Um milagre em Paraisópolis, de Fábio Gonçalves — por Jessé de Almeida Primo

— por Jessé de Almeida Primo

Um milagre em Paraisópolis (Danúbio, 2020) dá indicativos seguros de que Fábio Gonçalves é um autor que se dedica seriamente ao seu ofício. Como todo romancista que se preze, propõe contar uma história, sem padecer pois daquilo a que o crítico Rodrigo Gurgel chama de “narratofobia”, expressão essa clara o suficiente para dispensar explicações. Por outro lado, aos que não dispensam explicações, cito aqui as palavras do autor de  Muita retórica, pouca literatura: é uma expressão que se aplica aos  que

escrevem não para satisfazer seus impulsos criativos, mas, principalmente, para cumprir determinados preceitos. Dito de outra forma, alguns escritores submetem a criatividade às regras difundidas por supostos expertos, ou, pior, ao gosto das panelinhas. A escrita se afasta, assim, do seu verdadeiro caráter — o do exercício de comunicação —, transformando-se num fetiche.[1] 

Dizer que “se propõe a contar uma história”, acreditem, não é pouca coisa nem visão um tanto condescendente acerca de um autor estreante, que uma vez publicado é passível de elogios e de censuras. Por conta de alguns modismos que surgiram no rastro do famoso monólogo de Molly, no romance Ulisses, de Joyce, o excesso de subjetivismo, o percorrer indefinidamente o interior da personagem, que geralmente é o próprio narrador, ser objetivo e dizer as coisas como são tornaram-se cada vez mais um desafio. Não à toa, o poeta Bruno Tolentino,  meio brincando, meio a sério, ao ler um poema que alguém lhe havia mostrado, perguntou logo: Esse sujeito sabe pedir pizza no telefone?

O autor, dito isso, não dá um passo a mais na tradição romanesca, limitando-se afinal a uma narrativa linear, exceto uns dois flashes backs que naturalmente preenchem algumas lacunas da trama. Além disso, retoma, de algum modo, a dicção do romance naturalista do século XIX transplantando-o, com sucesso, para o século XXI, numa favela paulista, inclusive, sua abertura – pela qual nos apresenta como num panorama exuberante o nascer do dia em Paraisópolis, com o comércio se abrindo, pessoas saindo para trabalhar, os evangélicos indo para os cultos –  ecoa a antológica abertura de O cortiço, de Aloísio Azevedo: 

Era um domingo, dia bonito, pela graça de Deus. Sendo verão, o Sol surgira bem cedo para alumiar e aquecer o emaranhado de barracos, vielas, bichos e gentes que conforma a Paraisópolis. Com a quentura, as ruas desta, que é a maior favela de São Paulo, acordaram agitadas, no reboliço. O funk, o gospel, o forró e o samba estalavam alto nas casas e nos botecos…

Assim, essa apresentação ampla vai aos poucos se afunilando num culto, num templo evangélico, ministrado pela personagem principal, da qual testemunharemos ascensão e queda, dele e de sua família.  

Essa personagem principal é o pastor Josenildo que, após anos de sofrimento com sua família no Nordeste, sofrimento este que lhe endurece o espírito, resolve ir para São Paulo a fim de encontrar as oportunidades que sua terra de origem lhe não pôde oferecer. Chegando lá com  mulher e filhos, instalam-se na favela de Paraisópolis onde têm de conviver com as péssimas condições do local, acuados entre a pobreza urbana e o crime, até que vão alcançando certa ascensão econômica na medida em que Josenildo populariza-se como pastor numa igrejinha, da qual assume a posição mais alta na hierarquia não sem antes enredar-se numa teia de crimes que o leva, feito um Macbeth tropical, e sob estímulo de sua Lady Macbeth crente, a cometer vários outros para ocultar o anterior e assim manter as aparências, as  quais são postas em xeque por alguns de seus filhos.

