“Pássaros na Noite”(2022) – a poesia de Henrique Nascimento


Pássaros na noite, livro de estreia do poeta Henrique Nascimento, está em pré-lançamento no site da Editora Mondrongo. Quem adquiri-lo até o dia 05 de agosto, receberá o exemplar com dedicatória.

O livro tem 164 páginas, 72 poemas (61 autorais e 11 traduções) e conta com colaborações de peso: texto de orelha por Emmanuel Santiago, ensaio do crítico Matheus de Souza Almeida Oliveira, um retrato do autor feito pelo poeta Pedro Mohallem e ilustrações de Sandro Castelli. Os autores traduzidos são: Arthur Rimbaud, Paul Verlaine (cujo poema intitula a obra), Stefan George, Giacomo Leopardi, Victor Hugo, Théodore de Banville, Leconte de Lisle e Sully Prudhomme. 

Abaixo, uma seleta de poemas do livro e uma tradução de Théodore de Banville.



*

GERMINAÇÃO

É onde mora a noite e me demoro:
no extravio dos cantos, mais em cima.
Sob o clarão da lua, o que é sonoro
nomeia-se mistério, e, entre a neblina,

que ave é essa? Pássaro canoro,
de gorjeio ou de agouro, é em mim que trina.
Cruz-credo, mãe da lua, vê que enfloro
fantasmas e disfarces que me ensinas!

Não de coruja ou joão-corta-pau
esses marrons da noite, esse eigengrau
de horas mortas… Na granja, range o vento,

e ali, se misturando no ramal,
como se folhas secas de um rebento
que abre os olhos, flor de âmbar, o urutau.


JARDIM DAS SEVÍCIAS

Aquilo não era um jardim.
Apático, brotava o bredo
e, se alastrando, eu tive medo
que ele também crescesse em mim.

A erva-azedinha — falso trevo —
jamais floriu pelo jardim
e era um tapete de cetim
guardando pó sob o relevo.

E eu não achei que fosse assim,
que sob plantas houvesse esterco…
Mas não me importa o quanto eu perco
tentando fugir do jardim:

mesmo sem saber como eu vim
pra cá, eu cavo e, enquanto desço
pra arrancar-lhe a raiz, floresço…

O meu jardim construo em mim.


ASSASSINO DE MONSTROS

(Théodore de Banville.)

Belo monstro recosta-se em sombras sem fim
E apenas deixa ver seu seio de marfim,
Seu cabelo de fogo e o rosto sorridente,
E Teseu, admirando a alvura do seu dente,
Vê seu braço brilhar e que suave ele posa,
No agudo seio florescer o botão rosa.
À distância cachorros latindo se ouvem,
E a encantadora voz do monstro falou: Vem,
Porque este antro é um refúgio pacato.
Amigo, eu mesmo vou desatar teu sapato,
Teu casaco na grama estenderei, com zelo,
E vais adormecer com a testa em meu cabelo,
Sem que importune a luz que algum astro possua.
Mas, enquanto ele fala, a suave luz da lua
Aparece, e o herói, na triste e pura luz,
Vê resplender com suas escamas azuis
Um corpo misterioso, o monstro cuja cauda
De vil dragão, qual mar que verde se desfralda,
Desdobrando os anéis, de ossadas brancas, ante
Seus pés, o brilho expõe, sob o claro diamante
Da lua. Faz-se surdo ao monstro encantador
E, depois, segurando a trança, com furor,
Da flava coma que no olhar dele caía,
Erguendo a sua espada, grita de alegria,
E duas vezes fere-lhe o peito e o arruína.
 Uivando como lobo em floresta divina,
Cerrando a cauda, torce os braços — ver é duro —
A Hidra de rosto humano cai no sangue escuro,
Enquanto o herói, sob esta sombra que se eleva,
Limpando a espada úmida com tufos de erva,
Se afasta; e, sem que o grito o houvesse perturbado,
Observa ficar branco o céu estrelado.


SONETO

Cada palavra embrulha a voz, arranha
a garganta, se esgota pelo meio
do caminho, num tipo de barganha,
mensurando as vontades e o receio;
por exemplo, saindo entrecortada,
dizendo menos que a metade, menos
por inconsciência que por medo, cada
som dando apenas tímidos acenos,
por não saber se esta vontade brota
de raiz funda e fixa ou se isto vem
como uma folha solta, que se nota
ao cair e, no chão, é nada além
que parte da sujeira.
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤE os sons saem,
eles sim, como essas folhas caem.

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MEDITAÇÃO DE ELIAS

Fugi de Acabe, vim para o deserto
e aqui me encontro, à sombra do Querite.
Bastam corvos — memória e pensamento
a fim de saciar meu apetite.

Aqui o Nada se revela, pois
não há o que o deserto não engula.
Só, aprendi o que é valor na falta.
A fome me ensinou o que é medula.

