De Frente ao Espelho – oito poemas de Rafael Souza

DESTINO

Tantas coisas a lembrar
e outras tantas a esquecer…
Uns querendo a falta do ar,
outros querem é viver

durante anos e mais anos.
Outros, reinos e castelos
buscam. Alguns, mais humanos,
têm anseios mais singelos:

algo pra comer, vestir,
e pouca coisa além disso.
É claro, paz ao porvir…
Quando vão plantar, o viço

do arroz, do feijão, do que
mais no chão houver brotado.
Não dissimulam; só creem.
Estão num mundo encantado

onde — a despeito das dores,
dos medos e dos escombros
— existem coisas piores
e tantos a ofertar ombros

(e não de ombros) pra os que caem;
ou, senão, caem consigo. 
Então, para e repara: há em
qualquer lugar um abrigo

desses com cobertas quentes,
onde poderás serzir
durante as longas enchentes, 
até a névoa sumir.

De manhã regressarás.
E, sob o sol diamantino,
lerás — olhos fixos no ás 
de espadas — o teu destino.

DE FRENTE AO ESPELHO

Aquele era teu 
pincel, com o qual
besuntavas o 
rosto com espuma
de sabão de pedra. 
E aquele era teu 
espelho, à visão 
do que (pendurado
num prego à parede)
teu rosto se punha
suspenso e sozinho;
e, buscando um ângulo 
melhor para o aparo,
juntavas gilete
— espuma mexida —
navalhete e espelho
a um muro de adobe,
e davas início
a um meticuloso 
ritual, ao cabo 
do qual tua face,
mesmo que marcada
por pequenos cortes,
parecia-nos nova,
de um outro sujeito…
(Quanto a teu bigode,
aparavas as
pontas; não pintavas;
Melhor ofertar 
à idade o seu 
verdadeiro aspecto.)
Davam-te, no mínimo,
dez anos a menos,
e rias alegre, 
mas sem vaidade,
pois sabias muito
bem em que passo ias. 
Dizia-nos, logo,
que quando criança
querias a barba
mais do que qualquer
outro feito, e que
antes dos quinze anos,
totalmente imberbe,
já te barbeavas
enquanto tomavas
banho, às escondidas
de teu pai. Aí
tu nos revelava,
não sem embaraço,
o arrependimento 
que desses longínquos
tempos conservavas…
E ias carpir, pois
vergonha nenhuma
(falavas direto) 
consegue durar
após umas horas
de atento labor,
em que os pensamentos
se fazem vertigem,
e as recordações, 
meras fantasias,
como que espantalhos
enterrados nas
covas do passado.

DESPEDIDAS

Nunca me soube despedir… 
Durasse o tempo que durasse,
preferia o nunca partir;
ou, então, que ficasse o impasse

entre permanecer ou ir,
fosse no agora ou no porvir…

Sendo um amigo ou um parente,
quando se ia de minha casa,
me deixava como que ausente,

e eu, triste, queria fugir…
Nunca me soube despedir.

SONHO INSÓLITO

Se da linhaça, do sorgo e do trigo
nada se pode plantar ou colher,
de modo semelhante na colher
nada haverá de pousar (eu vos digo)

e a fome deverá vencer… Irrigo
o meu pomar nas horas de lazer
e sigo vendo — a me satisfazer —
as folhas surgindo, como no antigo

período de fartura… Sozinho,
sonho em penedos não muito distantes,
onde haverá alimento de sobra

inclusive no terreno vizinho
e, como pedras, sonho diamantes
e ouro a tremeluzir na água salobra.

ESPERANÇA

Can a mother sit and hear
An infant groan, an infant fear?
William Blake 

Todas as noites, antes de dormir,
ia até a mãe pra bênção pedir…
Quando (sem aviso) ela se foi, não
mais o fez. E tomou a decisão:

toda noite rezaria por ela
deixando (enquanto isso) aberta a janela.
Nessas noites, não se sabe o porquê,
não a fechava… Como que à mercê

da brisa, despertava em pleno escuro
e, mirando o céu de estrelas maduro,
assistia ao tremular das cortinas…

Era como se visse as mãos franzinas
da mãe… Pensava: “Voltarei a vê-la
um dia, sob a forma de uma estrela”.

NOVA RECEITA

Eram recém-casados em condutas
próprias de agrado mútuo, das quais quase
nunca decorrem atitudes brutas,
ora sim de carinho que extravase,

a todo custo, as primeiras permutas.
Foi quando a mulher, tremendo na base,
serviu-lhe o prato. “Mas por que relutas?”,
ele quis saber. E, vendo outra frase

(desta vez elogiosa), sorriu.
Após uma careta indisfarçada,
acabou lhe dizendo: “Não faz mal,

amor… Não te preocupes, ouviu?”
E completou, perto de uma risada:
“Da próxima vez, tu pões menos sal.”

DIVERGÊNCIAS

E a lida a ensinar paciência
no interior de um hospital,
às vésperas de alguém nascer,
na atenta marcha dos soldados…

E esperam, posto que é preciso,
pelo que nem levam consigo.

Dormem, e despertam, e voltam
a esperar no dia seguinte.
E desejam que o dia não

finde. E se exasperam, e somem
sem chegar ao topo do monte.

PALHAÇO

Pinta a cara, põe o nariz
e os seus sapatos gigantescos.
Mesmo triste, diz-se feliz:
é quem impele a rir primeiro.

Algumas vezes ri chorando,
porque lhe vence o lado humano,

não por muito tempo. Contente
mais uma vez, quase esgotado,
resolve voltar ao tablado.

E, ao fim, os devidos aplausos
àquele a quem chamam palhaço.

Rafael Teixeira de Souza (1993) é natural de Pedra, Agreste de Pernambuco. É mestre e cursa doutorado em Literatura na UnB. Nascido e criado na região rural do município, já publicou três livros de poemas: O âmago das coisasSó os objetos amadurecem sem cair e Reinvenção dos pássaros. O convívio com a natureza e o dia a dia no campo é a base de sua produção poética. Os poemas aqui presentes encontram-se num livro inédito, que ainda está sendo escrito e tem o título provisório de Poucas Gotas, à Sombra