À proporção que os filhos ganham protagonismo, a técnica naturalista, com alguns acentos do romance urbano contemporâneo e algo das tramas familiares das novelas televisivas, começam a abrir espaço para narrativas conspiratórias de certo romance policial, com direito a seitas e manipulações mentais, grandes corporações, gurus, até culminar, numa transição tão rápida quanto hábil, em brutalidades perpetradas por psicopatas, como se veem em filmes americanos, e encerrando-se,  espécie de coda, numa narrativa de presídios e numa melancólica cena no centro paulista.

A linguagem escolhida, sem pretender uma imitação da linguagem urbana de certo lugar ou de alguma tribo, é a com que o autor está familiarizado,  que pode ser lida por todos e dessa forma a apresentação de lugares e pessoas é fluente e sem penduricalhos ou invencionices laboratoriais, que sobram na história, “é tão solidamente”, como nos lembra o escritor Paulo Briguet, no prefácio à obra, “ancorada na realidade que acaba por se confundir com a própria realidade”. A forma convincente com que descreve uma cidade grande vista por olhos, diria, virgens de um interiorano; a não idealização no descrever o interior do Nordeste, apontando algumas mazelas geralmente tomadas como típicas de um espaço urbano, até porque este em algum momento contamina aquele, os dramas familiares com suas virtudes e vícios originários da tentação,  o universo adolescente em diversos matizes, oscilando entre a submissão fingida e a rebeldia romântica, que é a vida da caçula querida da família;  o sentimento de rejeição, a sensação de ser, como diria Pessoa, mero cachorro tolerado pela gerência, que marca a vida da irmã mais velha, encalhada, e o autoisolamento ressentido do jovem varão que a um só tempo questiona a disciplina familiar e  aceita com docilidade as regras do mundo,  numa tradução eloqüente do fenômeno que o filósofo Olavo de Carvalho trata no artigo “O imbecil juvenil”,  além da canalhice autossatisfeita da linha rodrigueana representada pelo pastor Glauber, tocam a todos nós. 

Advirto que os podres de família, da sociedade em geral, não são apresentados com ar triunfante de quem comemora por estar certo a respeito das piores coisas, que é uma forma romântica de lidar com o mal, não é uma torcida que se disfarça em denúncia contra a família propriamente dita. Tirando o pastor Glauber cuja canalhice chegou a um grau para o qual não se encontra mais cura e Saulo, que é um caso de psicopatia, há uma busca pela ordem das coisas, como é o caso do pastor Josenildo que se entrega a um comovente e sutil processo de redenção.

Deixemos, porém, que o leitor tenha conhecimento de como a trama se desenvolve, lendo ele mesmo o romance em questão, cuja leitura, como disse antes, vale a pena, é uma boa estreia. Por outro lado, há coisas que poderiam ser reparadas (o que é perfeitamente possível em reedições) por meio de um senso maior de observação ou pela disciplina para conter certas idiossincrasias e gostos pessoais, a saber, referir ao compositor Elomar como “rapsodo que era o ídolo do menino e de toda a juventude daquelas bandas.”(p. 62) Elomar é, sem dúvida, um excelente compositor. Isso, infelizmente, não foi o suficiente para que se tornasse popular entre os homens do sertão profundo, das zonas mais pobres e desassistidas do país. Pelo contrário, é praticamente um desconhecido nessas bandas, onde se ouvia, ao menos entre as décadas de 70 e 80, mais Amado Batista, Roberto Carlos, lambada, Fernando Mendes, e até, pasmem, “Sultans of Swing”, de Dire Straits e, mais atualmente, canções sofríveis, cantadas por vozes sofríveis acompanhando-se por teclados sofríveis… Posto que suas canções espelhem o sentimento de um Nordeste profundo, ancoradas na boa e velha cultura ibérica que essa região absorveu, é um músico mais apreciado por cultuadores da MPB, por certa elite universitária, pela classe média urbana que tem uma ideia muito vaga do sertão nordestino, cuja referência maior são as novelas televisivas. Como acredito que o autor não ignore isso, creio que se lhe despertou no espírito a manifestação de um desejo de que a realidade fosse assim, que pretendeu fazer-lhe uma homenagem e isso acabou por comprometer, em certo momento, a força narrativa, ferindo tanto a verdade em si como, o que mais importa num romance, a verdade literária.

