A Outra Casa – um conto fantástico de Matheus Bensabat

Desde el fondo remoto del corredor, el espejo nos acechaba.

Jorge Luis Borges

Naquele fim de tarde a oliveira estendia sobre o telhado duas sombras oblíquas.

— Não sente falta da sua mãe?

— Minha mãe é você.

Passou a mão sobre a cabeça dela e ajeitou-lhe o vestido. 

— Você só precisava de atenção.

O menino estava sentado sobre um vaso de pedra em estilo romano, cujas alças lembravam asas. Vestia uma camisa que mal cobria-lhe o corpo, olhando para o muro com aspecto imbecil. 

— Está ansiosa? 

— Um pouco. 

— Promete não me esquecer?

— Prometo.

Tirou do envelope a certidão de nascimento que lhe pertencia e virou-se para o lado, com voz calma:

— Chegará o tempo em que todos vocês serão bem cuidados.

O orfanato funcionava nos fundos de um imóvel tombado pelo Instituto Histórico. Perto de onde estavam, via-se a pequena casa que acolhia pouco mais de vinte meninas. O pátio era de cascalho e o muro de seixo. O banco em que estavam sentadas, fincado ao solo por blocos de ouro, lembrava os arcos gregos. Na direção da casa, sob forma de repuxo, havia uma escultura em mármore idêntica à espiral das conchas, no centro da qual via-se a menina. Segurava uma bacia onde a água, indo em direção ao poço, se renovava, para em seguida inundar-lhe os olhos de vidro. 

Na ampla sala de ladrilho escuro, vinte e quatro espelhos estavam distribuídos de modo a formar um círculo. Em frente a eles, doze meninas dividiam-se em dupla. Seus retratos pendiam das paredes, e suas feições na velhice eram preservadas em daguerreótipos de prata. Nos ladrilhos do teto, de um branco asséptico e frio, o sol destacava-se, tal como visto em uma das inúmeras taças da Dinastia Tangun, confeccionadas no século IV. A partir do centro, as linhas douradas se estreitavam, formando espirais logarítmicas que se estendiam às paredes, clareando o piso. Embaixo da janela havia uma mesa de cedro recém envernizada.

No meio do círculo uma menina cantava, debruçada sobre um tecido otomano. Acima da sua cabeça, as espirais convergiam para os lados, formando figuras geométricas desconhecidas. Parava de cantar quando as sombras da oliveira ultrapassavam os limites do telhado, encobrindo a casa. A noite fazia com que passasse da excitação lírica que o contralto estimulava a um estupor melancólico comum aos corpos febris. 

Naquele momento, seus pensamentos já não se direcionavam ao irmão, com quem continuamente sonhava. Via-se em outra casa, vivendo com desconhecidos — um casal de ilusionistas do Ringling. Usavam-na em truques, marionete dos seus desejos — uma boneca de plástico partida ao meio e um carrinho sem as rodas; manequins vermelho-arroxeados e fantoches de pano escuro às margens de um rio, espalhados pela grama; um bando proliferante de aves duplicadas, cada qual com uma plumagem diferente, contornando as espirais da nascente, onde a terra afundava, criando valas e precipícios. Do rio, via o pai sentado na lama, as pernas endurecidas como pedras, montando e desmontando as rodas de uma bicicleta enferrujada. O pio rouco de uma coruja cujos olhos de sangue ardiam atrás dos galhos, formigas-de-fogo subindo pelas costas. 

Sem a presença do espelho, seus sonhos eram ainda mais enigmáticos. 

Abriu os olhos, ajeitando-se no tecido. As meninas passaram por ela, trocando de lugar, e do círculo fez-se triângulo. Pressionou os ouvidos e voltou a dormir com as pálpebras abertas. 

Passou a mão pelo vestido e tateou os cabelos do irmão, que agora dormia, apoiado na alça de pedra. No sonho, via-se em meio aos espelhos, atento aos ladrilhos do teto. 

— Quando chegam?

— Quando anoitecer — respondeu, olhando para a escultura cujas espirais alongavam-se ao nível da oliveira.

Ficou pensativa e levou a mão ao joelho.

— Minha mãe é você — repetiu, erguendo o rosto. Do pátio, distinguia tão somente a cor das folhagens. Apenas o verde lhe era visível.

Os espelhos não o refletiam. Olhou para as meninas e parou debaixo do sol, articulando palavras num idioma antigo. Fixou os olhos nas espirais, as quais bifurcavam-se, alargando o cômodo. Dividia espaço com a menina que, imóvel sobre o tecido, dormia. Sua figura era imprecisa, diferente daquela que agora acariciava-lhe o cabelo. Excessivamente branca, seu rosto tinha a cor dos crisântemos. 

