– por Gabriel Campos Medeiros
Foi Pierre de Ronsard (1524-1585) o mais célebre membro da chamada Pléiade, grupo de poetas da França renascentista. De sua obra máxima, Les Amours, fizeram-se conhecidos, no Brasil, os sonetos Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle e Je vous envoie un bouquet que ma main, este em razão da famosa Paráfrase de Ronsard, de Manuel Bandeira, e aquele pela elegante tradução de Guilherme de Almeida. Dos amores do poeta francês, trago aqui traduzidos três sonetos, dentre outros que, desvirtuados em paráfrases e imitações, não mostro ao leitor nesta ocasião. De propósito, escolhi poemas de caráter filosófico; são versos meditativos, nos quais Ronsard redige um como que boletim de guerra, versos talvez inusitados de um autor noto por dirigir-se, inflamado e cioso, a dezenas de mulheres, participando-as do seu conflito interior, do seu “combat inégal” (v. o madrigal do primeiro livro de Sonnets pour Hélène) em que aquelas, portadoras de beleza e juventude, alcançam o bem da vitória, em prejuízo do soldado, cujo saber invariavelmente se derroca em insensatez. Nos poemas que traduzi, ao contrário, o homem recorre à fuga e, falando de si para si, busca retirar-se, e então cogita; depois, deflagra a realidade do seu estado:
Soneto CC
(do primeiro livro de Amours de Cassandre)
Versos de Homero, lidos à ventura,
por coincidência, por azar, por sorte,
decantam concertados em suporte
a meu tormento lhe trazendo cura;
velhos ciganos, que a visão futura
das cousas lêem, nas mãos, na tez, no porte,
revelam novo bem que me conforte
da tão cruel paixão que em mim perdura.
A mesma noite, o mesmo sono, quando
te abrigam no meu leito, auguram brando
o teu brio feroz contra os meus dias,
vêem que tu só, oráculo do amor,
ao pé de mim serás confirmador
do fim fatal de tantas profecias.
Evoca-se aí a prática antiga de abrir ao acaso qualquer brochura, a ver que fortuna prenunciam suas páginas. (Longe de ser atitude pagã perdida, conta-se nos Fioretti que, com o fim de ter certeza da sua jornada junto a São Francisco de Assis, Frei Bernardo abriu três vezes o missal, e de fato obteve confirmação em cada uma delas.) A leitura de Homero a um tempo distrai e conforta Ronsard dos desgostos terrenos, pinta-lhe um quadro de possibilidades, a partir do qual o francês se situa: e se volta à ciência sutil, como remédio a certo racionalismo, troca, então, a incerteza do acaso por uma forma mais arrojada de incerteza, que vem a ser a do oráculo, de quem, por menor que seja, obtém alguma esperança. Por fim, o sofredor acha a cura do amor na busca de mais amor — ou na sua dose genérica —, e se mete num círculo infinito, sem se bastar: nota constante da poesia de Ronsard, a angústia — efeito de um ato débil —, quase sempre contrastada com o logro e o malogro, se ampara no amor maiúsculo, que durante a Renascença se fez ver como sumo bem, embora geralmente não passasse de deletéria paixão, cortesã perfumada, brinquedo dos estetas.
Soneto L
(do primeiro livro de Sonnets pour Hélène)
Muito embora a alma humana cresça com a doutrina
de Platão, que lhe imputa o influxo celeste,
ela seria ociosa sem o corpo que a veste,
tendo de alardear que do céu se origina;
pelos sentidos a alma vê e ouve e imagina
e dota o corpo de funções para que este,
incorporando-a, encha-a de engenho, e aquela preste:
a matéria torna a alma mais perfeita e fina.
Os amantes do espírito, sem discernimento
dizem que amor é pelos corpos profanado,
assim endossam fantasioso entendimento,
tomam por falsa idéia um proveito provado,
tal Íxion que tão-só de nuvens e de vento
era na fábula envolvido e enamorado.
Contra a veleidade de uma elevação desarraigada, de índole neoplatônica e ascética, defende-se o trabalho comum de alma e corpo, ajustado entre disposições e funções. (Altiora te ne quaesieris, alertou Santo Tomás de Aquino). Em verdade, a matéria não é vicária do pecado original, como quiseram os gnósticos, não é a mancha irremovível legada ao homem pelo deus mau, mas meio de purificação, detentora, portanto, de suas dignidades, sempre a serviço do espírito. (Entre as diversas seitas que atravessaram a história da Igreja, umas pregavam total austeridade do corpo; outras, sua completa depravação: pela dor, pelo prazer, a finalidade era destruir a matéria.) Íxion, nefelibata clássico, continua a morrer na roda que o tortura, morte sentida na pele de um soberbo imune ao amor, escravo da paixão. Sucede que a Máquina do Mundo requer mãos que a movam, não só mentes que a concebam: o homem, pelos sentidos, conhece o visível; pela inteligência, o invisível. E mesmo Deus se fez carne. Quem poderia impugnar o papel do corpo?
Soneto XVI
(do segundo livro de Amours de Marie)
As cidades me dão tão odiosa estalagem
que morro se observo um humano meneio;
pensativo, no bosque, eu sozinho passeio:
nada me agrada mais que o âmbito selvagem.
Nem bravo javali, nem riacho, nem ramagem,
nem rocha ou pedregal, nem mesmo fonte ou veio
há que, tão surdo à pena que me sobreveio,
comigo não padeça o mal de tal voragem.
Um pensamento após o outro me acompanha
com um choro amargo que a meu peito todo banha,
ais e suspiros são meus sócios de desgosto.
Porque se alguém me encontra assim em meio à mata,
a minha barba hirsuta, o horror no meu rosto,
me chama monstro vil, por homem não me trata.
Antes do tédio moderno, do spleen de Baudelaire, do já ter lido tudo quanto é livro de Mallarmé, uma antepassada espécie de neura fazia lá as suas vítimas. Torneio meio raro na produção de Ronsard, agora o poeta, pondo de lado seus modos corteses, talvez cansado de atender às demandas universalistas de sua época, parece querer reviver não mais a Antiguidade, mas a vida rude do homem medieval, seu predecessor, como quisera o cínico Jacinto de Eça de Queiroz que, bajoujado em longos banhos de civilização, foi sujar-se no solo tosco dos campos, também assim nosso Vinícius gozou o cheiro bom de estrume. Mediante decisão drástica, Ronsard pretende limar o artificialismo da cidade dos homens com a espontaneidade que inveja na besta.
Referências
RONSARD, Pierre de. Les Amours. Texte établi pour Albert-Marie Schmidt (1964). Préface et notes Françoise Joukovsky (1974). Editions Gallimard: 2016.