Eu vi no ermo a medida do vazio
e a clausura da areia faz o monge.
Mas, como são bonitas as estrelas…

Tudo é mais bonito se mais longe.

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CAMPÂNULAS

Busquei na flor da trombeteira
o deslinde, a última viagem,
o limiar entre as fronteiras
absorvidas na miragem…
Quando dispus flores e folhas
na água, observei o verde abstruso
ferver… Dissiparem-se as bolhas
que se expandiam pra morrer.
Na turvação, diante do Grande
Outro, bebi o chá e, assim,
não como um pescador de ouro
ou de conchas, éramos em mim.
Com as pupilas dilatadas,
eu fiquei cego, embora visse,
sede arenosa nas papilas
travando o que eu jamais me disse.
Mas na ilusão acidulada
eu via as tramas do absoluto
se abrindo até que fossem nada
mais do que um vórtice soluto,
e eu fui levado envolto em lírios
além do Hades e seus pântanos;
na brisa de um jardim do Elísios
vi chegarem Hipnos e Tânatos.
No vento, fui de cima a baixo,
e as corolas iridescentes
se esqueciam à beira riacho
e badalavam resplendentes…
Algumas apontavam para
cima, outras para baixo, e eu via
que eram iguais na sombra clara
sob a datura e a brugmansia.
Ali, eu dormi como jamais,
porém não como eu quis dormir,
e acordei vomitando mais
coisas do que bebi. Ali,
Hipnos babava a minha boca
e Tânatos me punha roxo;
tentei falar, mas a voz, rouca,
não pôde, e andar não pude, coxo.
Hipnos riu vendo minha audácia
de buscar seu reino sem medo,
e revelou das solanáceas
um pouco mais dos seus segredos:

— Não sorvas a infusão difusa
buscando Fântaso e delírios,
pois podes acessar a escusa
dimensão de outro irmão, que é Ícelo.
Macera a planta e essa mistura
dela com ela põe nas têmporas,
te deita e, sem forçar, me busca,
e assim terás visões esplêndidas.
E não receies que te iludam,
porque as mensagens de Morfeu
são verdadeiras, mesmo turvas;
foi ele quem melhor te leu.
Dessa forma melhor a usas.
Não te banhando sob o Lete,
terás visões menos confusas
e quando acordas não te esqueces.
Sobre mim, Hipnos abrandou
um pouco a fúria subterrânea
de Tânatos que me tocou,
enquanto a sua voz estranha
dizia:
            — Olhar o sol te cega.
Não sabes da lição de Dédalo?
Ou, ao menos, da curva régua
com a qual a todos eu meço?
Bem sei que sabes. Muito viste.
Eu li teu último poema…
No entanto, filho da alta noite,
não busques, só porque estás triste,
a morte;
ㅤㅤㅤㅤ    no fim, problemas
vêm e vão. Não os temas…
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ          Criança,
tu pouco sabes sobre a morte,
muito menos da esperança,
a sua principal consorte.

Foste, contra a tua vontade,
iniciado nos labirintos
da vida, e, aqui, a morte que há
de te iniciar. Serei sucinto:
há outra escola de mistérios,
não sobre os labirintos do ar,
labirinto solar de Dédalo.
A outra, subterrâneo algar,
tem no sumiço de Perséfone
sua busca, e a cada primavera
em que a terra brotos expele,
todas as raízes, de antemão,
procurarão sua senhora.
Mas morrerão… E a cada ano,
como em todos os dias a aurora,
elas sempre retornarão.

Buscando a morte, tu verás
que tudo é vida. Tudo é Sim.
Estás estrebuchando, mas
tu deves te apartar de mim,
porque as linhas das tuas mãos
são longas e ainda fizeste pouco…
Vai. Usa-as. Tu mais te prolongas
quanto mais riscares seu couro.


          *
Em meio ao vômito acordei.
Minhas pupilas dilatadas,
por tudo o que testemunhei,
viam bem pouco, quase nada.
E entre algumas formas turvas,
a lúcida vertigem diurna
era bem mais clara por dentro,
mas tanta luminosidade
tornou as sombras mais profundas.
Cego arúspice iniciado
nos mistérios da trombeteira,
querendo a morte, viu seu fado,
a noite, a última fronteira.
E então soube os seus nomes: erva-
do-diabo, figueira do inferno;
trombeta dos anjos caídos
em relva estranha onde o eterno
é ido vislumbre, é poeira.

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Henrique Nascimento, 24, nasceu em Olinda, Pernambuco. Poeta e tradutor, colaborou com algumas revistas literárias como Mallarmargens, Piparote e Ruído Manifesto, e com o Jornal RelevO, de Curitiba. Pássaros na noite é seu primeiro livro.