Outro reparo diz respeito à trama que envolve o já referido “jovem varão”, cujo nome é Saulo, e que é uma das mais brutais da narrativa. Da apresentação da personagem, passando pela maneira como se relaciona com a família e sua comunidade, ou como estas se relacionam com ela, até a cena algo tarantinesca na igreja, à qual se chega com saltos bruscos que, em vez de comprometer o fio narrativo, lhe confere mais tensão dramática, tudo segue bem, e mesmo o artificialismo dessa personagem, com seu teatralismo grotesco, lhe compõe muito bem o caráter sombrio. Sendo, pois, destituída de emoções e sentimentos genuínos, nada mais natural que os imite e, sendo muito jovem, imita-os muito mal.    Acontece, porém, que a amplidão das explicações filosófico-esotéricas que se acrescentam ao ato, numa mistura de flash back e exposição sobre o funcionamento da, por assim dizer,  maquinaria conspiratória, desequilibra a narrativa e enfraquece o choque do ato criminoso que essa personagem comete, e sem contar  que prever qual seria exatamente a reação da irmã que usa como ferramenta de sua perversidade é uma caricatura do recurso deus ex machina, é praticamente superestimar o poder do mal, e essa fraqueza se mostra ainda mais evidente numa narrativa que tem, sem nenhum demérito, uma estrutura simples e corrida, qual uma enorme barriga crescesse numa pessoa macérrima, algo completamente dispensável para o leitor que pode perceber essas mesmas informações, sem os pormenores, de resto dispensáveis, em algumas rápidas informações que surgem ao longo da narrativa, e se as não perceber não perde o fio narrativo:

Desde cedo, por uma inclinação natural, Saulo lia muito, e lia sobre assuntos mais intricados (…) Lia uns autores cujos nomes seus pais e irmãs não conseguiam nem pronunciar, quanto mais entender as idéias (…) Sendo ele dado às modernices, manjava tudo de ciência, tecnologia, computação (…) Saulo foi ficando cada vez mais calado, mais metido no seu quarto, apartado de todos, vivendo só com seus livros, com seu computador, seus pôsteres de astros do rock e de guerreiros medievais, com suas coleções de cards e mangás. (…) no que Saulo, todo vestido de preto, até de touca, em pleno sol, atravessou a rua, rumo à casa de seu amigo Diego.(p.73-77)

Ou seja, temos nessas informações, e sem que nenhuma delas se prolongue numa tese, o espírito do tempo que o romancista retrata.  O mesmo problema se percebe na explicação sobre os bastidores da igrejinha e das conspirações globalistas que estão articuladas com seu crescimento, envolvendo prostituição, casamentos arranjados tendo em vista motivos torpes, numa antecipação, diga-se, ao que se revelaria na imprensa a respeito da pastora e deputada Flordelis e os bastidores sinistros de sua família que culminaram num dos mais sórdidos plano e execução de assassinato já noticiados. Em princípio, as teses, explicações, exposição de argumentos não são elementos que se devem proibir num romance. Fazem parte da tradição literária esses recursos, como podemos encontrar nas exortações morais tão presentes nas narrativas que compõem Decamerão, em vários discursos filosóficos e literários que se espalham nas aventuras de Dom Quixote, sem contar as altas discussões tão presentes nos romances de Thomas Mann ou de Michel Houellebecq, mas, em todos esses exemplos, a estrutura narrativa foi elaborada de tal maneira que esses elementos não aparecem como acessórios ou coisas estranhas que desarticulam o conjunto. No presente romance, porém, extrapolar a narrativa para explicá-la é um recurso excessivo, como se o autor perdesse a fé na própria narrativa que, à exceção das mencionadas passagens, segue firme, com sua capacidade impressionante de retratar diversos tipos urbanos desde o aspecto panorâmico ao mais íntimo, e consegue retomar o fôlego até atingir um final digno. 


[1]Crítica, literatura e narratofobia, Vide Editorial, 2015, p.53