Quatro poemas de Robert Frost, traduzidos e anotados

– Por Gabriel Campos Medeiros

O poeta americano Robert Frost (1874-1963), lido e laureado, a quem, “com um sorriso campestre nos lábios e um copo de uísque na mão”, Paulo Mendes Campos “teve a graça de conhecer”, nomeando-o “poeta-fazendeiro”, era, segundo T.S. Eliot, “o mais eminente, o mais distinto poeta de sua época.”

Aclamado na América, pouco cultivado no Brasil, uma recolha de sua obra foi editada na década de 1960, a tradução, a cargo de uma absconsa Marisa Murray, é péssima, grosseira, mecânica; entre trabalhos acadêmicos, acham-se traduções melhores. 

Embora da classe dos poeti laureati, Frost não deixou de amar e percorrer le strade che riescono agli erbosi fossi de Montale. “The Road Not Taken”, “Stopping By Woods On a Snowing Evening” e “The Mountain” mostram que o menino, nascido em São Francisco e crescido na Nova Inglaterra, variou tópicos típicos do Canto I; estrada, caminho e homem, eis os seus mais recorrentes motivos. 

Não só lírico, Frost foi também dramático. Continuador da tradição inglesa do verso, compôs personagem e cena, decassílabos rimados e brancos, ágons e diálogos; verdadeiros contos, segundo Campos, como “Mending Wall” e “The Death of The Hired Man”.    

Trago aqui, entretanto, traduções do Frost subjetivo, melódico, do Frost propriamente lírico. Traço uma linha temporal, e começo como começa o poeta, vertendo dele o poema com que abre seu primeiro livro, A Boy’s Will (1913), publicado quando tinha quarenta anos. 

1. “Comigo Mesmo”

“Into My Own” é soneto de prospectiva meditação, peça de homem maduro, ciente de seu ofício, seguro de seu estilo e afinado em seu assunto; pode ser lido como preâmbulo, ou prelúdio, da poética que há de vir.

Frost impõe ao leitor, como tônica de sua arte, uma dicção própria do colóquio, mas de sempre fina execução.  

Verdade extraída da equação entre realidade e ser, “Into My Own” finda com um aviso, e diz assim:

COMIGO MESMO

Quem me dera estas árvores escuras,
que quase cobrem o vento, de tão duras, 
não fossem mera máscara, mas sim
senda estendida em direção ao fim.

Não posso ser contido, e um belo dia,
sem medo de encontrar terra baldia,
ou estrada posta pela areia, em roda, 
eu entrarei nessa amplitude toda.

Não vejo por que voltaria atrás;
sem poder me transpor, os meus iguais
ficam, pois minha ausência desaponta, 
a ver se ainda os tenho em alta conta.

Não vão me achar mudado desse senso,
só cada vez mais certo do que penso.

Frost primeiro pinta o ambiente, e a partir dele ergue sua metáfora. Árvores, traves em seu olho, são obstáculos que lhe turvam a visão, poderiam ser pontes. A natureza, como o homem, esconde com máscara seus mistérios. 

Shakespeare. “Senda estendida em direção ao fim.” (But stretched away unto the edge of doom.) parece referir-se a “What, will the line stretch out to the cracke of doom?” (Mac. IV. I. 104). Corredor, abertura, fissura para o dia final, para o dia derradeiro. O poeta pensa na morte, no fim da estrada; sem Lady Macbeth, é senhor de si.

A estrada contrapõe-se às pessoas que, como árvores, colocam-se diante do indivíduo, ávido de dar início à sua jornada, desgarrando-se; e, porque “…posta pela areia, em roda,” (…the slow wheel pours the sand.), faz-se à medida que é trilhada.

De um caminhão, a roda que derrama areia indica tanto a passagem do tempo, relógio que gira, como o desconhecido destino, a Roda da Fortuna, entrecho circunstancial da vida. 

Frost reflete em cima do que vê, vive, lê. A relação com a comunidade não dita, mas compõe a existência, preenche-a de afeição. O homem, se quer chegar, deve estar firme em seu propósito, assim suportará o irregular trajeto.

2.

O próximo poema, de pueril doçura, retrata em curto quadro uma cena recorrente na produção frostiana: o homem na lida comum, aquele mesmo do sorriso campestre, de que fala Campos. Aqui, a reflexão acerca da gravidade geral da vida cede lugar à pintura do fato quotidiano que, fruto casual, dá seu particular ensinamento.

Vamos aos dísticos:

UM PÁSSARO MENOR

Melhor seria que batesse asa 
o pássaro que canta em minha casa.

Ergui as mãos, como quem não suporta,
e o espantei de vez da minha porta.

Talvez o erro fosse meu também
e não do pássaro ou do tom que tem.

Afinal não há lá muita razão 
em querer silenciar qualquer canção. 

“A Minor Bird” já no título nos oferece sua chave, devo dizer, sua clave. Metonímia sutil, o pássaro é a pauta da melodia que, inocente, emite em escala menor. 

A irritação do espantalho humano, diante da monotonia daquele canto, converte-se em constatação da deficiência não do passarinho, mas de si próprio, ser insensível à criação.

Aparecido em seu quinto livro, West-Running Brook (1928), o pássaro de Frost é prógono da estirpe do de Eliot, que entoa “human kind/ cannot bear very much reality.” 

3.

No mesmo livro, mudando de clave, Frost produz novo soneto, só que com ares de vilanela: é um dos raros momentos em que o poeta lança mão do estribilho. 

