A Alma desdobrada no verso – sobre uma ‘pedra de toque’ de João Filho

– por Luiz Renato Périco

Mesmo poetas medíocres conseguem escrever poemas excelentes aqui e ali, mas só quem tem total domínio da arte do verso consegue escrever pedras de toque, versos de tal densidade e potência poéticas que se tornam patrimônio linguístico-cultural, como Vou-me embora pr’a Pasárgada de Bandeira ou Tinha uma pedra no meio do caminho de Drummond.

O primeiro verso da Reza XX de João Filho, do seu livro Rezas (edição do autor, 2023), me parece ser a mais nova dessas pedras de toque.

REZA XX

Pai, livrai-me de mim, livrai-me, ó Pai!
As traves colocadas nas retinas,
num copo d’água ondulo temporais,
nesse naufrágio que jamais termina.

Que eu seja o que eu não sei. O mal atrai
o mal em longas ondas cristalinas,
e eu sou de mim o próprio Barrabás – 
destruo o que não tenho, sou ruínas.

Ocultai o que Vossas mãos pesares
nas praias duvidosas onde empenho 
em confundir veleiros na ancoragem.

Pai, não deixai que eu saiba o recebido,
porque estragar é todo o meu engenho,
do mar que venho, o sal é sal perdido.

Rezas é uma coletânea de sonetos confessionais, na dupla acepção do termo: tanto são poemas-orações, nos quais o poeta derrama seu coração diante de Deus de modo íntimo, emocionado, quanto são sonetos que fazem confissão de fé católica. Tal confessionalidade poderia facilmente descambar para o sentimentalismo barato ou para o proselitismo carola e chato. Na maior parte dos poemas, contudo, João Filho se livra dessa armadilha dupla com sua habilidade poética, seu trabalho linguístico.

O soneto em questão, entre imagens bíblicas e litorâneas, é uma oração para que Deus não permita que as escolhas erradas do eu-lírico atrapalhem a ação da Graça Divina em sua vida, pedindo mesmo certa ignorância no seu agir, para que, seu “próprio Barrabás”, não ponha tudo a perder. O poema é claro e luminoso, de modo que não há necessidade em fazer uma interpretação demorada do seu sentido.

Gostaria, porém, de chamar atenção para o primeiro verso, que já sintetiza toda a reza-poema: “Pai, livrai-me de mim, livrai-me, ó, Pai!

A repetição dá uma carga poética de uma densidade notável ao verso inaugural. Se fôssemos reduzir o verso ao seu significado simples, corrente (o que seria um crime), teríamos: Pai, livrai-me de mim. Seria uma oração tocante e honesta, mas só isso. Não seria poesia. 

Mas, ao usar oito de suas dez sílabas para enfatizar o pedido, João Filho transforma o verso em uma súplica tocante, porque intensa. Oitenta por cento do verso é clamor, um clamor enfatizado, reiterado. Diga-se, aliás, que conseguir essa repetição tão dominante dentro de um único verso sem torná-lo cacofônico ou monótono é algo muito difícil. O verso de João Filho, como todo grande verso, soa completamente natural.

Como uma escultura verbal ao mesmo tempo simétrica e retorcida, há dois eus no verso, desdobrados em formas léxico-gramaticais diferentes: um mim no meio do verso, e outro me espelhado nas duas metades quase que exatamente iguais: 

Pai,/livrai-me//de mim,//livrai-me,/ó Pai!

O eu de livrai-me, fragmentado pela sua condição espiritual e existencial, suplica para ser livre do eu de de mim, que é o centro do conflito existencial e espiritual do poeta – e também está no centro do verso. É como se o eu-lírico se retorcesse para poder escapar de si mesmo, sabendo que, sem a ação divina, não é capaz de fazer isso. 

Para chegar ao Pai e livrar-se de si mesmo, descentra-se, aproximando-se do limite de si – e do verso. Pai é a primeira e a última palavra do verso, o alfa e o ômega do verso, o limite que aponta para fora do verso. E é para esse extremo que o poeta se dirige — e, ao fazê-lo, se desdobra, se fragmenta. O “mim” pecador está dentro do “-me” clamante; mas o “-me” clamante também está compreendido pelo Pai.

Em termos de musicalidade, a repetição em “-ai” reforça o dolorido da súplica, como um clamor desesperado, lamentoso, ecoada por mais cinco sílabas fonéticas em ” -i”  e um “-i” semivogal ecoando em “-mió”: PAI,/ LI/VRAI/-MI/DI/MIM/LI/VRAI/MIÓ/PAI.  Mais uma vez: quarenta por cento do verso repetindo o mesmo ditongo, sem deixar o verso monótono.

O verso é a um só tempo um jogo de espelho e uma câmara de ecos, de modo que todo o conflito existencial-espiritual do poema seja plasmado na estrutura sonora do verso.

A cereja do bolo, contudo, é uma palavrinha: a interjeição ó. Palavrinha poética muito abusada em poemas de índole sentimentalista, mas que é simplesmente essencial aqui. Fosse o verso Pai, livrai-me de mim, livrai-me, Pai!, ainda seria um verso bonito, mas frívolo, talvez retórico. Sua simetria perfeita lembraria a ourivesaria parnasiana em seus melhores/piores momentos, tão tecnicamente perfeita quanto poeticamente fraca; algo como um exercício de versificação. Tal artificialismo mataria toda a carga piedosa do poema.

O ó, portanto, cumpre uma dupla função: quebrar a sua simetria, dando-lhe uma feição mais natural, mais nossa, e lhe infundir pathos, impregnando todo o decassílabo com o estado de alma piedosamente desesperado do poeta.  O verso sem essa pequena palavrinha seria outro – e o poema, outro poema.

Mas isso é típico dos grandes poemas: nenhuma palavra a mais, nenhuma palavra a menos, cada elemento em seu lugar devido. É o tipo de verso que só um grande poeta sabe escrever.

“Rezas”, por João Filho