Trechos de ‘Viagem ao cais de Wigan’ por Daniel Alves de Araújo
Escritor difícil de se fazer caber em uma “caixinha”, socialista crítico do stalinismo, Orwell é muito mais conhecido pela sua ficção do que pelos seus ensaios e artigos. Porém, Viagem ao cais de Wigan, livro encomendado pelo Left Book Club inglês, serve de perfeito exemplo dessa natureza de Orwell, intragável aos lados da “guerra cultural”. Ao mesmo tempo profissão de fé no socialismo e crítica aos socialistas, o livro causou rebuliço em sua publicação, fazendo com que seu editor, Victor Gollancz desejasse retirar a segunda metade da obra (onde Orwell critica sem piedade os socialistas de seu tempo). Não conseguindo, acabou publicando a obra com um prefácio cheio de “veja bem”, “não foi bem isso o que ele quis dizer”, etc.
Cheio de memórias do autor, capítulos autobiográficos, aventuras em minas subterrâneas (onde acompanhou a terrível realidade dos mineradores de carvão), retratos de cortiços e favelas, além das divertidas tiradas com os tipinhos endinheirados que querem fazer a revolução de preferência sem precisar chegar perto de um operário suado, Viagem ao cais de Wigan acaba de ganhar nova tradução (deste que vos escreve). Sem nunca ter renunciado ao socialismo, a honestidade de Orwell nesta obra, que não perdoa seus “camaradas”, não deixa de ser uma espécie de prenúncio daquele outro relato que viria em seu livro seguinte, Homenagem à Catalunha, em que o socialista se veria obrigado a fugir da Guerra Civil Espanhola perseguido pelos comunistas… O terreno estava pronto para A revolução dos bichos e 1984.
O trecho a seguir pertence a essa segunda parte do livro, que seu editor queria remover. Faz parte de uma das críticas de Orwell aos socialistas do seu tempo: a obsessão pelo progresso custe o que custar. A crítica às “máquinas”, feita em 1936 (!!!) não deixa de ter uma enorme atualidade, com a observação de que Orwell não viu o advento das IAs. Se estava preocupado com as máquinas pelo impacto delas nos trabalhos manuais, só nos resta imaginar o que diria dos robôs que “pensam” (e escrevem!) por nós.
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A função das máquinas é diminuir o trabalho. Em um mundo totalmente mecanizado, todo o trabalho maçante será feito pelas máquinas, nos deixando livres para empreendimentos mais interessantes. Falando assim, soa esplêndido. É revoltante a visão de meia dúzia de homens suando bicas para cavar uma entrada para um cano d’água, quando uma máquina simples de se projetar poderia remover a terra em poucos minutos. Por que não deixar a máquina fazer o trabalho e os homens partirem para fazer outra coisa? Mas aí surge a questão: o que mais eles fariam? Supostamente, eles estão livres do trabalho de forma que possam se dedicar a outra coisa que não o trabalho. Mas o que é e o que não é o trabalho? Cavar buracos, trabalhar madeira, plantar árvores, derrubar árvores, montar a cavalo, pescar, caçar, alimentar galinhas, tocar piano, tirar fotos, construir uma casa, cozinhar, costurar, confeccionar chapéus, consertar motocicletas; tudo isso é “trabalho”? Essas coisas são trabalho para uns e lazer para outros. De fato, são muito poucas as atividades que não podem ser classificadas como trabalho ou lazer sob diferentes pontos de vista. O trabalhador que não precisa mais escavar pode querer passar o tempo livre, ou parte dele, tocando piano, enquanto o pianista profissional pode ficar bem feliz em sair e cavar um pouco na sua plantação de batatas. Logo percebemos que a antítese entre trabalho, como algo intolerável e tedioso, e ausência de trabalho, como algo desejável, é falsa. A verdade é que quando um ser humano não está comendo, bebendo, dormindo, fazendo amor, conversando, jogando ou apenas ficando à toa — e essas coisas não preenchem todo o tempo de uma vida — ele precisa trabalhar, e normalmente procura por isso, embora ele possa não chamar de trabalho. Além do nível de um idiota com terceiro grau completo, grande parte da vida tem que ser vivida em termos de esforço. Pois o homem não é, como o hedonista ordinário parece crer, uma espécie de estômago ambulante; ele também tem mãos, olhos e cérebro. Deixe de usar suas mãos, e você arrancou fora um grande pedaço da própria consciência. E agora pensemos novamente naquela meia dúzia de homens que estavam cavando um buraco para o cano d’água. Uma máquina os livrou da escavação, e eles irão se entreter com outra coisa — carpintaria, por exemplo. Mas o que quer que eles queiram fazer, irão descobrir que outra máquina já os libertou disso. Pois em um mundo totalmente mecanizado, já não será mais necessário trabalhar madeira, cozinhar, consertar a motocicleta, etc., assim como não será necessário cavar. Quase não há atividades, desde caçar baleias até esculpir em caroços de cereja, que não podem potencialmente ser feitas por máquinas. As máquinas poderiam inclusive invadir as atividades que agora classificamos como “arte”; já estão fazendo isso, através da câmera e do rádio. Torne o mundo tão mecanizável quanto ele possa ser, e para onde quer que você se volte, lá estará alguma máquina tirando sua chance de trabalhar — ou seja, de viver.