“Acquainted with The Night, com seu verso-refrão, martela a cabeça com uma persistente memória, com a constatação de um passado perdido. 

Senão vejamos:

JÁ CONHECI A NOITE BEM DE PERTO

Já conheci a noite bem de perto.
Sob chuva fui, sob chuva regressei.
Atravessei o lume mais deserto

da cidade e a mais triste estrada olhei.
Passei pelo plantão do vigilante;
sem querer me explicar, o olhar baixei.

Quando parei, calado o pé andante,
das casas de outra rua, em ermos breus,
ouvi um choro copioso e arfante

que não chamava nem dizia: adeus;
de altura que me pôs boquiaberto,
um relógio aclamava, contra os céus,

que a hora não tem erro nem acerto.
já conheci a noite bem de perto.


Eis outra vez a estrada, senão toda, já parcialmente percorrida, sob o lume artificial e efêmero da cidade, em contraste com a escuridão total e inveterada do campo. A prospecção de “Into My Own”, iniciada, virou lembrança. 

Se a estrada é metonímia da vida, a noite é metonímia da morte. Já ter conhecido a noite bem de perto (ing.: acquaint, do lat.: accognosco, -is, -ere) é, também, portanto, ter meditado na morte, no fim, “…the edge of doom”. 

Contraparte de “Into My Own”, “Acquainted with the Night” é o meio da vida de Dante, é a madureza de Drummond. É o olhar atrás austero, sem lamentações.

Eis outra vez o tempo, a hora. Por ter dado uma pausa no seu périplo, o poeta repara no redor. O relógio de uma provável torre de vigilância, a comoção com um choro anônimo e a certeza de que na vida nem tudo é dualidade: “que a hora não tem erro nem acerto” (…the time was neither wrong nor right). O homem e a realidade são, no mínimo, tridimensionais. A estrutura em terza rima repercute na forma a matéria do poema.  

Homem experimentado, como uma personagem da Commedia, ora confessa-se ao leitor, sugere-lhe uma advertência. Seu discurso, porém, não desestimula; de si para si, ainda fala consigo mesmo.

Ouça quem o quiser ouvir.

4.

O último poema, satírico, em tudo difere-se dos outros três. Nele Frost, talvez depois de ter bebido o seu copo de uísque, estuda a fragilidade do poder e da beleza, com todo o sarcasmo. Como se fora provocado, o poeta diz umas verdades. Os tercetos encerram uma espécie de manual anti-ajuda, de um debochado fica-esperto.

Em prol da clareza de expressão, nestes versos abri mão do rigor rimático; e da literalidade, em prol da métrica e do humor. Não recuso, pois, o rótulo de paráfrase no lugar do de tradução.

Lá vai: 

CUIDAI, CUIDAI

A bruxa velha, e carcomida,
que agora lava a escadaria,
foi Abisag, aquela linda,

a queridinha em Hollywood.
Tanto alto-e-baixo me confunde:
havia ali tal plenitude?

Ai, morre logo e evita o fado,
ou tarda, se predestinada,
mas morre, ao menos, arranjada.

Aplica a grana com usura,
se for preciso um trono ocupa, 
onde ninguém te chame: puta.

Uns só confiam no que sentem;
outros são retos, simplesmente.
Se lhes serviu, também lhe serve.

Lembrar da fama não apaga
o anonimato, nova chaga,
nem livra o justo de ir às favas.

Bom é ser digno enquanto cai,
um falso amigo vale mais 
do que nenhum. Cuidai, cuidai!

Do livro A Further Range (1936), “Provide, Provide” traz a figura de Abisag (v. III Rg 1:3; 2:16-21, Vulgata) jovem concubina de Davi, sunamita bela, feita uma estrela de Hollywood dos tempos de hoje. (Bilac, no livro Tarde, glosou a mesma Abisag.)

Frost pinta o crepúsculo da beleza, apresenta a beldade de ontem como a velhaca de amanhã, na esteira de um Ronsard (v. Sonnets pour Hélène, 2.XLIII), mas sem o candor e piedade deste, antes com a crueza de um Rimbaud (v. Vénus Anadyomène).

Exposta a dura imagem inicial, o poeta passa a dirigir-se, na terceira estrofe, a uma interlocutora imaginada; aconselha, ou melhor, desaconselha essa alma iludida, alertando que não só há de perder seus dotes físicos, mas sobretudo seus bens e fama.

O tom jocoso de um Juvenal toma corpo de provérbio bíblico, mudança que procurei preservar com a troca do tu para o vós no último verso: a brincadeira vira conversa séria.

Sem grei nem rei, a essa mulher moderna resta fazer seu pé-de-meia, cercar-se de alguma companhia, ainda que fingida, comprada, “…falso amigo” (“…boughten friendship”). 

Chega uma hora em que a memória não serve de consolo.

Referências

CAMPOS, Paulo Mendes. Um poeta-fazendeiro. Artigo Indefinido: Crônicas Literárias. Organização e apresentação Flávio Pinheiro. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004.

FROST, Robert. The Poetry of Robert Frost: The Collected Poems. Edited by Edward Connery Lathem. St. Martin’s Griffin: New York.

PRITCHARD, William H. Frost: A Literary Life Reconsidered. The University of Massachusetts Press, 2nd ed., 1993.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. The Complete Works of William Shakespeare. Oxford Edition. Edited by Elene Gavriel Ranson: Wordsworth Library Collection, 2007.