Oblívio – por Matheus Bensabat

     Poucos dias após a internação da filha, resolveu voltar ao sítio em que vivera com os pais da infância à juventude, quando se mudou para o Rio. Precisava livrar-se da angústia, extirpar de si o remorso e reaver-se com o passado.

Ao entrar pela estrada de terra pôde enfim ver a casa. Enxergava-a tão distante daquilo que fora, que não reconheceu as paredes que a constituíam. A impressão de abandono tornava-a esmaecida, fazendo-o sentir uma tristeza branda, como se ele se lembrasse de alguém a quem amara e que o tempo afastou. 

Estacionou ao lado da magnólia-amarela que ficava rente ao canil. Abriu a porta do carro e desceu. O cachorro movimentava-se de um lado a outro com impaciência, e no seu focinho havia manchas de sangue. A vasilha de ração estava a um canto, limpa, virada para o côncavo que se formava em uma das extremidades, parcialmente encoberto por um pedaço de papelão sujo de lama. Ele pressionou o alambrado para certificar-se de que estava firme. Depois, dobrou a manga do terno e ajoelhou-se, assobiando. O cachorro veio até ele a cheirar-lhe os sapatos.

Encostou o ombro na haste do alambrado e acendeu um cigarro. Relaxou os braços, segurando o punho direito. Circunvagou os olhos para o alto e viu que a rosa dos ventos não estava mais em cima do telhado. Como o pai dizia que as aves se orientavam por meio dela, ele pensava que todos os pássaros do mundo só conseguiam se orientar mediante a rosa dos ventos que havia em cima do telhado. 

Apagou o cigarro e caminhou em direção ao apiário, que ficava próximo à residência, em um declive etéreo e oculto como vales imemoriais.

As colmeias, distanciadas entre si por alguns palmos, foram adaptadas às casas de pássaros cujos cavaletes eram coloridos. Lembrou-se de que as cores eram vivas, estavam lúridas e frias como os calcários, talvez até mesmo como a sua consciência. Andou até chegar ao casebre em que o pai guardava os equipamentos e, enquanto inspecionava a vassoura apícula e o coletor de pólen, apoiados sobre a colmeia de palha trançada, viu, pelo vão da madeira, uma mulher inclinada sobre a bica d’água. Ela torcia um pano enxarcado do qual escorria sangue. Olhou-a por alguns segundos e voltou para perto da magnólia-amarela. 

Entrou no carro e desbloqueou o celular: nenhuma notícia da filha. Ligou o rádio e selecionou, em um volume muito baixo, uma ária de Puccini, Nessun Dorma, a cuja apresentação assistira há poucos meses. 

Segundos depois, olhou para as janelas da sala na expectativa de que ela as abrisse. Passava os dias entregue a si mesma, já não tinha nenhuma obrigação a cumprir, nada mais lhe restava senão uma morte digna. 

Inspirou profundamente, colocou o celular no bolso e saiu do carro em direção à casa, caminhando lentamente pelos calcários cujas fendas estavam aglutinadas pelo lodo.

Bateu à porta e esperou. Não demorou muito para que uma mulher aparecesse, olhando-o atentamente. Fez-se quieta e, em seguida, perguntou-lhe o que queria. Respondeu que viera visitar a mãe. Ela afastou-se, deixando a porta encostada. 

Voltou pouco tempo depois. 

— Por aqui — disse e conduziu-o pelo corredor.

As paredes estavam limpas, sem os antigos quadros de uma coleção italiana; o piso não era mais o porcelanato alvíssimo de que ele se lembrava, mas um mármore cinza.

Em determinado momento — faltava pouco para chegar à sala —, ouviu, do cômodo anexo ao corredor, o barulho do que parecia ser um jato d’água enchendo um vaso de flores. Tentou olhar para os detalhes do piso, mas a porta estava apenas levemente entreaberta. Distinguiu vultos e, logo em seguida, ouviu a voz de um homem, que chegava até ele por meio de sussurros doloridos. 

