O velório da bela desconhecida

– por Marc Enrique Bernardo

Não sabia o que fazia ali. Estava frio, o chão esburacado da praça forrado de folhas secas. Atravessou a quadra e chegou num campo. Onde uma calma névoa dançava, via-se em outras noites a grama alta levada pelo vento, refletindo o luar. Engoliu em seco e voltou, agachou-se no canto de um muro. Escombros de um antigo centro comunitário eram engolidos pelas sombras das árvores, que ao redor de Lídio pareciam vultos. Fechou os olhos e permaneceu em silêncio; estremeceu, pássaros de muitos galhos voaram. Parou no meio da rua pois tinha escutado um grito vindo da mata. Lídio olhava as pistas do aeroporto, e, bem longe, as luzes da torre. Cinco anos atrás, víamos as estrelas de cima da arquibancada, hoje o lugar é quieto, ninguém mais bebe até tarde, o bar fecha cedo.

Andou pela grama e viu-a deitada, de barriga pra cima. Troncos secos ao redor dela. O lugar estava deserto. Ela dormia? O vestido verde sem manchas vermelhas e o laço branco intacto amarrado no cabelo davam a ela uma aparência caseira, como se ela dormisse. Ou talvez tivesse morrido em um outro lugar. Lídio pensou em cobri-la com a jaqueta que vestia, e quando se aproximou, pensou tê-la reconhecido. E a viu tão indefesa, tão desvalida, que enxergou nela a irmã dele. Pelo grito, Lídio pensou que veria sangue, vestidos vermelhos e não verdes.

Só depois de muitas perguntas o oficial Augusto a contemplou de perto. Mandaram apenas uma viatura, a primeira ocorrência daqueles dois policiais na noite. Marcos foi quem examinou o corpo enquanto o parceiro interrogava o sujeito: onde já se viu “não estar fazendo nada” na rua, essa hora? Ainda mais no São Conrado — Marcos dizia, enquanto procurava lesões no corpo da defunta. Augusto, porém, não suspeitava de Lídio, que era só um coitado. Ouvia as respostas do homem de jaqueta cheia de rasgos e parecia incomodado com o barulho do rádio, remexia o colete, a arma, coçava a cabeça, até que cansou de conversa e mandou Lídio ir pra casa. Também nunca tinha visto aquela moça, e morava há anos na região. Lembraria de uma mulher tão linda: o cabelo dela intocado. Os lábios vermelhos. A pele ainda quente. As mãos sobre o peito. Era a morta mais viva da Terra. Augusto pensava que se uma moça tão bela vivesse entre eles, dificilmente os rapazes largariam os estudos e nunca conheceriam uma vida distante dos bons costumes. Os quartos deles seriam os mais bem arrumados; os cabelos, os mais bem cortados; os perfumes e camisas, comprariam após meses de trabalho honesto e ensaiariam no espelho os pedidos de casamento. Nas conversas dos menores se ouviriam sonhos de uma vida sóbria; nas rodas dos mais velhos, realizações de homens maduros.

A legista se compadeceu da morta bonita. Na maca do necrotério, sem laço e sem vestido, ainda era uma mulher inspiradora. Não tinha culpa de ser tão bonita; se pudesse, eu mesma apagava o brilho dos meus olhos e mudava as proporções do meu corpo, e não apareceria à vista dos homens, nem sairia de casa de laço e de vestido. Foi então quando a legista compreendeu o quanto a mocinha devia ter sido invejada em vida, com aquela sinceridade de expressões, e amada, com aquela beleza arrebatadora. Depois de examiná-la, constatara que infartou. Sabia que ela gritara antes de morrer e por isso imaginou que a bela desconhecida morrera de susto. Não queríamos deixar ela morrer indigente e providenciamos um retrato fiel dela, para entregarem nas lojas e pregarem nas paredes da região até alguém reconhecê-la. Logo surgiram senhoras compadecidas, é filha de fulana!, é filha de sicrano!, e rapazes que tinham visto uma moça igualzinha a ela no colégio, ou numa festa meses antes. Meninas da idade dela diziam: “nunca a vi”.

A história da morta que encontraram inviolada correu uns dias pelo São Conrado, antes de alguns moradores começarem a organizar um funeral para ela. Não era justo deixar a pobrezinha ser sepultada sem pai nem mãe, e há muito tempo não nos uníamos pra ajudar alguém. Compramos um caixão de mogno e encomendamos flores para a cerimônia, e ficamos impressionados pelo número de pessoas que vieram ao velório na casa de dona Sônia Rabelo, a mãe de cinco filhas que se prontificou na organização da casa e passou a manhã na cozinha, indo de lá pra cá cortando legumes, lavando panelas, provando sabores, papagaiando com mulheres, e depois diminuía o ritmo do trabalho. E, suspirando, se perguntava de onde viera morta tão bela, de onde viera morta tão desconhecida. Depois, os vinte e tantos carros que seguiram a falecida até o cemitério Santo Antônio, e os novos irmãos e irmãs que choraram como se ela tivesse vivido entre eles. Os meninos, de cabelos cortados e paletós bem ajustados, as meninas de sapatilhas escolhidas pelas mães atenciosas. As mulheres evangélicas de saias longas entoavam louvores e as católicas, rosário em mãos e véu bordado sobre os olhos, rezavam. Enquanto jogávamos punhados de terra no caixão, percebíamos pela primeira vez a solidão de nossas casas, a estreiteza de nossos sonhos, a baixeza de nossos ideais, diante do caixão da morta que morreu de susto. Mas ao pôr do sol sabíamos que tudo seria diferente: no São Conrado a lembrança da bela assustada viveria nos corações; e antes de tudo que fizéssemos de bom, teríamos pensado duas ou três vezes na morta de laços brancos que derreteu o remorso dos homens e mulheres.

A arquibancada do campo de futebol lotaria, e durante o dia assistiríamos aos solteiros e casados, e à noite às estrelas do céu. Os bebuns voltariam a dormir na calçada e acordariam cantando aos cães. Levantaríamos dos escombros o centro comunitário para festejarmos churrascos e sextas feiras de bingo. Os falsos agora falariam verdades, os homicidas seriam Paulo, os ladrões virariam Dimas e as putas, Madalenas redimidas. Ninguém diria, no futuro, “que se fodam os jovens”, todos cultivariam o espírito das crianças com belas canções e boas histórias. Quem passasse pelo São Conrado veria as fachadas reformadas das casas populares, os sorrisos e as boas maneiras da vizinhança; admirados, nos veriam feito deuses civilizados e perguntariam o que é que tínhamos ali de diferente. E as crianças bobas responderiam: “aqui é o bairro da morta intocada, onde nasceu e viveu a morta bonita”.

Marc Enrique Bernardo é escritor ficcional e está concluindo sua primeira coletânea de contos.