Encostou-lhe no ombro e o guiou pelo braço, levando-o à mesa de cedro. Envelhecida, não tinha a aparência da mulher que segurava o envelope, recostada nos seixos. Sobre as tábuas estava a mesma escultura em mármore. A menina, bem menor que a outra, unia a bacia ao peito, sustentando-se na ponta dos pés. Girava em sentido anti-horário ao mesmo tempo em que as espirais multiplicavam-se.

À medida que a escultura completava vinte e duas voltas, em intervalos de doze horas, o tempo dentro do cômodo regredia. As espirais do teto retornavam ao centro do sol, deixando para trás, em razão das ondulações que marcavam os ladrilhos, uma espécie de vácuo cinza.

Comunicavam-se por meio de uma linguagem em que os fonemas não representavam unidades sonoras, e perdiam substância humana, limitados ao funcionamento biológico. Em um período de oitenta anos, tempo em que a escultura girava em torno de si mesma, completando mil setecentas e setenta voltas, suas funções vitais atuavam no lugar da expressão verbal, como se a confluência de órgãos e artérias lhes substituísse a fala. Sem que percebessem, tão logo seriam reduzidos a ideias ou formas geométricas fora do tempo. As meninas, ao contrário, envelheciam, mantendo os traços da infância. 

A escultura suspendeu, num movimento complexo, a bacia à altura da cabeça, movendo-se para a direita. 

Viu-se sozinho no centro do triângulo e aproximou-se da menina, ajoelhando-se no tecido. Indiferente ao canto, escutava-lhe apenas o choro — e nos olhos mortos da irmã viu os pais. A mãe no quintal, os pinos de cocaína distribuídos sobre a pilastra da varanda; o pai agachado ao lado da bomba d’água, piscando os olhos e esfregando os braços. Acima dele, presa a uma antiga estrutura de ferro, estava a mesma escultura em mármore — a água invadindo os olhos de vidro —, ao lado da qual via-se, num formato oblongo e distante, similar às figuras de um globo natalino, três labirintos superpostos, que de hora em hora trocavam de nível. Chamou o filho, e sem conseguir enxergá-lo direito, vendo-o duplicado, primeiro espancou-o com o chinelo, para depois despejar sobre suas costas a água que acabara de ferver. Prostou-se ao chão em gaguejos roucos; não sentia as pernas. Em seguida, lavou o rosto na bacia, olhando para os recipientes da droga. O labirinto menor contraía-se, arrastando-se de modo a subir. Os subsequentes, cujos caminhos eram de ródio, alargavam-se e diminuíam, criando espaço para a troca. Veio a noite; os pinos estavam vazios. Socou a parede e pressionou-lhe o ferro de passar sobre a pele. Ela tentou segurar-lhe o braço, as pernas roxas e inchadas. Fixou o olhar turvo em um quadro cuja cor revelava, num amálgama de formas verdes, cipós e florestas. Conteve o choro e o labirinto menor avançou à altura do vidro. Estendeu a roupa no varal e foi até o filho, segurando a cumbuca d’água. Trocou frases com o marido, que respondia sem entendê-la, esfregando as mãos. O menino arrastava o calcanhar na terra, mirando o muro e roendo o dedo. Chamou-o. Ele virou-se assustado, e num idioma próprio quis afastá-la, mas as palavras desfaziam-se nos lábios. O homem levantou-se, e, passando a mão pelo nariz, percebeu que sangrava. Lavou-se na bacia, indiferente aos gemidos do filho. 

Ergueu-se, observando-lhe as lágrimas de cera. Segundos depois, viu-se mais uma vez debaixo do sol, como se o tempo regredisse. Do triângulo fez-se círculo, e das espirais escorreu água, inundando o cômodo. Os daguerreótipos tornaram-se ebóreos; em suas laterais havia nove rachaduras concêntricas, que a água oxidava. As feições guardadas escorriam pelas águas, desfazendo-se em espectros. A escultura, sobre a mesa submersa, voltara ao estado de calcário, que por sua vez regredira à essência mineral. Restara a bacia, que pendulava em sentido anti-horário até quebrar-se. 

Incólume, observava o curso d’água. O som lembrava o timbre das harpas, cada vez mais harmônico. Fechou os olhos e chamou por ela, mas não havia ninguém no cômodo. A angústia perturbava-o. 

