Repasto de Dezembro

– por Daniel B. de Siqueira

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“Nação feroz de rosto, que não respeitará o rosto do velho, nem se apiedará do moço.” (Deuteronômio xxviii, 50)

Rastejou alguns metros e pôs os cotovelos sobre a contraverga da janela, há muito tempo apenas um vão na parede. Estava no pavimento superior do sobrado. Era um cômodo escuro, de tijolos descobertos, onde sequer havia contrapiso. Podia, sem ser vista , enxergar a rua apinhada de jovens, principalmente adolescentes, carros de porta-malas abertos ribombando seus sons continuamente; motos de escapamentos modificados iam e vinham, com estampidos assustadores; todos lá embaixo falavam muito alto. A molecada chamava isso de “o fluxo”. Entre as batidas eletrônicas, ela distinguia apenas alguns sons inarticulados, os quais variavam de roncos a gritos bestiais, em jaculações bacânticas. Quando compreendeu umas poucas frases naqueles retalhos de música, por pornográficas que eram, horrorizou-se  e, com as mãos nos lábios, afastou-se um pouco.

Reaproximou-se da janela. Olhou de um lado, olhou do outro. A rua estava completamente bloqueada. 

De garrafa na mão ou segurando um copo de plástico, todos pareciam consumir alguma bebida alcóolica. Meninas novinhas, seminuas, rabeavam coreografias vulgares. 

Percebeu, pouco à frente dela, uma fumacinha branca tremeluzindo. Olhou para baixo e viu alguns adolescentes sentados sob a sua janela, fumando uma espécie de palheiro. Uma jovenzinha de shorts minúsculos tragava bem fundo, prendia, depois baforava a fumaça; reiterava o pito e passava ao seguinte, que, da sua vez, fazia o mesmo e passava a outro.

Uma súbita lembrança triste apertou-lhe o peito.

***

Ela despertou sentindo a bochecha umedecida sobre o travesseiro, e um gosto levemente salgado na boca. Tentou ajeitar o corpo que, retorcido sobre o colchão, teimava em desobedecer. Forçou as pálpebras cheias de remela.  “Doda, Doda!”, suspirou para si, e afundou a cara no travesseiro.

Às 8h, porém, depois de suas orações matinais, já estava de pé, arrastando o velho corpo pela casa. Desfazia a mesa preparada no dia anterior. Não tocara em nada: nem no peru, nem no arroz, nem no macarrão, nem no panetone, nem nas frutas, menos ainda nos refrigerantes. Enquanto carregava os pratos para pô-los no lugar usual, demorou-se diante do calendário. Guardou os pratos e arrancou a folha “24 de dezembro”, desvelando a seguinte, que anunciava “25 de dezembro”.

Giúmia ligara seis horas antes para avisar que não seria possível ir cear com a mãe.

— Tudo bem, filha. Deus te abençoe. Feliz Natal pra você e pro… —  esquecera o nome do genro  —  Hobson.

— Não, mãe. É Namor.

— Ah, sua mãe está velha! He, he! — Trocara o nome do amásio atual da filha pelo do anterior.

— Feliz Natal, mãe. Tchau!

Pegou a pá e uma vassoura, e foi varrer a frente da casa. A calçada devia estar imunda! Encaixou a chave e abriu a porta da rua. Tomou um susto. Um jovem que estava recostado ao portão tombou para dentro do quintal. Parecia bêbado ou drogado, visto que a queda não o despertou de imediato. — Ai, Jesus! — Ficou a olhar o jovem sem saber o que fazer, com a mão na boca. Subitamente, lembrou-se de Doda; algo naquele jovem evocava seu filho.

Logo o moço abriu os olhos, e sem alarde foi se levantando. Numa voz pastosa:

— Dá água aí, tia.

***

Enquanto o jovem saciava a sede secando uma garrafa de 900 ml pelo gargalo mesmo, ela o fitava curiosa.

— Tu conheceu Doda?

— Quem? Doda? Nem.

Ela ensaiou contar a história de seu filho morto: dívidas de drogas, 13 anos de idade, caixão lacrado, envolto em saco preto. Mas não prosseguiu. E esqueceu-se, encarando o menino.

— Ih! Que foi, tia?, replicou o badameco, contrariado.

Desconcertada, respondeu:

— Não. Nada, não.

O garoto não desviou dela os olhos duros.

Ela vexou-se um pouco. Tremulando os olhos, decidiu oferecer ao adolescente a comida intocada da ceia.

— Quer?

Ainda sem tirar os olhos dela, ele respondeu grave e pausadamente: 

— Já é! Ô tia, mó larica.

Doda também usava essa expressão: “mó larica”. Ela sorriu.

Ela foi se arrastando rumo à porta de sua casa.

O adolescente, acompanhando-a com os olhos, esperou pacientemente ela entrar na sala, voltou-se para o portão, girou a chave  e a pôs no bolso. E a seguiu porta adentro.

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Daniel Batista de Siqueira é escritor, nasceu em pernambucano e hoje vive em São Paulo.