo entre Saulo e a Via Sacra.

Era ele mesmo um dos homens que carregavam o maior andor. Também vestia um terno preto e luvas brancas, e sentia o peso de toda aquela estrutura sobre seu ombro direito. Rezava, a cada passo dado e lento, uma jaculatória. Não ouvia os sons vindos de fora, os sinos, ou os cânticos, ou o murmúrio de toda a gente; apenas a si mesmo, seus versos limitados, as repetições aprendidas no Seminário. Novamente um seminarista, sabia-o com certeza invulgar, e por isso sustentava o enorme Cristo ali, com mais sete escolhidos, na procissão da Semana Santa em Granada.

A missa inaugural que celebraria, na Antiga Catedral da Sé do Rio de Janeiro, seus avós presentes, um grupo de velhos amigos a quem daria a hóstia consagrada. E seu primeiro sermão, e as confissões que atenderia todos os dias, e o trabalho pastoral com os refugiados, e o café da tarde na casa daquela paroquiana. Via todas essas coisas diante de si, à frente de seu passo de procissão, a justificação perfeita de seus sonhos de menino. Aquela vez em que um padre entrara em sua casa, e perguntara se queria servir a Deus, com a anuência feliz e pobre de Dona Ana e Seu Arlindo. O Senhor capacita os escolhidos, não te preocupes, rapaz, verás aos teus todos os meses, e para eles tu serás grande alegria!

E depois todos os anos de estudo desperdiçados, num minuto o coração batia fora da Igreja, atrás daquela menina, você está certo disso, Saulo, nem sempre o sentimento é bom conselheiro.

Casou-se em 2015, poucas pessoas na capela do colégio onde trabalhava, a lua de mel em Caiobá (a casa de uns amigos, tomem emprestada, fiquem quantos dias quiserem), e o constrangimento da noite de núpcias, sua completa inaptidão, o receio de ser um homem que peca por querer demais alguma coisa. Nove meses depois, mesmo na dificuldade, foi festejado o nascimento de Samuel.

Do apartamento alugado para uma casinha no bairro mais longe do centro, financiada, trinta anos de obrigações contra todo romantismo. Um mês após o outro, as contas se avolumando, as visitas esporádicas dos amigos, em dezembro de 2018 a Maria Luísa, lourinha como ele, uma mancha na bochecha direita, parecia uma pinta escura, um problema estético com o qual a filha lidaria no futuro; de quem o herdara?

Ao piscar mais demoradamente voltou – não estava mais em Granada. O programa que passava na Tv agora era outro, uma entrevista com um sujeito que tinha cara de economista. Percorreu a casa com os olhos, depois do transe, visitando cada canto da sala como se tivesse passado os últimos anos fora. Envelhecera? Passou a mão esquerda sobre a cabeça, estava mais calvo do que na juventude, e no dedo médio enxergou um pelo branco. Ainda era magro, tão magro quanto fora no passado, e de um segundo para o outro lembrou-se de comer, as pessoas comem, e várias vezes ao dia, por isso elas são mais vistosas e encorpadas, e ele era assim, apagado, como uma das velas da procissão que, estando junto das outras, ninguém percebe que já não queima.

Esses eram pensamentos perigosos, os conhecia, anos antes um episódio depressivo, a Paula a seu modo preocupada, quase foram ao psiquiatra. Heroicamente, um dia acordou e disse para si chega dessa história, a casa precisa de mim e eu não tenho motivos para tristezas. No seu íntimo, um tempo depois, chamou aquele período de tribulação, desde o seminário podia reconhecer as armadilhas do diabo. Foi até um padre amigo, relatou o que passara, a melancolia profunda e a falta de apetite, e recebeu em troca alguns conselhos, talvez se você mudasse de trabalho, tivesse expediente numa empresa, assim teria colegas, a solidão é também o berço da tentação. A rima da frase tornou-a fácil de memorizar; saiu de lá repetindo a solidão é também o berço da tentação, a solidão é também o berço da tentação.

Era uma quarta-feira, e cumpriu a penitência na mesma igreja, durante a novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Chegou em casa mais leve, qualquer resquício do mal havia desaparecido. E desde então procurou ficar menos tempo sozinho, e as tarefas pelo computador eram intercaladas com idas ao parque, mais vezes ao mercado, o retorno para o coral da paróquia, ensaios duas vezes por semana – apenas um mês depois reencontrou sua voz; sentiu-se feliz. 

Que horas são? Quase três. Como se tivesse parado de brincar de esconde-esconde, o controle remoto surgiu entre as almofadas, quase ao seu lado. Pegou-o solenemente para dar fim ao rito, e desligou a televisão, silenciando para sempre o personagem entrevistado que não parava de falar. Foi então que a sala ficou escura, tão escura quanto um quarto na hora de dormir, e pela primeira vez nessa noite sentiu muito sono. Bocejou, desejando ficar ali mesmo, o sofá tão confortável, um presente dos avós.

A panela! Era o último ato da procissão de terça-feira, sobre a pia de uma cozinha que ficava numa casa do bairro Abranches, nos limites de Curitiba, bem longe da bela e ritualística Granada. O tempo nem é o da Páscoa, estava em setembro e a cidade floria, e as imagens da madrugada não passaram de um programa de televisão. Riu-se, afinal ninguém estava sendo sepultado. E quando se levantou esticando o pano úmido sobre o ombro esquerdo, fez um movimento encenado em direção à porta – como quem carrega um andor pesado e, em cima dele, uma foto de família.