No segundo andar (primeiro pavimento de cômodos duplicados) havia duas banheiras. Separavam-nas as fibras de um tecido branco, que saíam do sol e se elevavam. Sob as águas, num refluir sereno de oceano, boiavam cravos, que repartiam-se e multiplicavam-se. Recostado no acrílico, cuja forma era indistinguível, estava o avô, olhando para o teto. Seus olhos eram baços, mas suas retinas ainda conservavam a natural precisão da primeira infância, de modo que enxergava os objetos por meio de uma auréola bipartida, ora a esmaecer, adquirindo aspecto de nuvem, ora a iluminar-se, tão nítida quanto um céu claro. Os ladrilhos formavam círculos em volta do sol, dentro dos quais via-se, em imagens claras como lembranças recentes, que pela forte impressão deixada, tornam-se parte da nossa personalidade, os aspectos biográficos e orgânicos de toda sua descendência. Olhava-os impassível, passando a mão pelo rosto. A água era prateada, em oposição ao acrílico preto. Mergulhou o rosto n’água e os labirintos, numa sucessão de voltas, tocaram o vidro ao mesmo tempo. Apalpou atentamente o vestido, sentando-se ao lado do avô. Via-o por meio de uma palidez excessiva, suas mãos eram maiores na obscuridade. Abraçou-a, atento às mechas castanhas do cabelo molhado, sentindo o perfume do creme hidratante. Beijou-lhe o pescoço, segurando-a pela mão. Em seguida, olhou sobre seus ombros para a porta da cozinha e viu, na parede sem reboco, o quadro cuja pintura de tons esverdeados era semelhante às florestas do interior da Uganda. Em cima da pequena mesa de vidro escuro estava um boneco de pelúcia sem os olhos, em cujas pernas oblongas e assimétricas haviam rasgos. Há dois meses mirava o teto, sem que o tocassem. Pegou-o, num esforço superior para reconhecê-lo, enxergando-o pouco. Beijou-a e segurou-lhe a mão. Quis virar o rosto, mas os dedos travavam-lhe o movimento. Os lábios do avô eram ressequidos como duas lixas que, sobre sua pele, causavam calafrios. Colocou-a sentada ao seu lado, enxugando o dedo úmido na manta. O vidro da mesa refletia o rosto apagado e sombrio. Observou-se por um tempo, sentindo o alívio de quem acaba de satisfazer uma necessidade. Foi à cozinha e encheu um copo d’água. Sobre o muro do quintal, numa imponente redoma de aço, os labirintos movimentavam-se. O sol iluminava-os. 

Levantou-se, apoiando-se no acrílico. Caminhou pelo cômodo, contornando a banheira em que estava o neto. Aproximou-se dele, sentando-se no chão frio. Os cravos moviam-se em razão do desnível que, com sua presença, formara-se entre as banheiras. Sentia a densidade da água aumentar, de modo que os cravos pairavam sobre a superfície, e o aroma adocicado e quente chegava ao andar de cima. Os olhos do neto tornaram-se da cor d’água; em volta das suas pupilas era possível ver a oscilação das marés. Os dedos do avô cada vez maiores sobre seu corpo. Sentia o habitual incômodo de quem o entendimento é limitado, sensação que logo passou à tristeza. À proporção que o tocava, os ladrilhos alargavam-se, e as imagens sucediam-se emolduradas em madeira talhada. Contornava-as finas cordas de lince. Quis levar a mão à barriga, mas a densidade d’água impediu-o de submergi-la. Acariciou-lhe os cabelos e, segundos depois, observou-lhe os olhos com exagerada atenção, sem perceber que os ladrilhos movimentavam-se, criando mandarlas — ornamento oval que, na arte bizantina, circunda os corpos do Cristo e da Virgem. 

Voltou à banheira e afundou o corpo n’água. Sua biografia, agora encerrada nas mandarlas, era mais uma vez exposta a si próprio. Sentia-se julgado, mas sua consciência agarrava-se a digressões fantasiosas que o absolviam, esmiuçando ocasiões inventadas. Sob a transparência dos fios, que a cada minuto tornavam-se mais finos, enxergava a banheira vazia. Os botões florais dos cravos cresciam em volta das bordas. Tinham a cor da romã, como se recém colhidos.

As espirais secaram, retomando a forma original. Abriu os olhos e viu-se mais uma vez abaixo do sol, ouvindo o som dos giros da bacia, sem conseguir enxergar a mesa. Aproximou-se da irmã, ajoelhando-se. As lágrimas de cera fizeram-se naturais, escorrendo pelo rosto como um pequeno curso d’água. Borboletas escuras, nas espirais superiores, davam ao espaço um aspecto antigo e abstrato.