Notou que a água escorria em direção à sala. Apoiou-se à parede para esticar-se, evitando molhar os sapatos. A mulher esperava-o ao lado de nichos de ferro em que estavam suspensas duas dracenas vermelhas; a distância que os separava pareceu-lhe menor em razão do piso escuro. Perguntou-lhe, surpreso, a respeito dos gemidos que saíam do cômodo, curioso para saber o que estava acontecendo, questionando-lhe também sobre a água cuja tonalidade evidenciava nódoas vermelhas, mas ela não respondeu. Com voz firme, pediu a ele que fosse breve. Disse que a senhora precisava descansar e apontou para uma cadeira rente à mesa de centro, onde ela estava sentada. Ele agradeceu e aproximou-se, com os braços cruzados para trás. 

Contornou a mesa e, por um segundo, olhou para os vidros das janelas onde a insolação formava insignificantes halos coloridos, com um esforço inútil para ultrapassar o vão das paletas.

Viu-a encurvada, mirando o tapete. Lentamente, pôs-se ao lado dela, ajoelhando-se como a apoiar-se em um genuflexório. 

Chamou-a em voz baixa: 

— Mãe.

Ouviu-o distante, embora ele estivesse quase a tocar-lhe os cabelos. Virou-se devagar, estendendo as mãos maquinalmente na direção do filho, e, ao reconhecê-lo, os seus olhos demudaram-se naqueles mesmos olhos atentos e compassivos de quando o amamentava. 

Por um momento, achou que ela fosse abraçá-lo, mas ela o encostou como se quisesse retê-lo. Olhava-o, e era como se diante dela se fizesse presente toda uma vida, da infância do filho à vida difícil ao lado do marido, suscitando lembranças que a remetiam aos pais, dos quais se lembrava por meio de sensações ambíguas: a admiração que sentia pela mãe ao vê-la banhar os irmãos mais novos, o medo que lhe dava ao ouvir o barulho dos galhos caindo no chão quando o pai podava as árvores ao entardecer; o horizonte distanciava-se, a solidão ordinária estabelecia-se, imensa, e ele acendia o último cigarro de palha antes de fechar as janelas, segurando firme as aldrabas, puxando-as com violência. Tais sensações a ocupavam brevemente para depois sumirem, dando lugar a um inominável vazio. 

Após uma curta pausa, disse, com a voz débil de uma quase octogenária:

— Meu filho, mudaste tanto.

Lembrava-se ainda do filho, do seu rosto e da sua voz. 

— Como a senhora está? — perguntou, encostando o cotovelo na cadeira.

As mãos frágeis, a pele flácida e os lábios pálidos impressionaram-no. São profundas as feições da velhice, pensou.

Ele levantou-se, pegou uma cadeira e sentou-se perto dela. Olhou para a mesa e viu, dentro de uma cumbuca rasa, o frasco de complexo b ao lado das caixas de remédio para Alzheimer. Em cima do aparador dois pequenos círios pascais pareciam desmanchar-se como se fossem de uma matéria muito frágil.                                                           

Estranhou o triste aspecto dos móveis e não conseguiu enxergar com nitidez a foto do pai em um quadro. Não suportava vê-lo, na idade em que a ordem e a calma deveriam consolidar a vida cotidiana, em tal estado de loucura e desequilíbrio. Traíste-me, puta, não terás a vida sossegada à custa do meu sustento, e quebrava os caixotes, chutando as vassouras apículas.

Pôs as mãos nos braços da cadeira e disse-lhe que a perdoava, mas ela não o compreendeu. Esquecera a semântica da palavra. Era como se ele a pronunciasse em um idioma morto, e da traição o que lhe restara eram resquícios de um sentimento muito vago, que ora tendia para a raiva, ora para a melancolia, mas nunca para o remorso. Ainda que se arrependesse não teria consciência do arrependimento.

— Eu tenho uma neta — disse, como se iniciasse a conversa a partir do que acabara de dizer, imaginado uma neta distante.

Ele tirou o celular do bolso e abriu a galeria, mostrando-lhe uma foto da filha. 

— Foi no dia em que ela recebeu a primeira comunhão, mãe.

Estava ao lado da neta e vestia uma camisa branca cuja estampa era a foto da diocese do bairro, o padre com os membros da pastoral no pórtico, no domingo de Páscoa. Não conseguia explicar para si mesma a importância do sacramento, tendo-o por uma simples celebração familiar.

