Pataca

– po Igor Maria Sales

— Pataca, tu estás todo molhado e mal começou o dia!

— É essa chuva, seu Valdemar. Eu andei devagar com o maior cuidado, de capa, guarda-chuva e galocha. Quando cheguei aqui na rua um ônibus levantou aquela onda e me engolfou, na raiva tropecei num batente e mergulhei de cara na água.

— Ô Pataca, quando fizer um solzinho vou te pendurar no varal, meu filho — gritou Gerson lá dos fundos da loja.

— Pendura a tua mãe, aquela… — interrompeu o patrão.

— Que história de mãe, rapaz, não comece com isso não, que você não aguenta a brincadeira. Vá trocar de roupa, tem uniforme seco no banheiro.

Pataca entrou pingando, tinha os cabelos ralos colados no couro brilhoso. Mas que sexta-feira dos diabos, chutou o armário mas errou a mira e machucou o dedão na quina. Quando voltou ao posto de vendedor, atrás do balcão, seu Valdemar falou:

— Gerson e Pataca, tem uma entrega para fazer no Janga. Como é urgente, o cliente vai pagar um extra para vocês deixarem tudo pronto por lá, coisa simples, instalar uma luminária no quintal e pronto.

— Mas para chegar no Janga nessa chuva só indo de lancha, seu Valdemar. Outra coisa, o caminhão ainda não voltou da oficina — reclamou Gerson.

— Não tem problema, meu filho chega já e vocês podem ir no carro dele.

Pataca e Gerson já estavam se preparando para o atoleiro, colocaram botas reforçadas, capa de chuva na mala e toalhas secas. Pataca, toalha? A gente não vai num motel, deixa de frescura. Gerson terminou de falar e foi atender uma senhora que entrou na loja.

— Se não vou levar uma toalha? Já tomei um banho aqui, lá vai ter água entrando pelas janelas, vou levar toalha sim — colocou na bolsa e voltou ao serviço.

Às duas da tarde chegou o filho de seu Valdemar, estacionou o carro de ré e desceu tropeçando. Eita, que ele tomou uma agora no almoço. E tinha tomado mesmo, Valdinho vinha com o rosto vermelho e os olhos d’água.

— Gerson, vamos antes que comece a confusão — pegaram as chaves do carro, colocaram a encomenda na mala e saíram.

No Janga, as ruas viraram rio.

— Não dá para passar, Gerson. Vamos embora.

— Dá sim, rapaz, vamos. É o carro da firma. Carro de firma aguenta tudo.

No meio da rua bateram em algo. Pataca desceu e encontrou alguma coisa presa entre a roda e o para-choque do carro. Com esforço tirou um tipo de caixa, pensou em jogar fora, mas viu algo brilhante e decidiu guardar: se for metal, vendo no peso e ganho um trocado.

Na casa do cliente, Pataca pediu para usar o banheiro, e, no caminho, viu um livro com uma capa estranha. Com a demora, o proprietário foi ver o que tinha acontecido.

— Então, rapaz, não achou o banheiro?

— Desculpe, senhor. Achei, mas me diga, que tipo de livro é esse com um homem mijando na capa?

— Ah! Isso é arte performática, rapaz. Você não sabe o que fala, mas é porque desconhece a arte. Veja — trouxe o livro até Pataca — esse é o rio da vida, aqui os macaquinhos universitários, um marco da arte moderna, algo realmente transformador.

— Mas isso está certo?

— Você não sabe ver, meu rapaz. Mas não se ofenda, isso é coisa que precisa de um certo treinamento e decantação estética. Um dia você entenderá.

Pataca agradeceu e, terminado o serviço, foi para casa. Na manhã seguinte, verificou do que se tratava aquele peso que trouxera da lama. Um penico de ferro. Mas que desperdício de tempo. Deixou-o jogado na área de serviço e foi assistir ao noticiário, no dia seguinte iriam reabrir o Museu Brennand, e toda a imprensa estaria presente para a inauguração do maior museu do Brasil.

Nessa mesma noite, Pataca teve um sonho. Sonhou que ia ao museu carregando pincéis que o pintavam inteiro, o rosto, as roupas. Saía de lá ainda mais sujo, carregando o penico cheio de ouro. Tanto que, no caminho de casa, deixou um rastro de moedas. Ele despertou eufórico, olhou a casa pintada pela metade, coisa que a preguiça, mais do que o cansaço, não deixava terminar, os eletrônicos desmontados e as ferramentas jogadas no chão da sala. Foi até a mesa, colocou o penico bem debaixo da luz pendente e ficou encarando o próprio reflexo no metal polido.

No domingo, Pataca chegou no museu e no salão principal, depositou o penico lavrado e escreveu com um hidrocor preto: Pataca. Esperou alguns minutos, e, rápido, os repórteres falavam coisas estranhas em línguas que ele não compreendia. Uma jornalista local perguntou se ele era o artista e ele respondeu com um parece que sou.

A direção do museu ficou intimidada com tamanha agitação em volta da obra e não foi capaz de desmentir o caso. Sim, era a surpresa que havíamos guardado para a grande inauguração, Pataca é um artista disruptivo, além do nosso tempo, um vanguardista. Ao ser perguntado sobre o que significava, Pataca respondeu com uma pergunta.

— Não é isso que vocês queriam?

Era isso. Nos jornais, textos de crítica de arte não paravam de ser publicados, a grande maioria discutia os aspectos metafísicos, outros falavam da materialidade do desejo humano, outros ainda diziam que era um novo simbolismo que nascia, e o autor, como era um completo desconhecido, suscitou uma mitologia em torno da sua vida.

Um dia, em casa, Pataca recebeu um telefonema.

— Mister Pataca? Aqui é Adriana Fontana, serei sua agente a partir de agora e preciso lhe encontrar o quanto antes para negociarmos a exposição da sua obra.

— Como assim?

— Não se preocupe, eu vou cuidar de tudo. Ia me esquecendo, o museu resistiu, mas eu já estou com o pagamento que o senhor merece. Ou eles querem ganhar dinheiro em cima de um pobre artista? O senhor tem conta em algum banco?

— Pode me entregar o cheque? Foi tanto dinheiro, que Pataca apareceu no emprego apenas para pedir as contas.

— Mas eu sempre soube que aí se escondia um grande artista. Ninguém vive tombando e sendo tão destrambelhado assim de graça, Pataca. Nunca se esqueça que eu sempre te apoiei, meu rapaz.

O penico viajou o mundo e Pataca foi junto. Quando a última parada foi o Louvre, na França, Adriana perguntou se ele não queria levar um souvenir para os amigos.

— Não, minha garagem tá cheia de Suvinil até o teto, não quero nada.

Na França, foi um sucesso ainda maior, onde o penico ficaria exposto por muitos anos.

Pataca conheceu o mundo, visitou os grandes museus e sempre dizia para Adriana: isso é bonito, não? E ela sempre respondia da mesma forma: é bonito, mas o que nos diz? Onde está a crítica? Mister Pataca, você é a voz do nosso tempo, não se esqueça.

Em casa, depois de longa viagem, Pataca recebeu uma carta que não conseguia ler e pediu ajuda a Adriana.

— Mister Pataca, você não vai acreditar, o Senado Federal quer que o senhor faça uma réplica da sua obra para o projeto do novo prédio dos excelentíssimos senhores senadores. É uma honra.

Pataca sai de casa e se arrepende de ter sonhado.

Igor Maria Sales é contista prestes a lançar o seu primeiro livro “O Que Choram Os Mortos”.