As meninas olhavam-se mutuamente; o foco dos espelhos mudara. O raio incidente refletia o centro da curvatura, cuja profundidade acentuava-se, revelando novos espelhos. Em razão deles as feições refletidas modificavam-se. Seus reflexos eram expressivos; viam-se com tamanha nitidez que sentiam-se constrangidas. Ligavam-nas sentimentos de confiança e ternura, ainda que dispensassem a linguagem articulada.

Tateou mais uma vez os cabelos do irmão, que mirava o muro, estrangulando consoantes:

— An An An!

Os blocos de ouro, fincados ao solo, tornavam-se avermelhados. A valência do metal, invisível aos olhos, impunha-se à parte exterior. Elevavam-se desde o subsolo, alargando-se à medida que chegavam à superfície.

Inclinou-se, os dedos na borda do vestido:

— Minha mãe é você — repetiu, vendo-a sob contrastes. 

Recostada nos seixos, passou a mão sobre as mechas cacheadas da menina, olhando para as janelas do imóvel, por onde observava-se o burocrático funcionamento das instituições públicas.

— Promete não me esquecer?

— Prometo — respondeu, enxugando duas lágrimas de cera.

Escurecia; o pátio afundava à meia-luz. A escultura de mármore, cujos olhos de vidro estavam inundados, ocultava-se. A bacia pendulava, sem movimentar a água.

Ouvia, na sua semiconsciência, a voz da irmã, que incansavelmente repetia as mesmas frases, apalpando o vestido. Ajeitou-se sobre a alça de pedra, acomodando-se de maneira mais confortável. As espirais inferiores avançavam sobre as paredes, que estreitavam-se, diminuindo o cômodo. Aproximou-se dela, ajoelhando-se no tecido em cujas bordas, de um vermelho romã, sobressaíam árvores e desertos. De tanto ouvir-lhe o nome pronunciado pela mãe, aprendeu a repoduzi-lo mentalmente sem nenhuma falha. Chamou-a, indiferente ao canto, que a cada segundo tornava-se mais nítido, à maneira de um novo gênero musical. A tessitura vocal, ampliando a condução da linha melódica, fazia com que as vogais atingissem a precisão técnica de uma virtuose. Entreabriu os olhos e escutou, ao longe, sobrepondo-se à voz da irmã, o barulho do portão; o rangido seco e irritante das dobradiças calcificadas, e logo em seguida passos firmes e cadenciados. Confundiu-os com os gritos do pai, os pinos de cocaína nas mãos, evocando imagens que a sonolência ocultava, e esticou o braço sobre a alça de pedra. As meninas trocaram mais uma vez de lugar, movimentando-se ao mesmo tempo. O círculo fez-se triângulo e a mesa de cedro tornou-se visível. Escorria-lhe decompostos, em fragmentos imperceptíveis, as propriedades minerais da bacia, como o lodo das ruas que, sorrateiramente, avança sobre a terra. Via o pátio entre a luz e a sombra, observando os cascalhos do chão. Ajeitou o tronco, repousando a cabeça sobre o cotovelo. Os passos cada vez mais próximos, ouvia-os quase a rodeá-lo, sem saber ao certo de qual direção vinham. Chamou-a de novo, mas sua voz misturava-se ao canto, desfazendo-se no ar. Olhou para os daguerrótipos abertos, as rachaduras contraindo-os, cada vez mais próximos conforme as paredes recuavam. O sol deslocara-se do centro à lateral do teto; os ladrilhos do chão adquiriram uma tonalidade clara, refletindo-o. Enxergava as meninas sob o brilho que as deformava. Dos espelhos vazavam cores, num arco luminoso, fazendo com que lentamente desaparecessem na claridade. Em poucos segundos viu-se dentro de um pequeno espaço em que mal conseguia se mover.  Desviou o olhar do chão, conduzindo-o à escultura, quase indistinguível na sombra. Ouviu os gemidos do irmão e ergueu-o cuidadosamente, acomodando-o sobre suas pernas. Mirava os cascalhos como se não os visse, a pátina cobrindo-os. O som dos passos contornando o caminho de pedra, a luz vacilante da lâmpada que, acima de um caibro improvisado sobre o telhado de amianto, iluminava-os. 

Esfregou os olhos e entrou em sono profundo.