Dentro da sala, a penumbra aumentava; por meio das paletas da janela, era possível ver que entardecia. Ela fez menção de levantar-se, sentia-se melhor no sofá. Ele ajudou-a, oferecendo o antebraço como apoio. A mão dela pareceu-lhe tão frágil que teve medo de machucá-la.

Acomodou-a e, sôfrego, virou a tela em sua direção.

— A Júlia brincava nesse sofá, mãe — disse e mostrou-lhe uma foto em que ela penteava os cabelos da neta com uma escova de cerdas brancas.

Compensava os lapsos evocando lembranças profundas, para esquecê-las quando o filho a interrogava. Falava baixo, de modo que ele se curvava para ouvi-la.

— Qual é o nome dela?

— Júlia, mãe…

Chamava-se Júlia em memória da bisavó, imigrante judaica.

— Ela tem quantos anos? 

— Vinte e dois.

Em seguida, movimentou o rosto e olhou para ele, que desviou os olhos em direção ao aparador. Esfregava a tela do celular sobre a calça enquanto insistia em enxergar no quadro o rosto do pai.  

Ela fixou os olhos no tapete cujas linhas se bifurcavam, formando deuses egípcios, hieróglifos e idiogramas separados por círculos brancos, e perguntou-lhe sobre as provas da faculdade.

Lembrou-se dela na formatura e trincou os dentes, sentindo o deserto no coração quando ouviu, subitamente recomeçados, os gemidos lancinantes que vinham do cômodo anexo ao corredor. Levantou-se do sofá, foi até o meio da sala e chamou, assustado, pela mulher que o atendera. Esperou por alguns segundos e seguiu sozinho em direção ao cômodo.

Abriu a porta bem devagar e não se moveu. Viu a mulher que há pouco caminhava pelo apiário lavar o braço de um homem com água e sabão. A pele escorria junto às pequenas torrentes de sangue, avançando pelo piso que não era o do corredor, mas outro, bem mais claro.

—  O que aconteceu? — perguntou com espanto. 

— O cachorro o atacou — respondeu, deixando o jarro na cômoda para dissolver iodo em uma tigela de prata.

O homem, ao vê-lo, escondeu o rosto com a mão e pediu a ela que o cobrisse. Estava nu.

— Cubra-me! — disse, como se quisesse tirar o coração das agonias profundas. — Quero água! — emendou, despedaçando a voz.

Ela limpou a ponta do jarro e levantou-lhe o queixo, pedindo-lhe que abrisse a boca. Passou a língua pelos lábios e virou o rosto para o lado. 

Fez-se um longo silêncio até que ele voltou a gritar, movimentando o quadril como se quisesse fugir de alguma coisa. A cabeça batia contra o recosto, e o braço ferido não acompanhava os movimentos do tronco. 

Pôs as mãos nos ombros dela e berrou, alucinado: 

— Não vê que ele vai perder o braço?

Não entendia por que a mulher se dedicava ao esforço inútil de lavar-lhe o braço incessantemente. Insistiu para que o levassem ao hospital, mas ela já não lhe respondia; era como se não o ouvisse. Ele ficou parado, com o rosto vítreo. Viu-se preso a uma atmosfera de tamanha opressão que não conseguia falar.

Voltou à sala e olhou para a mãe pela última vez. No escuro, parecia um espectro andando inutilmente do sofá à janela.

Percorreu o corredor em direção à saída. Ao passar pelo cômodo, ainda pôde ouvir os lamentos do homem junto ao barulho da água no jarro. 

Estava escuro. Um inútil refletor clareava parte do calcário, tornando visíveis a pátina e a sujeira das pedras. Ligou a lanterna do celular e apontou-a para o carro, caminhando em direção ao canil. 

Agachou-se ao lado do cachorro e puxou a manga do terno, cerrando o punho. Enfiou o braço por baixo de uma das extremidades do alambrado, contraindo o maxilar como se entrasse em uma crise nervosa. Quando o celular vibrou, ouviu o primeiro esguicho de sangue manchar a terra fria.