A princípio isso não parece importar muito. Por que você não deveria seguir em frente com seu “trabalho criativo” e esquecer que as máquinas poderiam fazê-lo por você? Mas não é tão simples quanto parece. Aqui estou eu, trabalhando oito horas por dia em um escritório de seguros; em meu tempo livre eu quero fazer algo mais criativo, então opto por me dedicar um pouco à carpintaria — fazer uma mesa para uso próprio, por exemplo. Perceba que desde o início há um toque de artificialidade nisso tudo, pois as fábricas podem fazer uma mesa para mim muito melhor do que eu mesmo. Mas mesmo quando eu vou trabalhar na minha mesa, não é possível que eu sinta por ela o mesmo que um carpinteiro de cem anos atrás sentia por sua mesa, muito menos o que Robinson Crusoé sentia em relação à dele. Pois antes mesmo que eu comece, a maior parte do trabalho já havia sido feita para mim pelas máquinas. As ferramentas que eu uso demandam uma habilidade mínima. Eu consigo, por exemplo, ter acesso a uma plaina que corte em qualquer molde; o carpinteiro de cem anos atrás teria que fazer seu trabalho com cinzel e goiva, que demandam verdadeira habilidade dos olhos e das mãos. As tábuas que eu compro já estão aplainadas e os pés já foram moldados pelo torno. Eu posso mesmo ir a uma madeireira e comprar todas as partes da mesa já prontas, apenas precisando que alguém junte os pedaços, e meu trabalho se resumiria a juntar uns pinos e usar uma lixa. E se é assim no presente, no futuro mecanizado será muito mais. Com as ferramentas e materiais que estarão disponíveis, não haverá possibilidade de erro, logo, nenhum espaço para habilidade. Fazer uma mesa será tão fácil e tedioso quanto descascar batatas. Em tais circunstâncias, é loucura falar em “trabalho criativo”. Em todo caso, o artesanato manual (que precisa ser transmitido de mestre para aprendiz) terá desaparecido há muito tempo. Algo já desapareceu, por causa da competição com as máquinas. Procure em qualquer cemitério de igreja no interior e veja se encontra alguma lápide decentemente talhada depois de 1820. A arte, ou melhor, o ofício de talhar na pedra morreu, de tal forma que levaria séculos para revivê-lo.
Mas poderia ser dito: por que não manter as máquinas e o trabalho criativo? Por que não cultivar anacronismos como uma forma de passar o tempo? Muita gente já flertou com essa ideia; ela parece resolver com uma facilidade linda os dilemas criados pelas máquinas. Os cidadãos da Utopia, nos disseram, chegando em casa após sua jornada de duas horas girando manivelas na fábrica de molho enlatado, irá deliberadamente retroceder a um estilo de vida mais primitivo alimentar seus instintos criativos com um pouco de marcenaria, cerâmica ou costura. E por que essa imagem é absurda, como claramente ela é? Por causa de um princípio que nem sempre é reconhecido, embora sempre esteja valendo: o de que enquanto a máquina está lá, somos obrigados a usá-la. Ninguém tira água do poço quando pode abrir a torneira. Isso é bem visível em matéria de viagens. Todo mundo que já viajou seguindo métodos mais primitivos em países subdesenvolvidos sabe que a diferença entre esse tipo de viagem e as viagens modernas com trens e carros é a diferença entre a vida e a morte. O nômade que anda ou monta, com sua bagagem levada por um camelo ou carroça de bois, pode sofrer todo tipo de desconforto, mas pelo menos está vivendo enquanto viaja; enquanto o passageiro em um trem expresso ou de luxo vive sua jornada em um interregno, um tipo de morte temporária. E mesmo assim, enquanto as estradas de ferro existirem, temos que viajar de trem — ou carro, ou avião. Aqui estou eu, a quarenta milhas de Londres. Quando quero ir para Londres, por que eu não coloco minhas coisas no lombo de uma mula e vou a pé, fazendo uma jornada de dois dias? Porque com as várias linhas de ônibus zunindo por mim a cada dez minutos, tal viagem seria intolerável. De tal forma que, para que seja possível usufruir de uma viagem à moda antiga, é necessário que não haja nenhum método moderno disponível. Nenhum ser humano quer fazer algo de maneira mais incômoda que o necessário. Por isso é um absurdo aquela imagem dos moradores de Utopia salvando suas almas com artesanato. Em um mundo onde tudo possa ser feito pelas máquinas, tudo será feito pelas máquinas. Retornar deliberadamente aos métodos primitivos, usar ferramentas arcaicas, colocar pequenos obstáculos bobos no próprio caminho, seria uma forma de diletantismo, um capricho de artesanato. Seria como sentar solenemente para jantar usando utensílios de pedra. Retorne aos trabalhos manuais em uma era de máquinas, e você está de volta a uma dessas casas de chá que se fingem de antigas, ou a uma vila decorada ao estilo Tudor com feixes de mentira presos nas paredes.
A tendência do progresso mecânico, então, é frustrar a natureza humana por esforço e criação. Torna assim desnecessários e mesmo impossíveis os trabalhos das mãos e dos olhos. O apóstolo do “progresso” algumas vezes irá alegar que isso não importa, mas você pode com frequência colocá-lo em uma sinuca demonstrando os extremos terríveis a que o processo pode levar. Por que, por exemplo, usar as mãos para qualquer coisa? Por que usá-las para limpar o nariz ou apontar um lápis? Com certeza seria possível colocar algum tipo geringonça de aço e borracha e deixar os braços definharem até se tornarem só pele e osso. E assim para cada órgão e cada faculdade. Não há nenhuma razão para que o ser humano faça algo além de comer, beber, dormir, respirar e procriar; todo o resto pode ser feito para ele por uma máquina. Logo, o fim lógico do progresso mecânico é reduzir o ser humano a algo semelhante a um cérebro engarrafado. Essa é a meta para a qual estamos caminhando, embora, é claro, não tenhamos a intenção de chegar aí; igual a um homem que bebe uma garrafa de whisky por dia mas na verdade não busca uma cirrose no fígado. O objetivo implícito do progresso não é exatamente, talvez, o cérebro engarrafado, mas em certa medida é um abismo medonho e sub-humano de moleza e impotência.