No terceiro e último pavimento, fixada entre as tábuas do assoalho, estava uma cruz ortodoxa, em cujas fibras agrupavam-se símbolos menores: uma taça invertida, de onde escorria filetes d’água, e um candelabro de ouro. O teto dividia-se entre o azul celeste e o amarelo ocre, separando o cômodo em áreas distintas e incomunicáveis. Pela primeira vez enxergou seu próprio rosto, em reflexos que ao mesmo tempo revelavam as mudanças que sofrera da infância à puberdade, sentada ao lado da cruz. Viu o irmão do outro lado do cômodo, ao lado dos pais. Acima dele, o medalhão de prata girava vagarosamente, com miniaturas em marfim a exemplo dos cameos de ágata, em que a tríade de ninfas adequa-se ao pastiche escuro, segurando ânforas. O homem ao centro, as mãos erguidas como se orasse, as pernas dobradas por baixo do corpo, como em uma adoração. Carregava-o duas asas de cera. Media o tempo pelo número de voltas que completava em torno de si mesmo, girando em sentido anti-horário até parar, momento em que as horas tornavam-se mortas e o tempo não era mais que uma intuição. As taças invertiam-se e as águas escorriam pelas tábuas, descendo aos andares inferiores, cada vez mais volumosas à medida que chegavam ao térreo. Seus olhos estavam saudáveis, mas não enxergava os pais. Observava o medalhão de prata, naquele momento parado. O irmão falava sem os aspectos que o limitavam. A desenvoltura com que articulava as frases, coordenando-as de forma lógica de modo a adequá-las a um tom de voz suave e ritmado, era desproporcional à sua idade. O pai ouvia-o calado, atento ao olhar do filho, recobrando a imponência com uma postura altiva que o destacava como um dos mais habilidosos paraquedistas. Olhou para cima e viu, na extensão que representava o firmamento, ramos corais de ráfia, que movimentavam-se, contornando a parede. A mãe olhava-os, as mãos em concha no joelho, sentindo sobre o rosto o clarão que vinha do teto. Dir-se-ia rejuvenescida; não tinha o aspecto cansado de quando contava apenas trinta anos. Observou o filho com o mesmo espanto de quando, pela primeira vez, teve-o nos braços. Seus pensamentos não eram perturbados por lapsos que o atravessavam a todo momento; sua memória estava preservada. Compreendia a si mesma, o que a levava à compaixão, num retrospecto sincero e minucioso de toda sua vida. O remorso não a atormentava. Pela primeira vez reconhecia seus vícios e rejeitava-os. 

O medalhão voltou a girar e as fibras de cedro secaram-se; as taças manteram-se erguidas como se apoiadas a uma superfície sólida.

Em cada um dos sete braços do candelabro que, na tradição hebraica, assemelham-se à amêndoas, havia duas velas enroladas em papiros e mergulhadas em ceras de abelha. Ficavam abaixo das taças, presas às ranhuras da barra horizontal. O curso das águas não apagava o pavio; antes alimentava-o, numa antinomia absurda, de modo a deteriorar a substância da madeira, sem que com isso a forma do objeto sofresse qualquer alteração. 

A menina levantou-se, andando em volta da cruz. Parou em frente a uma porta em cujas laterais brilhavam almandinas. Olhou para o teto, mas a vista se lhe aparesentava com uma nitidez tão forte que não suportou sobre si a incandescência do sol, que naquele cômodo iluminava apenas um lado, variando de tonalidade. Do amarelo ocre, representando a manhã, ao âmbar, como via-o agora, representando a noite. Sentou-se ao lado da cruz, ouvindo o som das águas.

As taças se inverteram e o medalhão parou de girar.

    O menino acordou, exprimindo seu incômodo com sons guturais:

— An An An!

Ela cantou para acalmá-lo, ao mesmo tempo em que a água, na escuridão do pátio, inundava os olhos da escultura, tornando-os lutuosos. Nos seus braços, os ferimentos causados pelo ferro de passar ainda eram visíveis, como se os conservassem desde o instante em que os sofrera, sem que cicatrizassem. Mas à medida que a água ocupava a bacia, sua pele clareava e as manchas sumiam. 

Do caminho de pedra surgiu duas mulheres. Seus rostos eram os mesmos que há mais de oitenta anos conservavam-se nos daguerreótipos de prata. Representavam a velhice da menina, com suas faces de gelo. Aguardavam-na tal como espectros, ouvindo a bacia ondular num ruído áspero de ferrugem.

Recostada nos seixos, pressionou a certidão de nascimento contra as pernas. Leu, sob a luz baça da lâmpada, esforçando-se para distinguir as letras — as páginas amarelecidas tornaram-se quebradiças em consequência da oxidação — frases que formavam símbolos. 

— Promete não me esquecer?

— Prometo.

Despediu-se, beijando-a, mal contendo as lágrimas. Em seguida, acomodou o menino sobre suas pernas e, com voz rouca, observando-lhe o rosto: 

— Chegará o tempo em que todos vocês serão bem cuidados.